26 de jan. de 2021

A MÃO VERMELHA


 

Por André Bozzetto Junior

            Padre Hipólito já caminhava em círculos diante da casa canônica há mais de uma hora, quando subitamente uma Belina estacionou com uma freada brusca diante da calçada. Do interior do veículo desembarcou apressadamente um homem de meia idade, com cabelos desgrenhados e barba por fazer. A batina preta não deixava dúvidas quanto à identidade do sujeito, e a sua maneira de caminhar – ligeiramente trôpega – acompanhada do forte cheiro de uísque que parecia impregnar suas vestes deixava claro que os boatos acerca de seu alcoolismo eram mais do que verdadeiros.

            – Padre Hipólito? – inquiriu o recém-chegado, em um tom de voz arrastado.

            – Sim. – respondeu o outro sacerdote, com rispidez – E você certamente é o Padre Sérgio. Eu o aguardo há horas!

            – Vim tão logo o Bispo me ligou... Mas, o senhor sabe, Porto Alegre não fica tão perto e essas estradas são terríveis! Não me admira que o senhor tenha sido o único sacerdote da Congregação que aceitou assumir está paróquia! Que cafundó!

            – Não fale assim! As pessoas daqui são muito simples, mas trabalhadoras e tementes a Deus! Por isso mesmo precisam tanto de nosso suporte espiritual. Mas agora chega de conversa! Logo vai anoitecer e precisamos partir imediatamente para a residência da família Ricci. A fazenda deles fica há 20 quilômetros daqui e a estrada é ainda pior do que aquela que você acabou de cruzar.

            – Certo, certo! Vamos com seu carro ou com o meu?

            – Eu é que não saio com você no volante! Vamos com o meu!

            Enquanto se encaminhavam para o Fusca estacionado na entrada da garagem da casa paroquial, Padre Sérgio retirou um pequeno frasco metálico do bolso da calça oculta sob a batina e bebeu um longo gole no gargalo.

            – O Bispo sabe que você bebe desse jeito?! – inquiriu Padre Hipólito, em tom de reprovação.

            – É claro que sabe! – respondeu o outro sacerdote, sem disfarçar a irritação – E se você conhecesse um pouco melhor o trabalho da Mão Vermelha, concordaria que essa e outras concessões são mais do que merecidas para compensar o tipo de coisa que precisamos fazer!

            – Realmente, nunca fiz questão de saber mais sobre essa ramificação da Mão Vermelha. Aliás, até hoje não compreendo como o Vaticano permite que a nossa Congregação mantenha algo assim.

            – Pois você deveria ser grato por não precisar saber! Goste ou não da ideia, o fato é que o Vaticano não só permite como também subsidia a Mão Vermelha por um único motivo: ela é um mal necessário!

            Padre Hipólito resmungou, contrariado, mas preferiu não levar adiante a discussão. Afinal, ele próprio telefonara ao Bispo pedindo ajuda, e se foi designado em seu socorro aquele sacerdote sombrio e beberrão, decerto era porque ele saberia o que fazer.

            A dupla de clérigos embarcou no Fusca e rumou para a área rural do município através de uma estrada poeirenta e esburacada. O sol descia rapidamente por detrás dos morros no extremo oeste do vale, e o Padre Hipólito remexeu-se inquieto ao volante quando constatou que já seria praticamente noite quando chegassem ao seu destino.

            – E então? – disse o Padre Sérgio, quebrando o silêncio que durava desde o início da viagem – Pode me explicar a situação?

            – Não há muito o que dizer além do que já relatei ao Bispo e que certamente ele lhe informou: Há duas noites atrás, o senhor Ricci veio até mim desesperado, dizendo que a sua filha de dezoito anos havia sido possuída pelo demônio e que eu precisava ajudá-la. Mesmo relutante, acabei indo até lá, mas quando cheguei, ao amanhecer, a moça dormia tranquilamente no porão onde havia sido trancada, sem que houvesse qualquer sinal de anormalidade além do fato de ela estar nua e com o corpo coberto de cicatrizes, que me pareceram antigas.

            – Como eram essas cicatrizes?

            – Não sei lhe explicar, mas eram estranhas. Os pais da moça disseram que essas marcas surgiram no corpo dela algumas semanas antes, quando estava perto do estábulo, ao entardecer e, de repente, desapareceu. Acabou sendo encontrada no meio do mato apenas no dia seguinte, em estado de choque. Até hoje diz não se lembrar do que aconteceu ou como aqueles ferimentos surgiram em seu corpo.

            – Entendo. E depois?

            – Bem, admito que cheguei a desconfiar que alguém estivesse... Abusando da moça e que aquela história de possessão fosse apenas uma desculpa para tentar encobrir a verdade. Saí dizendo à família Ricci que me chamasse novamente caso algo de estranho voltasse a acontecer. Passei o dia inteiro pensando no assunto e cogitei até mesmo ir à polícia solicitar uma investigação, e só não fiz isso porque preferi antes consultar o Bispo, o que pretendia fazer na semana seguinte, quando viajaria até Porto Alegre. Porém, ontem à noite o senhor Ricci reapareceu ainda mais desesperado do que na ocasião anterior, dizendo que estava acontecendo tudo de novo e praticamente me arrastou com ele. Quando chegamos à residência da família, encontrei todos na cozinha, rezando diante de uma imagem da Virgem Maria, e do porão, onde deveria estar trancada a moça, vinham os sons mais terríveis e pavorosos que jamais imaginei que um dia poderia ouvir em minha vida. Aquilo que estava lá embaixo batia furiosamente na porta tentando sair, e só não conseguiu porque o senhor Ricci e seus dois filhos mais velhos pregaram várias tábuas para reforçar o bloqueio.

