31 de mai. de 2021

AVOA, VINGANÇA!

 

 

Por Alan Cassol

 

            Era clara aquela noite na zona rural de Nova Erechim. Clara era a visão das estrelas. Cintilante sorria a Lua sobre a velha casa de telhado laranja. Bom, não posso deixar de lembrar das pegadas deixadas quando eu subia com os calçados embarrados. O telhado era a fuga para um paraíso desconhecido, uma espécie de lar onde eu ainda não sabia, mas procurava encontrá-lo olhando para o horizonte escuro, exceto quando avistava a luz do lampião do velho Ricardo, um vizinho distante, mas à noite tudo parecia perto e audível.       

            Era janeiro. Não era incomum a tv passar filmes da série “Sexta Feira 13” nas noites sábado. E foi numa noite de sábado que assisti Jason Voorhees arrancando uma cabeça com apenas com um soco. Meus dois primos: Cássio e Leandro, os irmãos, viam comigo. Minha avó já estava na cama. Meu tio, com seu palheiro vertendo cinza sobre as almofadas, dormia e acordava como se estivesse em um pesadelo melhor que sua realidade ébria e cancerígena. A garrafa de 51 sempre deitada sobre as pernas.

            Quando senti que nenhum deles daria falta de um menino de 7 anos, porque os olhos dos primos não desgrudavam da TV e o tio só renasceria do pesadelo - ou da vida - na manhã seguinte quando a vó o acordaria com um tapa no joelho para buscar lenha, como acontecia todo domingo. Escalei a pitangueira e saltei para o telhado. O som das corujas me fascinava. Pensava se os animais noturnos não sentiam medo do escuro, mas era o meu medo deles sentirem medo que me preocupava; entendo hoje. Lá em cima estava tudo calmo. Pensava no que seria de mim no futuro. Na verdade, eu queria uma luz que me fizesse seguir para uma estrada de teclas de piano, onde tudo seria música para acalmar os animais noturnos. Cada passo seria um chamado sonoro para uma nova realidade, bem longe de qualquer lugar que trouxesse lembranças de uma breve vida isolada de qualquer sinal de afeto. Mas uma luz apareceu naquela noite de janeiro. A luz do velho Ricardo balançava em um trote que parecia ser em direção ao paiol de sua propriedade.

            Fiquei observando a luz do lampião até ela parar de se mover. Um brilho saia da janela do paiol. Velho Ricardo nunca ia até lá à noite, mas não achei estranho, afinal, por que seria? O que me fez gelar o estômago foi o silêncio dos animais, algo que também nunca acontecia, mas isso sim foi estranho. O mundo se calou no interior da minúscula Nova Erechim. Alguns instantes depois da luz se aquietar perto da janela do paiol, ela começou a piscar, mas foi de um jeito que pareceu ser alguém passando e voltando na frente dela. O mais estranho foi quando ela subiu pro segundo andar do paiol, que cobria metade do espaço, sem que a escada fosse usada, e eu sabia muito bem onde a escada ficava. Não resisti à curiosidade que me dominou como se fosse “aquela” canção que eu tanto procurava. Desci do telhado, dei a volta por trás da casa para ninguém me ver, fui ao porão, peguei o lampião alimentado por querosene e me coloquei no rumo do paiol do Ricardo. E aquele silêncio.

            A poeira da estrada de chão contrastava com a luz do lampião. Naquela época não chovia há mais de 20 dias. A colheita estava comprometida. O banho de rio era resumido em pequenas poças. Nada parecia ser real para mim. A vida era aquela estrada escura e cheia de pedregulhos traiçoeiros, mas havia um agravante naquele momento: barulho de asas batendo sobre a minha cabeça. Aquele som constante me acompanhou até a porteira do rancho do velho Ricardo e parou. Passei o lampião pelo arame farpado e pulei para o lado de dentro me apoiando na estaca de madeira que servia de alicerce para o cercado. A porta do paiol estava escancarada. Fui entrando lentamente e não foi preciso mais que dois passos para avistar o velho Ricardo caído perto da janela lateral, a janela que brilhou para mim.

            Hesitei por uns 2 minutos até que tive coragem de me aproximar. Chamei pelo nome dele. Nada. Chamei de novo: nada. Comecei a suar e pensei em sair correndo, mas desisti da ideia e me agachei ao lado de Ricardo. Os olhos estavam abertos e imóveis. Nenhum sinal de movimento. Peguei na mão dele para tentar levantá-lo, puxá-lo, ou sei lá o que eu queria fazer naquele momento. Constatei: estava diante de um defunto.

            Ricardo perdeu o filho dois anos antes daquele dia. Henrique, de 28 anos, estava voltado de Nova Erechim a pé, a distância era de 3 quilômetros até o rancho de seu pai, e quase 4 da casa de minha vó. Ele foi atropelado, e seu algoz sequer parou para socorrê-lo. Nunca souberam quem o atropelou. Aquilo decretou o fim da vontade de viver do velho Ricardo. Anos antes, de infarto, a esposa partiu da existência terrestre, e o choro foi em dobro por conta de um resultado positivo para câncer de pulmão. Era Ricardo e Henrique, agora, não era mais ninguém.

