Por André Bozzetto Junior
– Ora, mas que surpresa agradável! Vini! Meu velho amigo Vinicius! – exclamou Roberto ao abrir a porta de forma receptiva.
– Olá, Roberto. Eu estava passando casualmente por aqui e vi que tinha luz na casa. Então resolvi parar e pedir como está a pequena Taís.
– Mas claro! Entre, entre! Você não vai acreditar: a Taís está ótima! Completamente curada!
– É mesmo?! Graças a Deus! Então todos esses meses de quimioterapia em Porto Alegre trouxeram resultado...
– Na verdade a quimioterapia ajudou pouco. A cura estava em outro lugar. Mas, sente-se! Aguarde um minuto até que pego algo para bebermos.
Enquanto Roberto se afastava, Vinicius não pode deixar de perceber alguns nuances estranhos em seu comportamento. Ele estava agitado, se movendo de forma quase frenética e falando em um tom de voz que era ao mesmo tempo alto e apressado, evidenciando uma empolgação que não era comum a sua habitual conduta discreta e austera. “Deve estar exultante em função da recuperação da filha”, pensou.
Roberto retornou trazendo dois copos de uísque. Entregou um nas mãos de Vinicius e sentou-se na poltrona diante dele.
– Vini, vou lhe contar algo incrível! – disse o anfitrião, com um grande sorriso nos lábios e um brilho inquietante no olhar – Você não vai acreditar no que eu descobri! Lembra-se dos tempos de faculdade, quando comentávamos sobre os índios Kyngá?
– Mais ou menos. Lembro de algumas especulações que foram levantadas em meio às discussões antropológicas. Pelo que eu sei trata-se de uma lendária tribo de guerreiros nômades que vagava por toda a região meridional. Parece-me que seria uma derivação dos Kaingang.
– Não! – retrucou Roberto, com certa rispidez – Apenas o tronco linguístico é o mesmo. É um grupo completamente diferente. Tanto que enfrentou os Kaingang e os Guarani na “Grande Guerra dos Pampas”, que ocorreu antes da chegada dos espanhóis.
– Pode ser... – disse Vinicius, com constrangimento – Você sempre se interessou mais pelo estudo dos povos indígenas do que eu. Mas, de qualquer forma, lembro-me também que na época os professores alertavam para o fato de que não havia evidências científicas que atestavam a real existência dessa tribo.
– Pois saiba que eles estavam errados! – gritou Roberto, saltando da poltrona com grande empolgação – Eu os encontrei! Sim, depois de exaustivas e onerosas buscas eu finalmente encontrei a tribo Kyngá no interior de Bagé!
– Você encontrou os descendentes daqueles índios...?
– Não! Eu encontrei a tribo original! O grupo que já circulava por estas terras séculos antes da chegada dos europeus!
– Mas, Roberto... Como seria possível? – questionou Vinicius, tentando dissimular suas crescentes desconfianças quanto à saúde mental do amigo.
– Eles não morrem, Vini... – sussurrou o anfitrião, com os olhos arregalados e expressão nitidamente perturbada – Pelo menos não do mesmo jeito que as pessoas normais!
A partir desse momento, Vinicius desistiu de tentar dissimular suas preocupações. Levantou-se do sofá de forma abrupta e caminhou na direção do amigo.
– Escute, Roberto... Será que você não está bebendo demais? Espero que não se ofenda, mas penso que...
– Eu posso provar, Vini! – interrompeu Roberto, sacudindo o visitante pelo braço – Posso provar com facilidade! Ou melhor: a Taís vai lhe provar!
– A Taís?! Que relação ela tem com essa história?
– Foram os Kyngá que a curaram, Vini! Por Deus, foi preciso um grande sacrifício, mas eles a curaram! Marta sabia que valeria a pena se sacrificar!
– Marta?!
– Sim, a minha esposa, Marta. Ela concordou com tudo.
– Roberto, eu não entendo o que você está dizendo...
– Nós precisávamos provar aos Kyngá que éramos dignos de receber a ajuda deles. Então Marta aceitou se sacrificar. Ela foi devorada, Vini! Foi devorada por toda a tribo em um grande banquete lunar! Mas foi por uma boa causa.
– Meu Deus, Roberto! Você está louco! Está completamente louco!
Vinicius se desvencilhou e deu dois passos na direção da porta, fazendo menção de que iria embora. Porém, Roberto tornou a agarrá-lo pelo braço – desta vez de forma mais agressiva – e puxou-o através de um pequeno corredor que conduzia a outro aposento. Contrariado, o visitante preparava-se para protestar quando, já em um quarto diferente, teve diante de si a visão mais bizarra da qual poderia se recordar em seus trinta e poucos anos de vida.
