1º Ciclo
Por André Bozzetto Jr
Acordei com a minha vó gritando no
corredor: “Sandro? Sandrinho! Você não vai na Feira? Já passa das quatro horas
da tarde, menino!”
Quando abri os olhos senti um tipo
de tontura e uma leve dor de cabeça. Sabia que não devia ter tomado cerveja na
hora do almoço. Eu fui diagnosticado com TOC ainda na infância e, você sabe, há
uns vinte anos atrás não se tinha tantos recursos como agora, a medicina não
era tão avançada. Daí a minha mãe me inscreveu num programa de voluntários para
testar medicamentos psiquiátricos e eu tenho tomado vários tipos de remédios
diferentes desde então. Inclusive, faz duas semanas que comecei a tomar um
novo. Eu me mantive no programa mesmo depois de ter completado 18 anos, porque
os remédios realmente me ajudam bastante. Nas vezes em que tentei ficar sem
tomar nada, acabou não dando certo e me senti muito mal. Só que os médicos
sempre disseram que não deveria ingerir bebida alcoólica. Os últimos, por
sinal, foram taxativos em relação a esse novo medicamento. Mas, porra, todo
mundo sempre bebendo e eu nada?! Esse fim de semana está cheio de parentes de
fora hospedados aqui em casa porque está tendo na cidade a tradicional Feira da
Mandioca que ocorre a cada dois anos e sempre vêm gente de tudo quanto é lugar
para participar. Daí o meu pai fez um baita churrasco de meio-dia e eu tomei
sim umas cervejinhas porque também não sou de ferro.
Depois do banho a dor de cabeça
passou e a sensação de vertigem pareceu diminuir. Quando cheguei na cozinha, a
mulherada estava alvoroçada, preparando a janta para aquele bando de parentes.
Andando de um lado para o outro – e falando todas ao mesmo tempo – estavam a
minha mãe, minha avó, duas tias e a Raiana. No caso, a Raiana é a minha esposa.
Eu sei, tanto ela quanto eu temos apenas 22 anos e seríamos bem novos para
casar, tendo em vista que hoje em dia o pessoal casa cada vez mais tarde, mas
decidimos depois de ela ter engravidado. Sabe como é, famílias tradicionais e
tal... Quando ela perdeu o bebê, apenas duas semanas depois do casamento, muita
gente disse que seria o fim da nossa relação, mas não foi nada disso que
aconteceu. Além de muito gata, a Raiana é uma guria muito gente fina, que
sempre entendeu os meus problemas e me apoiou. Nós nos damos bem pra caralho.
Me sinto grato em ter ela na minha vida.
– Você não queria assistir a
Mostra Cultural? – me perguntou ela, passando por mim com uma travessa cheia de
panquecas.
– Quero sim. – respondi.
– Então vai logo. Já deve estar
começando.
– Você não vai comigo?
– Vou depois, com os seus pais.
Agora preciso ajudar a organizar as coisas por aqui.
Nesse ano alguém teve a ideia de
fazer uma Mostra Cultural – ou Show de talentos, algo assim – em pleno sábado
de tarde, no palco principal da Feira. Com apresentações de corais, grupos de
dança, cantores locais e coisas desse tipo. Mas o que todo mundo estava
curiosíssimo para assistir era um curta-metragem amador feito por uns garotos
do Ensino Médio alardeado na divulgação do evento como “O primeiro filme
inteiramente produzido na cidade, com equipe e elenco locais”. Na verdade, a
curiosidade era mais em tom de zoação, porque o pretenso roteirista e diretor
do filme era um garoto chamado Vítor Venganno, um cara esquisito, de 17 ou 18
anos, que anda sempre vestido de preto, com brinco e cabelo comprindo, do tipo
que todo mundo tira onda e vive debochando. Ele sempre andou por aí com mais
dois ou três caras do mesmo estilo dele, do tipo que passa o dia falando sobre
bandas de metal pesado e filmes de terror, mas que não devem ter comido mulher
nenhuma até hoje.
– Você vai assistir o tal filme
daqueles retardados? – perguntou o Samuel, meu irmão, entrando na cozinha em
companhia do nosso primo, Cláudio. Ambos tinham latas de cerveja nas mãos e
estavam claramente alterados.
– Vou sim. – respondi – Vi no
folder que começa logo antes do anoitecer, às 18 horas.