            Olhando para aquele corpo no chão, me transportei para um mundo onde não havia dor e culpa, porque tudo era silencioso e o ar amaciava os pulmões com um sopro doce e frio. A morte não era novidade para mim. Talvez a minha necessidade de sair daquele lugar era o desejo de reencontrar meus pais me esperando sobre uma plataforma, e, logo depois, me levar para um portal brilhante, adentrando numa atmosfera sem maldade, sem brigas, sem agressão. Uma dúvida pairou e voltei para o paiol. “Como o lampião foi parar no andar de cima?” – pensei. Subi pela escada e lá estava a luz, mas ela não estava sozinha. Uma coruja me fitou. Os olhos dela estavam vermelhos, mas foram voltando à forma normal aos poucos. Com seus olhos amarelos e brilhantes, ela alçou voo e sumiu na noite. Lembro de ter ficado com muito medo, o que me fez tomar o rumo da casa da vó, correndo.

            O silêncio daquela noite permitia ouvir meus batimentos cardíacos. Estava correndo, trotando. “O que vou dizer? Como vou explicar que o Ricardo estava morto? Foi a coruja que levou o lampião para cima?” Meus olhos estavam embaçados pelo suor e lágrimas, eu estava cego, meu lampião ficou para trás. Subitamente, bati em alguma coisa e cai. Sangue escorria do joelho esquerdo. “Bruno, meu pai morreu!” – disse Leandro. “Ele não morreu, seu maldito. Estamos indo à cidade chamar a ambulância” – a voz esperançosa era do Cássio, o mais novo. Ainda estava deitado quando eles disseram para eu correr ajudar a vó, que estava sozinha com meu tio. Os dois sumiram dentro da escuridão. Se para a dor ou para a esperança, nem eles sabiam.

            Cheguei em casa ofegante. Demorei 2 minutos para conseguir falar alguma coisa. Minha vó estava sentada no sofá, segurando a mão do meu tio. Ele estava morto. Leandro estava certo. Ouvi o chirriar da coruja. Fui para fora da casa e a avistei sobre um galho da pitangueira. De novo ela me fitou com os olhos vermelhos. Ela saiu do galho e pousou do meu lado. Caminhou em círculos, olhou mais uma vez, com os olhos amarelados e brilhantes, e sumiu na noite não mais silenciosa. Era possível ouvir o coaxo dos sapos e a água correndo na sanguinha. A vida noturna voltara ao normal, como se a morte fosse o despertador.

            Na manhã seguinte, com a ambulância levando o corpo do meu tio e do velho Ricardo para o necrotério, fui eu quem buscou a lenha para o fogão. Fui eu quem preparou as malas. Fui eu que deixei na memória as faces vermelhas e ensopadas de Leandro e Cássio para até nunca. O beijo na testa de minha avó foi o último adeus. Fui levado para a “casa de crianças órfãs”, de onde saí aos 16 anos para trabalhar em uma fábrica de ração para animais. No trajeto entre a casa da avó e Nova Erechim, tive a companhia dela voando lá longe, mas como se estivesse acompanhando para ter certeza de que eu ficaria bem. “Chegou o dia, estou saindo desse lugar”.

            Anos depois, já adulto, retornei à Nova Erechim para regularizar alguns documentos. É claro que nunca mais vi a coruja, mas aquele olhar nunca saiu de mim. O paiol do velho Ricardo. O lampião flutuando e piscando. Tudo foi um aviso, um chamado. No cartório, que funcionada no mesmo prédio da delegacia, consegui convencer a me deixarem olhar o atestado de óbito do meu tio, do velho Ricardo e, já que estava na mesma sala, por que não o boletim de ocorrência do Henrique.

            Descrevo aqui um pequeno trecho da ocorrência:

 (...) O veiculo perdeu o controle após atropelar a vítima, saiu da estada, derrubou algumas dezenas de pés de milho e esmagou um tronco apodrecido no chão. Nas entranhas do tronco, um ninho de coruja, com dois filhotes já sem vida. Ao lado, uma garrafa de cachaça Pirassununga 51contendo o liquido ainda intacto (...)

            Tudo ficou claro sobre quem havia atropelado Henrique. Mas o que reluto em acreditar, com as faculdades mentais ainda em saudável funcionamento, é se, de fato, a coruja esteve por trás disso tudo. Hipoteticamente pensando, ela foi responsável pelo alivio da dor do velho Ricardo, da justiça contra meu tio e da minha saída daquele lugar. Imagino se foi as vezes que ela me observou no telhado procurando um horizonte, ou se foi só vingança. Quem sabe, foi de uma mãe que perdeu os filhos, para um filho que perdeu os pais. De qualquer maneira, obrigado, velha coruja. Que você também esteja em paz.

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