12 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE II


 

Por André Bozzetto Junior

  

            Para ler a PARTE I desta história, clique AQUI.

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            Após o tiro, as garotas pararam de gritar e ingressaram quase que automaticamente em um estado de tenso silêncio, como se na expectativa do que estava por vir. Rafael baixou a espingarda e ficou imóvel, fazendo coro à tensão que dominava o grupo de forma tão intensa que parecia de sensação quase tátil. Depois de um intervalo de tempo impossível de ser precisado por qualquer um dos jovens, Milton pareceu sair do estado de choque que enrijecia a todos e caminhou lentamente na direção dos arbustos que ocultavam a visão do alvo abatido.

            – Meu Deus! – gritou ele, levando as mãos à cabeça e atraindo a atenção dos demais, que correram em sua direção.

            Tão logo se postaram ao lado de Milton, as garotas voltaram a gritar quase que tão estridentemente quanto antes, pois a visão de um rapaz desacordado com um ferimento de bala no peito deixava claro a elas que as surpresas trágicas que aquele dia lhes reservava estavam apenas começando.

            – Cristo! Matei um cara! – exclamou Rafael, ao constatar que o rapaz alvejado não respirava – O que vamos fazer?!

            – Vamos embora! – gritou Cíntia.

            – Temos que chamar a polícia! – emendou Paulina, também aos berros.

            – Chamar a polícia?! Está louca?! – retrucou Milton – Vamos ser presos!

            – Mas foi um acidente! Vamos explicar... – insistiu a moça.

            – E quem garante que alguém vai acreditar?! – intrometeu-se Rafael – Nossas barracas estão cheias de bebidas alcoólicas e de erva! Se nos obrigarem a fazer exames de sangue ou urina estamos ainda mais ferrados!

            – E podem achar que nós matamos também esses outros caras! – complementou Milton, apontando para os cadáveres ressecados estendidos a alguns metros abaixo.

            – Quem será que os matou? – perguntou Cíntia, em um tom de voz balbuciado e choroso que evidenciava o enorme transtorno pelo qual sua mente estava passando.

            – Provavelmente foi esse cara aqui! – exclamou Milton, apontado para o corpo do rapaz alvejado aos seus pés.

            – Ora, como você pode saber?! – retrucou Paulina.

            – E você viu mais alguém nessa montanha desde que chegamos?! – gritou Milton – Por que será que o único ser humano que avistamos ao longo do dia inteiro estava justamente aqui, na beira de um precipício oculto e cheio de ossos e caveiras ao redor?!

            – Isso explica também todos aqueles boatos sobre desaparecimentos... – ponderou Rafael – É tudo obra de um serial-killer... E, ao que parece, aqui está ele, mortinho da Silva.

            – Vamos jogar o corpo desse cara no precipício e dar o fora daqui! – decretou Milton – Depois basta nunca mais tocarmos no assunto e ponto final.

            – E ainda teremos a consciência tranquila, pois livramos o Morro Assombrado do responsável por tudo de ruim que andava acontecendo por aqui! – complementou Rafael.

            – Vocês estão loucos?! – gritou Paulina – Não há nenhuma garantia de que essa teoria estapafúrdia de vocês seja verdadeira! Está na cara que se trata apenas de uma desculpa para justificar o que fizemos!

            – Eles estão certos. – interveio Cíntia, com uma voz que, inicialmente, era pouco mais do que um sussurro, mas subiu de tom até tornar sua fala em uma sucessão de gritos histéricos e perturbados – Os meus pais vão ficar furiosos comigo se ficarem sabendo... E eu... E eu não quero ser presa! Não quero ser presa! Não quero ser presa! Não quero ser presa!

