Por André Bozzetto Jr
Enquanto carregava a espingarda com cartuchos retirados de uma pequena caixa de papelão, Sandoval recapitulava a estranha história em sua mente desconfiada. Tinha sido no mês passado que os problemas começaram. O sítio do Claudiomiro foi o primeiro a ter seu galinheiro atacado na calada da noite. Treze galinhas mortas, meio comidas, despedaçadas, com sangue e penas para todo o lado. Ninguém viu nada, mas parecia obra de algum bicho, ainda que não se soubesse qual. Raposa, lobo-guará e leãozinho baio não era. Esses todo mundo já sabia como agiam, e estavam ficando cada vez mais raros. Aquilo lá tinha sido ação de alguma coisa diferente.
Naquela mesma semana, o galinheiro da fazenda do seu Anacleto também foi atacado de madrugada. Dessa vez mais de vinte galinhas foram feitas em pedaços, algumas devoradas ali mesmo. Os empregados disseram que escutaram o barulho, mas era algo tão horrível que ficaram com medo de ir olhar. Um deles correu pelos fundos da propriedade até a casa grande e acordou o patrão. Mas, até o seu Anacleto – que já está bem idoso – levantar e pegar a espingarda, o bicho tinhoso já tinha ido de volta para o mato, e ninguém conseguiu ver que desgrama era aquela.
Depois o negócio mudou. Nas três semanas seguintes, outros galinheiros de fazendas dos arredores foram “visitados” altas horas da noite, mas não houve mais matança. As galinhas simplesmente sumiram. Não todas, mas várias. E, por desgraça, ninguém nunca via o desnaturado responsável pela safadeza. Nem sequer os cachorros das propriedades conseguiam intimidar. O povo começou a falar que isso não era coisa de bicho, mas sim de gente, daquele tipo bem sem vergonha. Era um ladrão de galinha, filho de uma égua! Mas, e nas propriedades do Claudiomiro e do seu Anacleto, por que matar as bichinhas ao invés de roubar? Devia ser por sacanagem, vingança de alguém que tinha raiva deles e queria assustar. Talvez algum ex-empregado ou um vizinho invejoso. Então as galinhas não teriam sido meio devoradas como se pensou no início, mas apenas estripadas e mutiladas, provavelmente com uma peixeira. Tinha que ser obra de um patife bem desavergonhado!
Na realidade, todo mundo dava algum palpite, mas ninguém tinha certeza de nada. Algumas pessoas falavam de um mendigo, um andarilho, ou algo assim, que estava perambulando pelas redondezas há alguns dias. Era comum aparecer gente de fora pedindo emprego nas fazendas, mas aquele só pedia comida e bebida. Já tinha sido posto a correr de várias propriedades por andar espreitando, e se desconfiava que pudesse ser ele quem andava roubando as galinhas da região. Sandoval já tinha visto o sujeito pelas estradas, mais de uma vez. Era velho, sujo, maltrapilho e tinha cara de quem não era nada confiável. Poderia muito bem ser ele o ladrão safado.
A inquietação de Sandoval piorou quando, há dois dias atrás, foi dar comida para suas galinhas e percebeu que quatro haviam sumido do galinheiro. Seria a sua vez de ser vítima do larápio? Não iria admitir! Na noite anterior ele tinha bebido alguns copos de vinho a mais, e mesmo que os cachorros tivessem latido, ou se fizesse algum outro barulho, não teria como ouvir por causa do sono profundo. Mas, dali para diante, pretendia se manter muito atento e fazer o que fosse preciso para que o gatuno sem vergonha tivesse o que merecia.
Naquela tarde, Sandoval foi para a cidade resolver alguns negócios, e, quando voltou, deu de cara com o andarilho dentro de sua propriedade, mais especificamente, na estradinha de terra entre a casa e o galinheiro. “Aí está o larápio desavergonhado!” resmungou ele, saltando da caminhonete sentindo o sangue lhe ferver nas veias. Sem pensar duas vezes, partiu para cima do mendigo e, não lhe dando tempo de dizer qualquer coisa, o atingiu com um soco que o derrubou na estrada poeirenta, para em seguida lhe desferir uma saraivada de violentos pontapés.
Enquanto o velho maltrapilho gemia, quase se engasgando com o próprio sangue que lhe inundava a boca, Sandoval o arrastou pela gola do casaco imundo e o jogou para fora da porteira do sítio.
– Suma daqui, seu ladrão vagabundo! – gritou Sandoval, um instante antes de dar meia volta e retornar para o interior de sua propriedade – Se aparecer de novo nas minhas terras, vai levar é chumbo!
Naquela mesma noite, Sandoval pegou no sono na poltrona da sala. Não havia bebido tanto vinho, então se acordou de supetão quando seu velho cachorro Tufão começou a latir e uma agitação anormal teve início lá pelos lados do galinheiro. Desconfiado, retirou a espingarda do suporte na parede e a lanterna da gaveta da cômoda.
– Será que mesmo depois de uma surra daquelas o vagabundo teve coragem de voltar aqui para me roubar?! – resmungou sozinho Sandoval, enquanto se dirigia de forma atenta, mas rápida, em direção ao galinheiro.
