Por André Bozzetto Junior
Um casal de ecologistas (Coffin Souza e Denise V.) decide passar um final de semana em uma ilha supostamente deserta localizada no Rio Uruguai, mais especificamente na divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Após alguns breves instantes de descontração e lazer, os namorados se deparam com uma macabra infestação de zumbis – tão apodrecidos quanto esfomeados – e que parecem brotar de todos os recantos da ilha após terem sido despertos de seu sono sepulcral por uma demoníaca sacerdotisa (Rose de Andrade). Quase ao mesmo tempo, um sádico psicopata vestido de mulher (Coffin Souza, em seu segundo papel no filme) também aparece na ilha trazendo consigo uma “loirinha” (Cláudia de Sordi) para servir de vitima às suas devassas torturas. Não tardará para que eles também se deparem com a horda de mortos-vivos ansiosos por carne fresca.
Essa é a síntese do enredo de “Zombio”, média-metragem dirigido pelo catarinense Petter Baiestorf em 1999 e que, ao lado de “O Monstro Legume do Espaço” (também de Baiestorf) se constitui em um dos maiores clássicos cult do cinema de horror independente brasileiro. Talvez o maior de todos.
Creio que falar sobre a trajetória de Baiestorf seja desnecessário. Basta lembra que o cara produziu, roteirizou e dirigiu dezenas de filmes desde o início da década de 1990 até hoje, sempre com orçamentos miseráveis e pouquíssimos recursos, mas com muita criatividade e garra, mantendo sempre um pé calcado no horror escatológico e outro no experimentalismo subversivo e contestador.
Mas voltando a “Zombio”, parece-me não ser exagero afirmar que ele sintetiza de forma emblemática tudo aquilo o cinema independente brasileiro tem a oferecer aos apreciadores dessa modalidade de manifestação artística oriunda do underground: crueza estética, edição tosca e atuações irregulares aliadas a doses consideráveis de ousadia, invencionice e o mais importante, muita diversão.
Em termos técnicos, a qualidade da imagem deixa a desejar, mas nem poderia se esperar outra coisa de uma filmagem feita em VHS, sem quaisquer recursos de iluminação (além de tochas e fogueiras!). Contudo, a meu ver, o aspecto mais negativo está concentrado naquilo que costuma ser exatamente o problema mais grave da grande maioria das produções realizadas de forma amadora: o áudio. Em alguns momentos o vento que sopra na direção do microfone da câmera provoca um ruído desagradável que prejudica a compreensão de certas falas. Além disso, a trilha sonora – apesar de muito bem escolhida, composta quase que totalmente por músicas de heavy metal extremo – foi editada com base em cortes secos, o que acarreta um estranho baque e uma sensação de descontinuidade a cada mudança de cena onde a música aparece em primeiro plano.
Porém, para quem aprecia esse tipo de produção, as limitações técnicas não são suficientes para impedir o transcorrer de 45 minutos de pura diversão. Até porque, Baiestorf conseguiu imprimir ao seu filme um ritmo dinâmico, de forma que, após o primeiro zumbi aparecer em cena, a ação não para mais. É correria, gritos e sangue até o final, ou seja, a reprodução da fórmula clássica que o diretor implantou desde o seu primeiro filme: horror explícito, com direito a muitas tripas e mutilações em paralelo com um humor negro, ácido e debochado.
Entre os aspectos positivos, impossível não mencionar as atuações de Coffin Souza, que em termos de interpretação se encontra visivelmente em um patamar superior aos demais atores com os quais contracena, de forma que seus personagens acabam roubando todas as atenções a cada vez que surgem na tela. O divertidíssimo personagem “Gaúcho” interpretado pelo saudoso Jorge Timm é outro que merece destaque, pois me fez gargalhar continuamente durante todo o período em que esteve em cena. Inclusive existe uma semelhança significativa entre esse personagem e aquele interpretado pelo mesmo ator no recente “Vadias do Sexo Sangrento”. Seria coincidência?
Algumas ideias também foram desenvolvidas de forma criativa e interessante, como a encarniçada luta entre zumbis e a hilária “chapadeira” que acomete os seres humanos ao serem mordidos pelos mortos-vivos. O final também me agradou bastante, principalmente por fugir do lugar comum instituído pela reprodução dos clichês dos filmes do mestre George Romero e investir em algo meio “lovecraftiano”.
Mas no final das contas, o que mais me surpreendeu mesmo foram os zumbis. A caracterização das criaturas – a cargo de Carli Bortolanza, habitual colaborador de Baiestorf - ficou realmente muito boa, lembrando logo de cara os efeitos dos mortos-vivos de filmes como os clássicos “Zombie” de Lucio Fulci e “Burial Ground” de Andrea Bianchi. Fulci chega mesmo a ser homenageado explicitamente nos créditos finais, confirmando a perceptível influência que o cineasta italiano exerceu sobre a obra de Baiestorf. A admiração pelos efeitos especiais se torna ainda maior quando levando em consideração o fato de que o orçamento do filme foi, de acordo com o próprio diretor, de cerca de R$ 300,00 (em valores da época) o que prova que criatividade e empenho podem resultar em muita coisa legal, mesmo quando não se dispõe de grandes recursos. A cena em que os zumbis aparecem levantando de suas sepulturas é de longe a minha favorita, não apenas por remeter diretamente ao já mencionado filme de Lucio Fulci, mas também por conferir à obra um clima realmente tétrico e sinistro.
Apenas a título de curiosidade, uma informação complementar que creio ser interessante de mencionarmos aqui diz respeito a dúvida que me acometeu ao ver nos créditos do filme a distinção entre os nomes “César Souza” e “Coffin Souza”, uma vez que todos sabem que ambos são a mesma pessoa. Intrigado, entrei em contato com Baiestorf pedindo qual era a lógica por trás disso, e a resposta que ele me enviou foi tão hilária que vale a pena transcrevê-la na íntegra: “A lógica dos nomes Cesar Souza e Coffin Souza é a mesma de Petter Baiestorf e Uzi Uschi, ou seja, nenhuma... (nem sei por que a gente coloca isso, talvez pra confundir, mas nunca pensamos nisso). Talvez na época tinha alguma piada (que era fazer parecer que os dois papéis eram feitos por caras diferentes e não pelo mesmo ator), mas faz tanto tempo que não sei mais o porque...”. Surreal!
Por fim, vale lembrar que “Zombio” foi lançado em DVD em uma edição especial que traz no mesmo disco o longa-metragem “Eles comem sua carne” (1996), além de uma grande quantidade de extras como making off, trailers, curtas-metragens e pequenos documentários com histórias de bastidores. Ou seja, um produto simplesmente indispensável para os apreciadores do cinema underground brasileiro.
Contatos com Petter Baiestorf: baiestorf@yahoo.com.br
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