4 de jun. de 2021

A OESTE DA CIVILIZAÇÃO

 

 

Por Petter Baiestorf

 

            O Calor fritava meus pés, queimando-os impiedosamente. Meus sapatos furados haviam ficado para trás há quarenta quilômetros. Derretiam sob o insaciável apetite do sol escaldante. Uma mistura de sangue coagulado com suor e sujeira parecia fazer uma proteção natural, uma espécie de casco que funcionava como um escudo que me protegia das dores proporcionadas pelos cascalhos afiados da imensidão seca, sádica, daquele imenso deserto que eu insistia em atravessar.

            Cambaleando, continuava minha travessia rumo ao nada. Um nada que podia representar um tudo.

            Estava cansado, confuso, quase descrente nas palavras do Profeta do Oeste. Nunca siga um profeta, você pode perceber a burrada que fez somente quando for tarde demais para retornar ao seu próprio caminho.

            Mesmo cansado, exausto, a única coisa que fazia era seguir em frente, sempre em frente. Sempre rumo ao horizonte que dançava à minha frente, tremulando pela ação do Sol, tal qual uma miragem infernal. Sol que nunca dava tréguas. Horizonte lá longe, sempre a minha frente, sempre cozinhando aos quarenta e sete graus. Nenhuma sombra, somente calor, cascalhos, cactos, espinhos, galhos secos e animais peçonhentos.

            O vento batia em meu rosto enrugado, empoeirado, cicatrizado pela vida. Caminhava quase parado, deixando que os pensamentos me conduzissem a um estranho transe onde não parecia ter mais dúvidas, nem perguntas indecifráveis.

            Lembrava-me do cão sarnento de perna quebrada, magricela igual à Morte, que balançava alegremente sua cauda pela água podre que dei para que bebesse, há mais ou menos duzentos quilômetros atrás. Mas logo os pensamentos cessaram. Fome. Estava sem comer há mais de três dias. Minha última refeição havia sido uma sopa de cactos com pedaços de escorpião.

            Caminhava cambaleante, feliz que as crostas em meus pés aliviavam minha dor. Não sentia mais nem o calor angustiante que me torturava há vários dias. O silêncio fazia cantigas anarquistas ecoarem por minha cabeça. Cantigas tristes, lamúrias de cancioneiros sofridos que tentavam educar o povo com suas letras realistas.

            Muitos esqueletos humanos estavam espalhados pelo chão. Alguns, recém falecidos, ainda iriam entrar em colorida decomposição. Outros, tomados por vermes, já serviam de alimento aos abutres. Abutres eram uma espécie de ave, e aves, até onde lembrava, podiam ser comidas. Pegava minha atiradeira e alguns cascalhos, mas, desprovido de forças, só conseguia fazer com que as majestosas aves dessem pulinhos de um lado pro outro. Ignorava-me por completo. Estava fraco demais. Não conseguia mais nem atirar pedrinhas com uma atiradeira, algo que até crianças de cinco anos conseguiriam.

            Fome.

            Ajoelhava-me ao chão. Largava a atiradeira que já era apetrecho inútil. Com o resto de minhas forças arrastava-me até um dos muitos corpos em decomposição.

            Fome.

            Minhas mãos trêmulas agarravam um pedaço do braço podre de um defunto. Levava a podridão a minha boca animalescamente. Meus bons modos eu já havia esquecido quilômetros atrás, em alguma encruzilhada do destino. A carne podre não tinha paladar nenhum. Mastigava aquela pasta gosmenta sem gosto só a engolindo para tentar viver mais algumas horas.

            Com alguma coisa no estômago, lembrava-me quem eu havia sido.

            Lembrava-me da minha história. História estúpida, cheia de sofrimento e escolhas erradas. Lembrava-me dos poderosos que haviam me comprado com seu ouro. Lembrava-me de tudo. Lembrava-me que fui capataz de grandes fazendeiros. Era tocador de gado e, logo depois, Capitão do Mato. Lembrava-me do massacre contra sem-terras que comandei a mando dos patrões. Lembrava-me de cada uma de minhas mais de cinquenta vítimas. Lembrava-me dos corpos de pobres miseráveis que fiz arder nas chamas da injustiça. Lembrava-me dos policiais que ajudaram no massacre. Dor. Lembrava-me que num momento de lucidez me rebelei contra os patrões e havia sido caçado do mesmo modo que cacei pretos, índios e toda sorte de párias sociais que só queriam um pouco para sobreviver. Lembrava-me como fugi para a cidade grande, como mendiguei de porta em porta. Lembrava-me da fome e de como conheci um homem autointitulado Profeta do Oeste e de como me iludi com as suas palavras, enquanto ele reinava comodamente, alimentado por seus seguidores.

            Lembrava-me do dia em que o grande Profeta do Oeste convenceu seus seguidores a iniciarem a jornada em busca da Terra Prometida. Lembrava-me que fui um de seus seguidores, pois naquele momento preenchia meu vazio existencial. Lembrava-me que era apenas mais um tolo seguindo um lunático. Lembrava-me do instante que o Profeta do Oeste tombou sem forças, morrendo agonizantemente de fome, parando então a marcha para lugar nenhum. Lembrava-me como um bando de cegos esfomeados ficou sem rumo naquela terra árida. Lembrava-me do tolo que fui, e que agora era o último dos seus seguidores, o último perdido neste deserto de misérias.

            Todos os cadáveres ao meu redor eram dos discípulos do profeta que acabou seus dias como alimento dos urubus, possivelmente a coisa mais útil que já fez.

        Então, alimentado da carne putrefata de um cadáver desconhecido, percebia que os urubus estavam se aproximando de mim, todos com olhares de inebriante vitória, olhares que devoravam o pouquinho de esperança que ainda trazia comigo.

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