24 de mai. de 2021

O RELATO DE ARLINDO PAVAN

 

Por André Bozzetto Junior

 

 

Bento Gonçalves, 12 de julho de 1902

Prezado Senhor,

            Se minha vontade foi cumprida de acordo com o meu testamento, este manuscrito chegou às suas mãos após a minha morte. Se assim não o for, peço a gentileza para que interrompa a leitura e o desconsidere. Contudo, se minha ordem foi devidamente obedecida, recomendo que leia o texto até o final, pois creio que o relato que faço aqui é de grande importância para esclarecer um misterioso caso ocorrido há dez anos atrás lá pelas bandas da Campina Velha, do qual muita gente ouviu falar, mas que apenas uns poucos sabem da verdade. Lembro-lhe que, embora tenha tido excelentes tutores na infância, não sou um homem das letras, mas apenas um fazendeiro, e escrevo como tal. Seja tolerante, portanto, com o que julgar deficiente em minha redação. Também destaco que não gastarei tinta a papel para tentar convencer-lhe de que aquilo que afirmo aqui é verdade. Prefiro acreditar que a minha reputação é suficiente para lhe assegurar a seriedade com que traço estas linhas.

            Meu envolvimento com essa história iniciou na noite em que os senhores José Colognese e Ademar Pecatti compareceram à minha casa pedindo ajuda. Como deve saber, eles são os proprietárias das fazendas São Luís e Montes Claros, as duas maiores da região da Campina Velha. Contaram-me a assombrosa história do misterioso animal que vinha atacando por aquelas bandas. Segundo as palavras dos assustados senhores, mais de uma dezena de vacas já havia sido morta, além de quatro cavalos e quatro cães. E o pior: três pessoas já tinham sido vitimadas pelo bicho desconhecido, sendo dois capatazes da fazenda Montes Claros e até o senhor Miguel Colognese, pai de José e fundador da fazenda São Luís.

            Ao longo de onze meses, a mortandade de animais continuou, apesar de ocorrerem com intervalos de algumas semanas entre as fases de ataques. Nesse período, vários grupos de caça foram montados, tendo inclusive o senhor Pedro Paulo Escopel, Chefe de Polícia, participado da maioria deles. Nada foi encontrado. Parecia que a fera simplesmente desaparecia durante o dia, e, durante a noite, ninguém se animava a realizar buscas muito além dos limites das propriedades. Embora não admitissem, o medo tomava conta de todos e os impedia de se embrenharem no interior da floresta encoberta pela escuridão.

            Conhecendo a minha fama de hábil caçador, aqueles homens vieram até mim implorando para que eu os ajudasse a dar cabo do animal assassino. Mencionaram as histórias que circulavam pela região sobre as onças que matei e disseram que, se havia alguém capaz de pegar o bicho que tanto os atormentava, esse alguém era eu. Ofereceram-me dinheiro, juntas de boi e potros como recompensa. Sensibilizado, eu disse que iria, muito mais pela vontade de ajudar e pela curiosidade que o dito animal me despertava do que propriamente pelo pagamento. Contudo, apressei-me em dizer não achava possível que uma onça fosse a responsável pelos ataques, pois embora elas costumeiramente possam matar ovelhas e novilhos, não é comum que o façam com cavalos e gente. Nunca vou me esquecer da expressão de medo daqueles homens ao acenarem com suas cabeças, concordando comigo.

            Hospedei-me na fazenda São Luís, na qual chegamos na tarde seguinte, e sugeri que iniciássemos a caçada naquela mesma noite. Porém, o senhor José sugeriu que esperássemos para a noite posterior, onde teríamos lua cheia. Concordei, pois todos sabem que ao luar a visibilidade é muito melhor, a ponto de, por vezes, podermos até dispensar o uso de tochas e lampiões. Apenas no dia seguinte fui entender que o motivo da sugestão era outro. Percebi isso quando o senhor José ofereceu-me um revólver. Analisei-o com curiosidade e constatei espantado que ele estava carregado com balas feitas de prata. Meu anfitrião então explicou que essa arma estava em posse de seu pai na noite em que ele foi morto. Acabou contando-me também que alguns peões afirmavam ter visto um animal enorme e cinzento correndo sobre duas patas pela campina em certas noites em que ocorreram mortes de gado. Todos por ali já tinham ouvido os medonhos uivos da criatura pelas madrugadas e estavam convencidos de que se tratava de um lobisomem. Por isso a tal fera nunca era encontrada durante o dia, por mais que se vasculhasse a região com dezenas de homens e cão farejadores.

            Surpreso, respondi que não acreditava em assombração e coisas do tipo, mas se a ideia lhe agradava, eu levaria a arma comigo. Afinal, percebi que as balas estavam bem calibradas e, se fosse necessário, teriam a mesma serventia de quaisquer outras.