– Nós também vamos. – disse o
Samuel – Quero só ver a merda que aquelas bichinhas fizeram.
– Como é mesmo o nome do filme? –
perguntou Cláudio.
– Dillo... alguma coisa. – respondeu
o meu irmão, dando risada.
– “Dillodokers”. – expliquei –
Está escrito no panfleto que deixaram ali na frente.
– Que porra de nome é esse?! –
resmungou Samuel, balançando a cabeça.
– Deve ser o nome de uma banda de
“rock pauleira” que os cabeludos inventaram! – disse o Cláudio, rindo – Vai ver
que o filme é tipo um clipe deles tocando uma música que nem do Sepultura ou
dessas merdas como das camisetas que eles usam!
– Imagina o fiasco! – retrucou
Samuel, emendando uma gargalhada.
E assim, rindo daquele jeito que
todo bêbado costuma rir, os dois saíram pela porta da cozinha. Lá de fora ainda
escutei o Cláudio falando “Sabe aquele tal de Vítor? O diretor do filme? Ouvi
dizer que lá na escola os caras do futebol enfiaram a cara dele dentro da
privada e puxaram a descarga!”, e o Samuel emendou “Já ouvi falar que fizeram
coisas bem piores com aquela bichinha!”.
Eu disse para a Raiana ir me
encontrar diante do palco principal quando chegasse na Feira, pois eu estaria
lá assistindo o aguardado filme. Dei um beijo na mãe e também na vó e depois
fui caminhando em direção ao Parque de Eventos. Ficava distante apenas três
quarteirões da nossa casa. Percebi que o céu estava ficando mais escuro, como
se fosse chover.
As ruas estavam lotadas de gente
para tudo quanto era lado. A cidadezinha não tinha nem 5 mil habitantes, mas
durante as edições da Feira da Mandioca se dizia que até 25 mil pessoas
circulavam por ali. Parece que o povo adora tudo que tem a ver com mandioca. É
mandioca cozida, mandioca assada, bolo de mandioca, churrasco de mandioca,
sorvete de mandioca, suco de mandioca, leite de mandioca, cerveja de mandioca e
assim por diante.
Quando cheguei no Parque de
Eventos, tive a impressão de que, além do pessoal de fora, 90% da cidade já
estava ali. Adultos andando com crianças chorando e esperneando para lá e para
cá, jovens bebendo e dando risada, velhos observando tudo com olhos arregalados
e fofocando. Tudo normal. Só eu que não me sentia totalmente normal. A dor de
cabeça tinha praticamente passado, mas aquela sensação de leve vertigem
continuava. Além disso, tinha alguma outra coisa que eu não estava
identificando ao certo. Seria a porra do remédio?
O palco principal ficava debaixo
de uma espécie de lona de circo amarela e gigante. De um lado havia um telão
igualmente gigantesco e do outro um bar improvisado onde vendiam cervejas e
refrigerantes. Tinha vários outros telões menores espalhados pelo parque e,
pelo que pude perceber enquanto circulava por ali, todo mundo estava ansioso
para assistir o “filmeco dos cabeludos maconheiros”, como ouvi uma guria esnobe
dizendo.
Naquele momento estavam ocorrendo
as apresentações musicais. Uma menina magricela estava no centro do palco cantando
uma música da Cássia Eller com uma voz de taquara rachada extremamente
desafinada. “Quem sabe eu ainda sou uma garotinhaaaaa!” O pessoal na plateia
morrendo de rir. Nas cidadezinhas do interior o negócio não é fácil. Todo mundo
conhece todo mundo, então, ou você mata um leão por dia e se supera, ou sempre
vai ter alguém para apontar o dedo e falar dos seus defeitos. É foda.
Eu mal havia chegado ao bar para
pedir um refri, quando uma voz empolgadíssima começou a gritar às minhas
costas. “Sandro! Sandrinho, meu velho!” Era o Carlinhos, meu grande amigo de
infância, que eu já não via há uns dois anos.
– Caramba, velho! Não sabia que
você vinha! – falei, dando um abraço no meu camarada.
– Decidi em cima da hora. – disse
o Carlinhos – Cheguei agora mesmo. Encontrei o seu irmão lá perto do portão e
ele falou que você estaria aqui. Senão teria ido até a sua casa.
– E como estão as coisas lá em
Porto Alegre?
– Tudo beleza. As vendas estão
super boas. E você, cara, como está?