            – Eu acredito... E o que aconteceu a seguir?

            – Eu juntei-me àquelas infelizes pessoas e entoei súplicas ao Nosso Senhor para que Ele findasse o tormento que se abatia sobre aquela casa. Porém, o terror continuou até o amanhecer, quando o silenciou voltou ao porão. Com muito custo, convenci a família a destrancar a porta e, pedindo proteção a Deus, desci até lá embaixo. Como na noite anterior, a moça estava dormindo pesadamente, como se nada tivesse acontecido. Em seguida, corri de volta à cidade e liguei para o Bispo contando tudo. Foi então que ele me assegurou que enviaria imediatamente alguém para auxiliar-nos. No caso, você.

            – Perfeito. Acho que já sei do que se trata. Mas, você deve prevenir aquela família para o pior. Creio que esse não seja um simples caso de possessão e, se eu estiver certo, podem ser necessárias medidas drásticas.

            Mediante as graves palavras do outro sacerdote, Padre Hipólito cogitou pedir esclarecimentos, mas desistiu ao se dar conta que já estavam chegando à casa da família Ricci. Neste momento, o sol já havia se posto e a noite apossava-se da situação. Quando a dupla de clérigos adentrou a residência, encontrou o casal e os dois filhos mais velhos reunidos na cozinha, aparentando enorme apreensão. Por detrás da porta que isolava a escada de acesso ao porão, uma chorosa voz feminina se fazia ouvir:

            – Me deixe sair, pai! Estou com medo de ficar aqui!

            – Abram essa porta! – ordenou Padre Sérgio.

            – Mas já anoiteceu... – ponderou o senhor Ricci – E quando anoitece o demônio encarna nela!

            Sem dizer mais nada, Padre Sérgio abriu a porta com truculência e desceu ao porão em companhia apenas do colega de sacerdócio. Logo a dupla de clérigos avistou a garota encolhida em um canto do porão e bastou uma rápida análise nas cicatrizes que ela ostentava pelo corpo para que o membro da Mão Vermelha compreendesse que as suas piores previsões estavam corretas.

            – Suba e comece a confortar aquelas pobres pessoas. – disse Padre Sérgio, retirando um revólver de dentro da maleta que trazia a tiracolo – Para salvar a alma desta jovem, precisaremos condenar o seu corpo.

            – Mas o que você está fazendo, seu louco! – gritou Padre Hipólito, arrancando a arma das mãos do outro – Eu mandei chamar um exorcista e não um assassino!

            – Me devolva essa arma, Padre! Compreenda que essa garota não está sendo possuída por demônio algum! Ela foi atacada por um licantropo e agora apenas a prata pode purificar seu corpo e libertar sua alma!

            Padre Hipólito tentou retrucar algo, mas sua voz foi completamente encoberta por um urro aterrador que ressoou vindo da direção de onde se encontrava a moça. Os dois sacerdotes olharam simultaneamente para aquele canto e puderam ver por entre as sombras do ambiente a silhueta enorme do monstro horrendo que se aproximava rapidamente. Antes que os clérigos pudessem fugir ou esboçar a menor das reações, a criatura agarrou o Padre Hipólito pelo pescoço, suspendeu-o no ar e arremessou-o de encontro à parede, no outro lado do ambiente.

            Por sua vez, Padre Sérgio acompanhou com os olhos aquele insólito vôo humano, muito mais interessado na arma que o outro tinha em mãos do que em qualquer outra coisa. Quando Padre Hipólito desabou pesadamente sobre um barril que se encontrava no extremo oposto do recinto, o revólver escapuliu de suas mãos e, com uma agilidade surpreendente para alguém que instantes antes parecia completamente bêbado, Padre Sérgio ajuntou-o do chão e no segundo seguinte já o tinha apontado para a cabeça da monstruosa criatura. Um único tiro ecoou pelo porão, acompanhado de um uivo de agonia que pareceu emanar do próprio inferno.

            Quando o Padre Hipólito conseguiu se levantar, com notável dificuldade, constatou perplexamente que não havia mais monstro algum no ambiente. Em seu lugar, jazia o corpo lívido e ensanguentado da filha caçula da família Ricci.

            – Por Cristo! E agora?! – indagou o chocado sacerdote.

            – Agora suba até lá e console aquela família. É isso que lhe cabe. – respondeu Padre Sérgio, em um tom grave e ao mesmo tempo melancólico.

            – E você?!

            – Eu tenho as mãos vermelhas, lembra, Padre? Vermelhas de sangue. Eu faço o serviço sujo... E meu trabalho aqui já acabou. Esperarei lá fora.

            Sem dizer uma palavra, Padre Sérgio cruzou pelo angustiado grupo de pessoas na cozinha e saiu para o pátio. Bebeu de uma só vez todo o conteúdo que ainda restava em seu pequeno frasco metálico e depois se sentou na beira da estrada. Puxou um amassado maço de cigarros do bolso e permaneceu fumando em silêncio enquanto ouvia o choro convulsivo e os gritos desesperados que vinham do interior da casa. A família já estava sabendo da verdade.

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