            Quando escureceu nos preparamos para sair e percebi com espanto que apenas José e Ademar me acompanhariam. Segundo eles, os peões estavam muito amedrontados e preferiam ser mandados embora a ter que vir conosco. Resignados, embrenhamo-nos na mata, que, naquela altura, já estava debaixo da luz esbranquiçada da lua cheia. Seguindo a lógica, andamos sempre na direção do rio, mas caminhamos por quase uma hora sem nada encontrar.

            Em certo momento, José anunciou que estávamos nos aproximando do local onde o pai dele havia sido morto, e foi ali que as coisas aconteceram. Antes que os meus companheiros se dessem conta, ouvi o som de folhas sendo pisadas e vi um vulto se movimentando no interior da mata, como se estivesse tentando nos cercar. Adverti aos outros, mas quase que instantaneamente a fera surgiu detrás das árvores e agarrou Ademar, arrastando-o para e escuridão. Eu e José corremos naquela direção, mas bastaram alguns momentos de hesitação, onde não atiramos por receio de ferir nosso companheiro, para que a besta o destroçasse com suas presas e garras afiadas. Era uma criatura horrível, enorme e furiosa como eu jamais vira. Ela largou o corpo despedaçado de Ademar e saltou na direção de José. Apavorado, o pobre homem nem mesmo tentou atirar. Jogou sua espingarda no chão e correu em desespero na direção do rio. Confesso que, diante de visão tão pavorosa, senti vontade de fazer o mesmo.

            Porém, para a sorte de todos, esse momento de fraqueza me dominou por apenas um curto instante. Ergui minha espingarda na direção da fera, que corria à minha direita, e atirei. Disparei quatro vezes e tenho certeza que acertei todos os tiros. A besta rugiu, cambaleou, chegou mesmo a cair, mas logo se levantou com um salto e partiu velozmente para cima de mim. Deus deve ter me iluminado nessa hora, pois fui muito rápido em largar a espingarda e sacar o revólver que trazia na cintura, carregado com as balas de prata que pertenceram ao pai de José. Esperei até a fera chegar bem perto, tão perto que eu pude sentir o seu bafo fedorento em meu rosto, e então atirei. A bala acertou a besta na cabeça, pouco acima do olho esquerdo. Rosnando, ela caiu centímetros ao meu lado, de forma que aproveitei para disparar mais três vezes contra suas costas. Foi então que presenciei a cena mais impressionante da minha vida: o corpo sem vida da besta se transformou em um homem!

            Nesse instante, José já havia ajuntado sua espingarda e se aproximava desconfiadamente. Foi ele quem primeiro reconheceu a fisionomia daquele cadáver corpulento e grisalho. Acredite-me, Senhor, pois eu estava lá e também vi com os meus próprios olhos: era o padre Rômulo! Todos ficaram espantados quando, cerca de um ano antes, o vigário desaparecera sem deixar vestígios ao atravessar a floresta. Depois de meses de buscas incessantes e sem resultados, ele foi finalmente dado como morto. Porém, ali estava o sacerdote aos nossos pés, nu, ensanguentado e dessa vez, realmente sem vida.

            Como esse triste destino foi se abater sobre o padre é algo que nunca ficamos sabendo, da mesma forma que também desconhecemos o local em que ele se escondia durante o dia, de forma a não ser encontrado pelos inúmeros grupos de busca que varreram a floresta durante tanto tempo. De comum acordo, José e eu decidimos enterrar o corpo do vigário ali mesmo, e manter essa pavorosa revelação no mais absoluto segredo. Apenas nós é que deveríamos carregar este terrível fardo.

            Depois daquela noite, as mortes na região da Campina Velha cessaram por completo, embora com o passar dos anos eu tenha ouvido relatos de outras semelhantes em diversas partes do nosso Rio Grande. A ideia de um dia encontrar outra criatura como aquela no meio da mata passou a me assustar de tal forma que abandonei definitivamente minhas atividades de caça, em uma atitude que gerou muita controvérsia e desconfiança entre todos que me conheciam. As pessoas não se conformavam com o fato de que o maior caçador que já haviam conhecido simplesmente passou a odiar a ideia de se embrenhar na floresta novamente, e sempre que o assunto vinha a tona, exigiam algum tipo de explicação de minha parte, algo que me recusei a fazer durante todo esse tempo, mas o faço agora, através deste manuscrito, ao saber que não me restam mais muitos dias de vida.

            Rogo para que dê crédito às minhas palavras e compreenda minha atitude, Prezado Senhor, e, se possível, inclua meu nome em suas orações noturnas. Espero ter, depois de morto, a paz que vem me faltando nesses últimos dez anos de minha vida.

            Que Deus o abençoe!

             Ass: Arlindo Pavan

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