Daí eu falei que estava tudo certo.
Contei que estava no segundo ano da faculdade de Direito e trabalhando no
escritório de advocacia da nossa família. Na verdade, eu já trabalhava lá como
office boy desde os 14, então, era o caminho natural. Falei que a Raiana estava
na faculdade de Educação Física e dando aula de aeróbica e zumba na academia,
porque ela era boa pra caralho. Estávamos muito bem, a Raiana e eu.
Daí o Carlinhos já pegou duas
cervejas no bar e me alcançou uma. Fiquei meio assim, se devia beber ou não,
mas, porra, era o meu grande amigo que tava ali! Beber uma ou duas valia à
pena. Não ia dar nada.
Então começamos a conversar sobre
tudo quanto era assunto, principalmente relembrar histórias engraçadas do
passado. O Carlinhos era mestre em imitar os outros e, para cada um dos nossos
antigos colegas de escola, ele tinha uma bobagem específica para falar e fazer
suas imitações. Logo a minha barriga já estava doendo de tanto dar risada.
Quando o Carlinhos foi dar uma
mijada, voltei a prestar atenção no palco. Um moleque loiro cantava uma música
da Legião Urbana. Até que não foi tão mal. Quando terminou, quase ninguém
aplaudiu, mas pelo menos não foi vaiado. Pelo horário, deduzi que na sequência
viria a exibição do filme. Então o Carlinhos voltou com mais cervejas.
– Você lembra daquela vez que
fomos no baile com o Chevette lotado e na volta acabou a gasolina? – perguntou
ele, com a voz já meio enrolada.
É claro que eu lembrava. Essa era
a melhor história de todas. A performance do Carlinhos para relatar os fatos e
imitar as falas e trejeitos dos envolvidos era sensacional. Impossível não
chorar de tanto rir.
E foi nesse clima, entre cervejas
e gargalhadas, que o meu interesse no tal curta-metragem dos garotos da escola
subitamente diminuiu. Até porque, pelo que percebi, ninguém fez qualquer tipo
de introdução. Simplesmente as luzes do palco foram desligadas e a exibição
começou. Olhei de relance e vi as letras vermelhas, tipo aquelas de abertura de
filmes de terror, surgindo sobre um fundo preto. “Dillodokers”. “Roteiro e
direção: Vítor Venganno”. O povo todo ali ao redor parecia muito compenetrado.
– Lembra daquela vez que o Gordo
cagou nas calças?! – perguntou Carlinhos, emendando uma gargalhada em seguida.
– Caralho! E como esquecer?! –
respondi empolgado, deixando cair a latinha de cerveja.
E então o filme foi completamente
ignorado por mim e pelo meu amigo. Continuamos bebendo e rindo, não sei por
quanto tempo exatamente, até eu perceber que havia alguma coisa errada.
O primeiro fato bizarro que notei
foi um sujeito grandalhão e careca que estava bebendo no canto esquerdo do bar.
Ele pegou uma lata de cerveja, abriu de forma apressada e virou tudo de uma vez
só. Amassou a lata, pediu outra e fez a mesma coisa. Depois de novo, e de novo.
Deve ter esvaziado umas seis ou sete latas em um minuto. Enquanto bebia,
parecia que ficava cada vez mais agitado e ansioso. Xingava os caras do bar
porque demoravam para lhe entregar as cervejas, e tomava tudo de forma tão
desesperada que ia derramando boa parte pelo rosto e pelo peito. De repente,
outras pessoas começaram a fazer exatamente a mesma coisa. Era como se tivessem
sido acometidos por uma sede maluca, ou algo assim.
O grandalhão careca, cada vez mais
irritado com a velocidade que lhe entregavam as latas – que, no entender dele,
estava muito devagar – pulou o balcão do bar e começou ele próprio a pegar as
cervejas no freezer. Os funcionários tentaram impedi-lo e um princípio de
tumulto teria se formado, se outra coisa ainda mais caótica não tivesse
acontecido. Do nada, muita gente começou a fazer a mesma coisa. Sem mais nem
menos, dezenas de pessoas começaram a invadir o bar, abrir as bebidas e tomar
tudo ali mesmo, como se não houvesse amanhã. E eram homens, mulheres, crianças,
velhos, de tudo.