            Como se as palavras descontroladas da companheira servissem de aval para as suas intenções, Milton e Rafael entreolharam-se rapidamente e, de forma decidida, ajuntaram o corpo do rapaz e carregaram-no até a borda do precipício. Bastou uma rápida olhada lá para baixo para constarem que se tratava de um grande abismo, pois nem era possível enxergar o seu final, em partes também em função da vegetação que cobria parcialmente suas encostas e se adensava na medida em que o declive se tornava mais íngreme. Sem titubear, os rapazes balançaram o corpo para frente e para trás duas vezes e na terceira arremessaram-no com o máximo de força possível para dentro do precipício. Observaram quando o cadáver bateu contra a encosta duas vezes – amassando arbustos e fazendo pedras caírem – para depois rolar sobre uma saliência rochosa, ganhar embalo e despencar no vazio até sumir de vista. Aguardaram em silêncio com a mórbida expectativa de ouvir o barulho do corpo estatelando-se de encontro ao solo lá embaixo, mas nenhum som mais enfático chegou aos seus ouvidos. Por um instante, Milton temeu que o cadáver pudesse ter ficado enroscado na vegetação em algum ponto do declive, mas decidiu não compartilhar dessa desconfiança com o amigo. Com sensação de dever cumprido, os dois jovens retornaram ao encontro das moças.  

            – Agora sim vamos embora. E depressa! – decretou Milton.

            – E bico calado. Para sempre! – complementou Rafael.

            Cíntia apenas consentiu com um aceno de cabeça, enquanto que Paulina tentou protestar, mas Rafael simplesmente pegou-a pelo braço e puxou-a na direção da encosta do barranco. Os jovens realizaram em silêncio a escalada de volta até a parte superior do morro e, em função da tensão e da escuridão cada vez mais acentuada, a subida foi bem mais lenta e dificultosa do que gostariam.

            Quando finalmente chegaram de volta ao acampamento, saciaram a sede que já os perturbava e imediatamente começaram a desmontar as barracas. Nesse momento, o sol já havia se posto por completo e a visão panorâmica proporcionada pela localização no alto do morro permitia aos amigos presenciar o antagônico espetáculo natural que se dava acima de suas cabeças. De um lado as nuvens tempestuosas já se encontravam bastante próximas, e os relâmpagos e trovoadas que realçavam sua aproximação deixavam claro que a chuva despencaria em breve. Do outro lado, a lua cheia já começava a raiar pálida e enorme por detrás da montanha, emitindo uma luminosidade que ao mesmo tempo realçava os contornos da paisagem e os tornava inquietantemente sinistros.

            Mal haviam começado a encher suas mochilas e os quatro jovens perceberem, com grande surpresa e desconfiança, a aproximação de um homem que vinha rapidamente em sua direção.

            – Meu Deus! Quem será aquele? – exclamou Cíntia.

            – Logo saberemos. – disse Milton – Rafael, fique com a espingarda ao alcance das mãos. E vocês, mocinhas, tratem de ficar de bico calado!

            Na medida em que o sujeito se aproximava, o grupo pode constar que se tratava de um homem de idade avançada, praticamente idoso. Possui cabelos e bigode grisalhos e usava roupas claramente destinadas ao trabalho na roça. Aparentava ser um morador da área agricultável do morro, a leste, e seu semblante tenso denotava indisfarçável preocupação.

            – Minha nossa! – exclamou o desconhecido tão logo chegou ao acampamento – O que vocês estão fazendo aqui?!

            – Estávamos acampando, mas como percebemos que está vindo um temporal, decidimos ir embora. – respondeu Milton, tentando disfarçar a apreensão.

            – E o senhor, quem é? – perguntou Rafael, com desconfiança.

            – Jaime. – respondeu o ancião – Moro do outro lado do morro e estou procurando por um rapaz.

            – Um rapaz?! – exclamou Paulina, arrependendo-se em seguida pelo tom de voz suspeito.

            – Sim. Um rapaz mais ou menos da idade de vocês, alto e de cabelos pretos. – explicou Jaime.

            – Não vimos ninguém. – respondeu Rafael, com rispidez.

            – É verdade. – complementou Milton, o senhor é a primeira pessoa que avistamos aqui no morro.

            – Que loucura! – exclamou Jaime, como se estivesse pensando em voz alta – isso não poderia estar acontecendo. De novo não!