O aposento em que tinham acabado de adentrar possuía todas as paredes e janelas revestidas por pedaços de isopor e caixas de ovos, que desempenhavam a clara função de proporcionar um isolamento acústico ao ambiente. No meio do quarto havia um único objeto: uma jaula de pouco mais de dois metros de altura, composta por grossas e robustas barras de ferro. No seu interior estava Taís, a filha de Roberto. A menina, que tinha oito anos de idade, usava um vestido azul com detalhes em branco. Os cabelos loiros que pendiam em cachos de sua cabeça eram escassos, se comparados a outras épocas, e denotavam a fragilidade natural decorrente de um tratamento quimioterápico. Contudo, esse era o único sinal de debilidade que Vinicius identificou na criança. Em todos os outros aspectos ela parecia muito bem, de forma que o visitante chegou a supor intimamente que ela parecia possuir naquele instante uma vivacidade maior do que em qualquer outro momento do passado. Porém, havia algo em seus grandes olhos azuis que gerava desconforto. Um brilho anormal, que parecia denotar um misto de força, ódio e até mesmo perversidade. Vinicius – que até então vinha sendo dominado por uma crescente sensação de angústia – teve um calafrio e sentiu suas pernas vacilarem sutilmente ao ser encarado pela menina.
– Roberto, eu não sei o que significa tudo isso... Mas eu vou embora e chamarei a polícia! Chamarei a polícia agora mesmo!
– Ora, Vini! Não seja tão melodramático! – exclamou Roberto, com um sorriso doentio realçando-lhe as feições – Você está assim por causa da jaula? Pois saiba que ela é provisória. Estou confiante de que, dentro de pouco tempo, a Taís vai aprender a lidar melhor com a sua nova natureza e então não precisarei mais prendê-la. Creio que em breve ela poderá circular livremente, mesmo nas noites de lua cheia, como hoje.
– Meu Deus! Eu não...
– Lobisomens, Vini! – interrompeu Roberto, com um gesto teatral – Os Kyngá são todos lobisomens. Não é a toa que foram chamados em outras épocas de “Os Guerreiros da Lua Cheia”. Agora a minha pequena Taís é como eles... Não vai mais envelhecer, não vai mais adoecer... Nem vai morrer, desde que tenha o cuidado de evitar a prata. Mas convenhamos: essa é uma precaução perfeitamente aceitável, não é mesmo?
Vinicius permaneceu em silêncio. Estava pasmo com as palavras delirantes do amigo. Sua única vontade era ir embora. Mas Roberto interveio de forma providencial.
– Certo, certo! Estou vendo que o seu ceticismo só aumentou com o passar do tempo, Vini! Já vi que minhas palavras não bastam para convencê-lo. Está esperando um prova para finalmente acreditar, não é mesmo?! Pois que assim seja!
Rapidamente, Roberto se embrenhou através do mesmo corredor através do qual havia conduzido o visitante e, depois de breves instantes que para Vinicius pareceram uma eternidade, retornou trazendo no colo um filhote de pastor alemão. Aproximou-se de jaula e colocou o pequeno cão para o lado de dentro. Em seguida, dirigiu-se para a menina – que observava o animal com um sorriso macabro nos lábios – dizendo:
– Vamos, Taís! Mostre para o tio Vinicius a sua força! Mostre! Mostre!
Prontamente, a menina consentiu, primeiro emitindo um urro tão potente que pareceu impregnar o ambiente de forma ensurdecedora, e em seguida entrou em um processo de metamorfose tão horrendo e desconcertante que fez com que Vinicius inconscientemente recuasse até a parede levando as mãos à cabeça, consternado. Diante do olhar apavorado do visitante e do sorriso triunfante do pai, o corpo delicado da criança se transformou em um ser monstruoso, coberto por uma espessa pelagem marrom e possuidor de presas e garras tão longas quanto afiadas. Seus olhos adquiriram tons avermelhados que pareciam flamejar e potencializar o brilho odioso e perverso de outrora. Dentro de poucos instantes, não havia mais nenhum vestígio da menina. Em seu lugar estava tão somente um monstro de feições lupinas aterradoras, tão grande que mal cabia na jaula.
O pequeno cachorro – que até então tentava fugir desesperadamente se espremendo contra a tela de arame que revestia a parte inferior da jaula – foi agarrado pelo lobisomem que, em um gesto tão ágil quanto brutal, enfiou-o inteiro dentro de sua enorme bocarra e o mastigou de forma grotesca, fazendo os ossos estalar e o sangue verter por entre seus lábios hediondos.
O horror desta visão foi demais para a mente abalada de Vinicius. Entregando-se definitivamente ao pânico, ele gritou de forma estridente e desesperada, para em seguida partir em uma fuga alucinada através do corredor. Atravessou a sala rapidamente e, quando chegou à porta principal da residência, começou a chorar de desespero ao constatar que a mesma estava trancada e a chave não estava ali. Sequer teve tempo para cogitar uma via de escape alternativa. Sentiu uma dor aguda na parte de trás da cabeça e depois tudo foi envolvido pelo silêncio e pela escuridão.
– Estúpido! – vociferou Roberto, empunhando o martelo ensanguentado com o qual atingira o antigo colega de faculdade – Pessoas como você querem tanto conhecer a verdade, mas quando a tem diante dos olhos não conseguem suportar o peso da revelação. Gente assim não é digna de conhecer os mistérios que rondam por entre as sombras da noite.
De forma um tanto desajeitada, Roberto começou a arrastar o corpo de Vinicius para o quarto da jaula, deixando para trás um pegajoso rastro de sangue no assoalho.
– Pelo menos amanhã a minha querida Taís não precisará comer carne de cachorro...
* Conto publicado originalmente no livro Extraneus - Vol. 2: Quase Inocentes (org. M.D. Amado), de 2011.
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