Virei para o Carlinhos, querendo
saber o que ele achava dessa loucura toda e então senti um calafrio quando
percebi um olhar alucinado no rosto dele. Sem dizer nada, ele simplesmente
correu na direção do bar, abrindo caminho aos empurrões entre o pessoal que se
acotovelava ali, pulou o balcão e começou a disputar latas de cerveja com os
outros ensandecidos. Quando conseguia pegar alguma, enfiava na boca com
desespero, antes que alguém tentasse tirar da mão dele e beber por primeiro.
Olhei ao redor, com uma sensação
de angústia cada vez maior, e vi que algo assim estava acontecendo em várias
partes do parque ao mesmo tempo. Em uma estradinha lateral tinha outro bar,
menor, que ficava dentro de uma casinha de madeira. A invasão lá estava tão
insana que as tábuas das paredes começaram a ceder, até que, de tanta gente
batendo, empurrando e balançando, o negócio inteiro desabou e uma multidão se
espremeu sobre os freezers disputando as bebidas. Do lado de fora do lonão
principal havia várias barraquinhas de comida enfileiradas e elas também
estavam sendo atacadas. Parecia que o surto de loucura coletiva queria comida
também e não só bebida. As pessoas pegavam bolos, pães, doces e tudo que era
tipo de coisa e devoravam de forma voraz, como animais selvagens. Tentavam
tirar as coisas das mãos umas das outras e, quando algo caía no chão, comiam o
mais rápido que podiam, antes que alguém pegasse. Nessa ânsia, engoliam junto
pedaços de grama, terra e o que mais tivesse pelo chão.
O mais impressionante era que, em
meio a esse caos, algumas pessoas permaneciam indiferentes, assistindo ao filme
tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo. O filme! Foi só naquele
momento que percebi que ele parecia não ter diálogo nenhum. Apenas um ruído
esquisito e contínuo saía das caixas de som, tipo o barulho de uma máquina
estranha ou talvez um objeto de metal sendo arrastado sem parar em um piso de
concreto. Algo assim. Não dava para saber se o som era do próprio vídeo ou
alguma interferência no sistema.
De forma meio automática, olhei
para o telão mais próximo. A imagem – muito ruim, como se gravada com uma
câmera VHS vagabunda – mostrava apenas o interior escuro de um local que
parecia um galpão abandonado, cheio de tralhas e sujeira espalhadas pelo chão.
E aquele som! Aquilo parecia cada vez mais alto e angustiante.
Eu não fazia a menor ideia do que
estava acontecendo, mas a sensação era terrível. Era como uma certeza interior
de que algo muito pior do que aquela bizarrice ainda estava por vir. Aquilo
parecia ser apenas o começo.
Então a Raiana me veio à mente.
Onde ela estaria? Já deveria ter chegado, certamente. Naquele momento, me
pareceu que nada poderia ser mais importante do que encontrá-la. Se algo de
terrível estava ocorrendo ali, eu precisava protegê-la.
Comecei a andar em direção à
entrada do parque e o show de horrores foi ficando cada vez pior. Tinha gente
de quatro no chão, comendo grama como se fossem vacas pastando. Gente revirando
as latas de lixo e comendo tudo que achavam dentro. Então eu vi! Meu Deus! Eu
vi uns caras devorando um dos gansos que ficavam no lago que havia no interior
do parque! Apertei o passo, quase correndo para me afastar dali o quanto antes,
e no caminho segui encontrando pessoas que assistiam ao filme nos vários telões
espalhados, como se não se dessem conta do que acontecia ao redor. Ainda não
tinha anoitecido, mas o céu estava cada vez mais escuro. Estranhamente escuro.
– Esse filme é realmente
impressionante! – dizia uma adolescente olhando para a tela, com expressão
maravilhada.
– Tem certeza que foi feito por um
pessoal daqui? – questionava um homem ao lado, que devia ser o pai dela,
igualmente impressionado.
Novamente tive o impulso de olhar
para a tela. Continuei vendo apenas a imagem da câmera se movendo pelo ambiente
escuro e sujo, com aquela merda de som ao fundo, cada vez mais alto.
A minha atenção foi dispersa
quando alguém trombou em mim. Eram dois garotos, de 11 ou 12 anos. Eles tinham
as mãos cheias de... cheias de merda! O fedor não deixava dúvidas!
– Lá no banheiro os vasos
transbordaram e tem um monte de merda boiando! – disse um deles com empolgação
– É só ir lá e pegar!