Talvez por ter percebido que chamou a atenção, ou simplesmente por já ter pego o que queria, o ladrão não estava mais no galinheiro quando o fazendeiro chegou lá. Porém, o cacarejar das aves roubadas e o som de galhos quebrando fez com que Sandoval apontasse o facho da lanterna na direção da mata, de forma que ele pode ver ao longe – ainda que por um breve momento – o indivíduo que corria entre as árvores levando uma galinha em cada mão.
Apesar da distância, da escuridão e do rápido momento em que o ladrão foi iluminado pela lanterna, Sandoval não teve dúvidas: era um menino, de doze, ou treze anos, no máximo. Talvez fosse filho daquela gentalha que vivia do outro lado do rio, uns três quilômetros ao sul. De qualquer forma, não adiantava tentar segui-lo e nem ir tomar satisfação no barraco da família. O ideal era pegar no flagrante e, com isso, ter justificativa para lhe aplicar uma boa surra. Era isso que Sandoval pensava. Daria uma surra e tanto no moleque, pelas galinhas roubadas e pelo fato de ele ter batido à toa no mendigo. Não que ele se importasse com um andarilho vagabundo ou estivesse com remorso, mas apenas porque odiava se sentir enganado.
Era com esses pensamentos em mente – e com a espingarda recém-carregada escorada na poltrona – que Sandoval bebia vinho e aguardava pelo retorno do ladrãozinho salafrário. Sim, porque eles sempre retornam. A tentação de se obter algo sem precisar trabalhar e nem pagar é muito grande. Ainda mais nesse caso, onde Sandoval julgava ser visto como um simples velhote beberrão e solitário, fácil de se passar a perna. Ah, mas aquele moleque safado não perderia por esperar!
E foi com esse estado de ânimo que o fazendeiro acabou pegando no sono na poltrona, embora não quisesse. Mais tarde, acordou sobressaltado, sem saber por quanto tempo estivera dormindo. O velho relógio de parede marcava que tinham se passado cinco minutos da meia-noite. Lá fora, Tufão latia furiosamente. Sandoval levantou da poltrona e se aproximou da janela a tempo de ver o cachorro correndo na direção do galinheiro. Com toda certeza, o ladrão havia voltado!
Com a arma em mãos, o fazendeiro abriu a porta e saiu, tentando ser o mais silencioso possível. Dessa vez havia poucas nuvens no céu e a lua cheia se encarregava de iluminar palidamente a paisagem, de forma que a lanterna era dispensável. De repente, um grito terrível ecoou pelo ar, fazendo o sangue de Sandoval lhe gelar nas veias. Foi um berro realmente muito assustador, mas rápido, sendo logo interrompido e substituído por uma espécie de rosnado animalesco e igualmente pavoroso.
Enquanto ouvia também o barulho das galinhas cacarejando e se debatendo – parecendo apavoradas – Sandoval viu Tufão passar correndo por ele, ganindo desesperadamente. Pela porta entreaberta, ele viu o aterrorizado cachorro entrar na sala e se enfiar debaixo do sofá, como se sua vida dependesse de um bom esconderijo.
Mesmo sentindo suas mãos tremendo sensivelmente enquanto seguravam a espingarda, Sandoval continuou andando lentamente na direção do galinheiro, mais motivado pela raiva e pela mórbida curiosidade do que propriamente pela coragem. Quando finalmente chegou, viu as galinhas em pânico, se jogando contra as tábuas e os arames, mas também viu algo mais. Era o menino. Mas, ele não estava roubando. Na verdade, não roubaria nada, nunca mais, pois seu corpo estava estirado em meio a uma poça de sangue no gramado, tão terrivelmente mutilado que o fazendeiro teve certeza de que aquilo que o atacou jamais seria um ser humano. Aquilo era coisa do Tinhoso em pessoa!
Finalmente se deixando dominar pelo mais completo pavor, Sandoval se virou para correr de volta na direção da casa, mas não teve tempo. Algo surgiu das sombras e o agarrou pela parte de trás do pescoço, suspendendo-o no ar e em seguida o arremessando a dois ou três metros de distância. O fazendeiro aterrissou de costas no chão, sentindo, além da dor, o fôlego lhe abandonando. A espingarda havia voado para longe, de modo que a sua única chance seria tentar levantar e correr, mas não seria possível. Aquela coisa enorme e peluda surgiu sobre ele rosnando e o atingiu com um golpe na cabeça, que quase o fez desmaiar.
Sentindo o sangue escorrer pelo rosto, Sandoval fez menção de tentar se pôr em pé, mas foi mais uma vez brutalmente golpeado. Percebeu então que alguns dentes estavam quebrados. Talvez o maxilar também. Caído no chão úmido pelo orvalho da noite e dominado pela dor, o fazendeiro conseguiu vislumbrar a face hedionda e animalesca da criatura que o encarava cheia de ódio e, em meio àqueles traços monstruosos, teve a impressão de distinguir algo de conhecido, algo que lembrava o rosto do andarilho que ele espancara ali mesmo, naquele local, dois dias antes. Ele queria gritar, de dor e desespero, mas as garras afiadas e bestiais que se cravaram em sua garganta lhe sufocaram a voz, para sempre.
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