            – Do que o senhor está falando? – questionou Cíntia.

            – Deixem para lá. O que importa é que vocês precisam sair daqui agora mesmo! – respondeu o ancião, apontado para a trilha que conduzia para o declive.

            – Sim, sim... – concordou Milton – Vamos só recolher nossas coisas e...

            – Não há tempo! – interrompeu Jaime, praticamente gritando – voltem amanhã de manhã para buscar suas coisas. Agora vocês precisam ir embora. E depressa!

            Como se para sublinhar de forma tetricamente enfática as palavras carregadas de tensão proferidas pelo velho, um uivo sinistro e enregelante ecoou de algum lugar do morro não perfeitamente identificável, mas que era inegavelmente próximo.

            – Jesus Cristo! – gritou Jaime – Tempo esgotado!

            – Mas de que merda o senhor está falando?! – indagou Rafael, com grande irritação.

            – Que som mais horrível foi aquele?! – perguntou Cíntia, prestes a entrar novamente no estado de descontrole que a afligiu anteriormente.

            O ancião nem sequer ouviu os questionamentos dos jovens, pois já estava se afastando do acampamento de forma extremamente apressada, praticamente correndo.

            – Vamos! Vamos! – gritava Jaime, olhando para trás e gesticulando para que o grupo o seguisse – Com certeza ele já sabe que estamos aqui! Logo, logo vai aparecer!

            O pavor expressado pelo velho ao proferir essas frases era tão claramente perceptível que – aliado a sua atitude inusitada de sair correndo de forma súbita – acabou por contagiar os jovens com uma sensação de perigo iminente, de tal forma que, segundos depois, todos eles estavam correndo também, acompanhando o ancião na fuga de algo que desconheciam, mas que certamente deveria ser terrivelmente ameaçador.

            Provavelmente o grupo de amigos sentir-se-ia aliviado em saber que essa foi a atitude mais sensata que tomaram até então naquele dia, pois, ao correrem, ganharam alguns minutos preciosos que impediram que todos fossem brutalmente trucidados pela monstruosa criatura que emergiu instantes depois da encosta do barranco recoberta de mato que havia bem próxima ao acampamento.

            Quando se sentiu invadida por uma intempestiva curiosidade e decidiu olhar para trás em meio à correria, Paulina vislumbrou algo que preferia jamais ter visto ou sequer sabido que poderia de fato existir. Uma criatura enorme, e de aparência tão desconhecida quanto horrenda, corria com determinação no encalço do grupo, há algumas dezenas de metros de distância. A apavorante visão a perturbou de tal forma que ela acabou tropeçando nas próprias pernas e desabando pesadamente ao chão, gritando de imediato por socorro.

            Enquanto os outros continuaram correndo, Rafael parou e voltou-se para ajudar a namorada. Quando avistou a besta que se aproximava com grande velocidade, o rapaz ficou intensamente perturbado. Em meio ao espanto perante a visão terrificante, lamentou intensamente a própria estupidez. Lamentou por não ter acreditado na fama de maldito daquele lugar, lamentou por ter se apavorado a tal ponto de sair correndo do acampamento sem ao menos levar a espingarda consigo e – principalmente – lamentou pelo destino de Paulina, pois compreendeu que o monstro estava próximo demais e ele nada poderia fazer para salvá-la. Com o coração apertado por uma sensação de pesar e até certa dose de vergonha mediante a própria impotência, Rafael deu às costas para a namorada e desatou-se a correr novamente na direção tomada pelo velho e os demais amigos.

            Chocada e incrédula diante da atitude covarde e desprezível do homem que ela pensou que a amava, Paulina não pronunciou sequer uma palavra. Apenas duas lágrimas melancólicas escorreram dos seus olhos uma fração de segundos antes de a besta saltar sobre seu corpo emitindo um urro triunfal. Então foram os seus gritos que ecoaram pela noite, consolidando o clima de terror que se abatia sobre o vale e motivando o grupo de fugitivos a correr ainda mais desesperadamente.
 
Continua...

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