Em seguida os dois seguiram
adiante, comendo aquela bosta pastosa e nojenta com grandes bocadas, como se
fosse a coisa mais gostosa do mundo.
Me escorei num poste e vomitei.
Será que aquela porra toda era real? A vertigem que eu sentia desde que tinha
acordado parecia cada vez mais forte e aquele som – do filme ou do que quer que
fosse – contribuía para deixar tudo mais angustiante. Sentia uma necessidade de
formular uma explicação racional para aquele caos, mas não tive como, porque a
loucura coletiva atingiu um novo nível a partir dali.
Além de pessoas comendo e bebendo
tudo que encontravam pela frente em meio a outras que permaneciam impassíveis,
de olho na tela, agora tinha gente tirando a roupa e que, depois de nus,
começavam rapidamente – sem qualquer conversa prévia – a transar umas com as
outras! De repente o parque virou um festival de surubas e orgias. Tinha gente
nova trepando com gente velha, homem com homem, mulher com mulher, parente com
parente... tem coisas que não deveriam ser vistas, que não deveriam ser
lembradas.
O meu desespero para encontrar a
Raiana foi ficando cada vez maior. Eu sequer cogitava tentar conversar com as
pessoas que estavam concentradas no filme e pedir se elas não estavam se dando
conta do que acontecia. Gostaria que alguém tivesse alguma explicação, mas,
naquele momento, urgente mesmo era só encontrar a minha esposa.
Então eu vi o João, nosso vizinho.
Ele vinha andando com olhar perdido, como se estivesse em algum tipo de transe
ou estado de choque.
– João! João! Você viu a Raiana?
– Vi sim. – disse ele, com uma voz
estranha – Está ali do lado daquele barracão, fodendo com um cara.
Senti o meu corpo inteiro gelar
quando ouvi aquilo. Pensei em pedir mais detalhes, mas não deu tempo porque,
sem mais nem menos, o João começou a tirar a roupa e correu em direção a um
grupo de pessoas que fazia uma orgia debaixo das árvores ali do lado.
Corri ao local que ele havia
indicado. Atrás do galpão, bem no canto, tinha um cara com roupa de ciclista,
com a bermuda abaixada até os tornozelos, mandando ver em uma mulher nua que
estava no chão, de quatro. Com o coração quase saindo pela boca, cheguei até lá
e vi – para o meu grande alívio – que não era a Raiana. Na verdade, eu conhecia
aquele cara. Era dono de uma loja de artigos de informática e aquela mulher era
sua... bem, é melhor deixar para lá.
Quando voltei para o caminho que
levava à entrada do parque, vi uns caras dando ré em uma caminhonete e batendo
com a carroceria de encontro ao muro de contenção de um dos vários lagos
artificiais que haviam no local. Com isso, a água começou a escorrer para fora
e, como era numa descida, logo se formou uma espécie de tobogã aquático na
grama. Várias pessoas – nuas – começaram então a deslizar para baixo rindo e se
divertindo, até chegar na borda do caminho, que já começava a virar um lamaçal.
Lá alguns punham-se a transar, outros ficavam apenas chafurdando no barro, como
se fosse a coisa mais divertida do mundo.
Eu estava cada vez mais chocado.
Se não bastasse aquele show de horrores, ainda sentia aquela vertigem estranha.
E o som que não parava?! Aquele maldito som! Tinha sérias dúvidas sobre por
quanto tempo ainda conseguiria manter a sanidade.
Foi quando avistei o meu irmão! O
Samuel estava parado com o telefone celular no ouvido, como se estivesse
fazendo um esforço para escutar o que diziam do outro lado. Eu ainda nem tinha
celular e ele já estava no segundo modelo. Era um cara que adorava tecnologia.
– Samuel! Que porra tá acontecendo,
cara?! – perguntei, praticamente gritando – Cadê a Raiana, o pai e o resto do
pessoal?
– Estão lá perto do portão. –
disse ele, me olhando daquele jeito estranho, com olhos vidrados, como os
outros, segundos antes de fazer algo insano – Olha, é a mãe no celular.
Ele me alcançou o aparelho e coloquei
no ouvido. Só se ouviam gemidos, claramente de teor sexual e risos abafados no
fundo. Senti meu estômago embrulhando.
– Mãe?! É você, mãe?! – perguntei,
apavorado.
Em resposta, apenas mais gemidos e
mais risos, parecendo ainda mais excitados.
Olhei para o Samuel, mas ele não
estava mais ali. Vi ele já longe, correndo meio desajeitado enquanto tirava as
cuecas. Joguei o celular no chão e vomitei de novo.
Quando me recompus um pouco,
percebi várias pessoas deitadas nos bancos ou diretamente na grama, como se
estivessem relaxando na beira da praia ou no sofá de casa. Não pareciam nada
preocupadas com o caos ao redor. Bem ao lado da estrada tinha um poça de lama
com dois caras deitados de bruços. Cheguei a pensar que estivessem mortos, mas
quando me aproximei vi que estavam rindo, chafurdando ali e cochichando sobre
algo que parecia muito divertido.
Abrindo espaço por entre aquela
multidão insana e assustadora, passei ao lado de dois caras que tinham sido
meus colegas de aula. O Danilo e o Anselmo, que – por motivos óbvios – na
escola tinha ganhado o apelido de Sabidão. Eles estavam entre aqueles que
permaneciam assistindo o filme como se nada de anormal estivesse acontecendo ao
redor.
– Olha os monstros que esses caras
fizeram! – dizia o Danilo apontando para o telão – parece aqueles bonecos dos
filmes dos anos 80!
– Se chamam “efeitos
animatrônicos”. – corrigiu o Sabidão.
– Esse aí está mais para aqueles
personagens feitos com massinha de modelar que depois são filmados em posições
diferentes para fazer o movimento! – insistiu Danilo, em tom de deboche.
– Isso se chama “stop motion”. –
retrucou o Sabidão, com cara de tédio.
Nesse momento tive novamente um
impulso de olhar para a tela e o que vi foi uma sequência perturbadora de
monstrengos asquerosos e bizarros que, ao que tudo indicava, estavam no
interior daquele galpão mostrado desde o início do vídeo. Um deles era
praticamente uma bola de gosma verde escura, meio escamosa, com enormes olhos
de peixe e com uma boca saliente cheia de dentes pontudos que pareciam afiados.
Daquele corpo nojento saiam dois braços esqueléticos com dedos em forma de
garras finas. Ele ficava meio que quicando, como uma bola de basquete próxima
do chão. Outro era simplesmente uma mancha de gosma enegrecida de onde saía um monte
de tentáculos como os de um polvo e se movia escorrendo pelas paredes e pelo
teto. O mais bizarro de todos era um que mal consigo descrever, mas parecia
algo como um amontoado de órgãos genitais gigantes e misturados entre si, com
um par de olhos animalescos na parte de cima. Bem na hora que olhei, essa
criatura fez abrir de si mesma um orifício que parecia um cu de um metro e meio
de diâmetro e lá de dentro saiu um tentáculo que ficou se agitando pra fora,
como uma cobra enlouquecida. Ainda vi outro, que era basicamente uma lesma gigante
e todos pareciam muito reais para mim. Pavorosamente reais.
Eu não sei quanto tempo teria
permanecido assistindo aquilo – talvez até ser completamente dominado pela
loucura – se não tivesse percebido, com o canto do olho, algo que me chamou a
atenção um pouco à frente do telão. Um rapaz magro, com cabelo preto e comprido
até a altura dos ombros, vestindo aquelas calças largas tipo de skatista e um
moletom de capuz, também preto. O reconheci imediatamente. Era Vítor Venganno,
o diretor da bosta de filme infernal que estava sendo exibido no meio daquele
pesadelo. Ele estava parado no centro do pandemônio, observando a tudo
silenciosamente, com uma cara estranha. O puto estava sorrindo?! Pra mim fazia
sentido.
Comecei a abrir caminho por entre
aquele imenso bando de gente louca que seguia comendo, bebendo e fodendo por
todos os lados, como se não houvesse amanhã. As vozes que ressoavam em meio à
multidão formavam como se fosse um coro de gemidos e risadas macabras que só
não era alto o suficiente para abafar aquele ruído infernal emitido pelo vídeo.
Quando Vítor percebeu que eu
estava indo diretamente até ele, ficou um instante me olhando com cara de
assustado e depois tentou fugir no meio do povo ensandecido. Eu apertei o
passo, empurrei algumas pessoas que estavam pela frente e consegui alcançá-lo
poucos metros adiante. Agarrei-o pela blusa e o segurei sem dificuldades. Era
um sujeito pequeno e fracote, e poderia mandá-lo para o hospital com um único
soco bem dado no meio da cara. Eu realmente estava disposto a isso, se fosse
necessário. Sentia que podia fazer algo para parar com todo aquele caos. Iria
obrigar o babaca a interromper a merda que estava fazendo e assim poderia
salvar da maré de insanidade não só a Raiana – onde quer que ela estivesse –
mas também o resto da minha família e todo mundo.
– Parado aí, seu filho da puta! –
gritei, com o sangue fervendo de raiva – Essa porra toda é culpa sua, não é?!
– Me larga, seu brutamontes! –
disse ele, tentando se desvencilhar.
Então dei-lhe um soco com força,
bem no estômago. Ele gemeu e se ajoelhou, com lágrimas escorrendo dos olhos.
Era um babaca fraco e covarde, que não aguentava porrada e certamente iria
colaborar só pelo medo de apanhar.
– É essa sua bosta de filme, né?!
– gritei, chacoalhando ele pela blusa – É isso que está deixando todo mundo
louco! Agora você vai comigo até a mesa de controle e vamos desligar essa
porra, senão vou quebrar todos os dentes da sua boca!
– O filme já está acabando... –
disse ele, com as duas mãos sobre o abdômen, fazendo força para respirar – Esse
vídeo é só um catalisador para iniciar o processo. Agora tudo vai continuar
automaticamente.
E, de fato, segundos depois a
imagem sumiu e os telões ficaram vazios. Mas, havia um detalhe: aquele som
infernal não parou. Parecia diferente, como se estivesse em outra frequência ou
tom, mas estava até mais nítido e alto do que durante a exibição do filme. Ao
redor, a situação de insanidade generalizada só parecia aumentar.
– Por que essa desgraça de barulho
não para?! – gritei, chacoalhando o sujeito pelos ombros com tanta força que
ele praticamente nem conseguia se equilibrar para ficar de pé.
– Esse som não é mais do vídeo...
– resmungou Vítor, com dificuldade – Já é daqui.
Ele apontou para cima e eu então
olhei para o céu... um céu escuro e assustador. Não era a escuridão da noite
chegando, nem de um temporal se aproximando, apesar das nuvens carregadas. Me
pareceu como se fosse uma escuridão viva, profunda, de onde ressoava aquele
barulho grotesco.
– Como é que se para isso?! –
berrei, cada vez mais apavorado.
– Não sei se tem como parar. –
disse ele.
– Não sabe?! Você tá fodido, seu
filho da puta! – gritei, antes de lhe dar outro soco no estômago. Dessa vez ele
só não desabou com tudo no chão porque eu o mantive suspenso pelo capuz do
moletom.
–
Tá bom! Tá bom! – interrompeu ele, praticamente chorando, quando eu ergui a mão
para lhe dar mais uma porrada – Podemos tentar romper o círculo do ritual.
– Romper o quê?! Onde?! –
questionei, ainda com o punho erguido.
– Lá em cima, nos barracões
abandonados... na parte antiga do parque. – respondeu ele, com as mãos erguidas
para tentar se proteger.
Eu sabia de que lugar ele estava
falando. Originalmente, o Parque de Eventos havia sido construído em uma área
distante uns 300 ou 400 metros do atual. Ficava no topo de uma elevação, com
bastante árvores ao redor. Quando uma ampliação se fez necessária, com o
público cada vez maior que comparecia à Festa da Mandioca, decidiram transferir
o evento para o local onde está hoje, por ser mais plano e comportar melhor a
infraestrutura. Os barracões da parte antiga acabaram ficando abandonados ou,
no máximo, eram utilizados para guardar objetos da decoração da Festa,
ferramentas e tralhas diversas. Na escola todo mundo sabia que aquele local de
vez em quando era utilizado pelos alunos do Ensino Médio para beber e fumar
escondido e, eventualmente, transar. Então entendi que havia sido lá, num dos
barracões abandonados, que o vídeo exibido nos telões havia sido gravado. Tinha
reconhecido o local.
– Vamos logo, seu bosta! – falei,
puxando Vítor pelo capuz – E se você tentar me enganar, eu quebro o seu
pescoço!
Enquanto seguíamos para a parte
antiga do parque, vi que o festival de insanidade continuava firme e forte.
Tinha multidões comendo, bebendo e fodendo – de forma alucinada, por todos os
lados – e, no meio dessas, tinha pessoas deitadas na grama, conversando
tranquilamente, indiferentes. Algumas estavam relaxando descontraídas e outras,
com certeza, estavam dormindo, no maior sossego. Vi também gente pelada se
esfregando em árvores, como se estivessem tentando transar com elas, e, ao
longe, avistei alguns poucos indivíduos correndo para fora dos portões do
parque. Parecia que nem todo mundo era afetado do mesmo jeito pela onda de
loucura.
– Por que alguns ficam loucos e
outros não? – perguntei.
– Não sei. – resmungou Vítor.
Abri a mão e lhe dei uma bofetada
com toda força, bem no meio da cara. Ele caiu no chão soltando um grito
abafado. Minha paciência tinha acabado.
– Vou perguntar de novo... –
falei, erguendo ele pelo pescoço e preparando a mão para outro golpe.
– Eu estou imune por causa
disso... – interrompeu Vítor, com voz embargada, puxando a gola do moletom para
baixo e expondo um colar com algum tipo de cristais negros envolta do pescoço –
Mas não tenho certeza do porquê de outras pessoas serem afetadas de formas
diferentes. Acho que, como os Dillodokers agem sobre a mente dos indivíduos,
instigando emoções e despertando instintos, isso varia de acordo com o perfil
psicológico de cada um. Quanto mais sensível ou mais afinidade tiver com certos
tipos de sentimentos, mais vulnerável fica.
– Dillodokers... que porra é
essa?! São aquelas coisas que apareceram no vídeo? Aquilo existe de verdade?
– Sim. – respondeu ele, voltando a
caminhar enquanto eu o puxava pelo capuz – São seres que existem em outra
dimensão, no Plano Astral. Pelo que consegui analisar, eles são personificações
de emoções primitivas, nossos instintos primais, vícios, compulsões... algo
análogo ao que os cabalistas chamam de Demônios das Qlipoth e que a Igreja
simplificou ao tratar dos Sete Pecados Capitais.
– E o que essas coisas estão
fazendo aqui?! – perguntei, quase rindo de nervoso.
– Esses seres sempre estiveram por
aí. – disse Vítor, parecendo mais disposto a conversar depois das pancadas que
levou – Praticamente todas as culturas do passado se referiam a eles, cada uma
lhes dando nomes diferentes. Na verdade, eles são mais antigos do que a humanidade
do jeito que conhecemos.
– O que eu estou querendo saber é
por que eles estão fazendo esse pandemônio todo hoje, exatamente aqui,
neste local...
– Porque eu fiz um ritual que
abriu um canal de conexão direto entre a dimensão deles e a nossa. – respondeu
Vítor, com cara de quem estava com medo de receber mais porradas – Todo mundo
sofre influência dessas criaturas no dia a dia, em maior ou menor grau. Eles
são a manifestação dos nossos próprios impulsos negativos. Mas com o portal
dimensional que eu abri e com o filme servindo para colocar todo mundo na
frequência mental adequada, eles estão conseguindo agir com muito mais
intensidade. Eles estimulam certas emoções na mente das pessoas até que fiquem
descontroladas e então passam a se alimentar dessa energia psíquica alterada. Quanto
mais absorvem dos indivíduos, mais fortes ficam e, por causa disso, mais
estimulam a mente das vítimas, num processo que se retroalimenta.
– Que loucura! – eu falei,
indignado – Só acredito por que estou vendo com os meus próprios olhos, e ainda
assim não tenho plena certeza se não estou sonhando, delirando, ou
completamente louco.
Vítor não disse nada dessa vez,
apenas ficou me olhando com uma cara estranha. Eu estava surpreso em ver como
ele era inteligente e articulado, apesar da ideia estúpida que teve. Me
perguntei se ele sofria bullying por ser um babaca ou se havia se tornado um
babaca por tanto sofrer bullying.
Já estávamos chegando no sopé do
morro que dava acesso à parte antiga do parque, quando vi, em meio ao caos,
algo que me chamou a atenção. Era o Sabidão. Estava parado, olhando para cima
com uma expressão esquisita. Quando passamos por ele, pareceu notar a nossa
presença.
– Você sabe o que ele fez, não é,
Sandrinho? – disse o sabidão, com um tom de voz que parecia expressar mais surpresa,
ou talvez até admiração, do que propriamente medo ou raiva.
Não respondi nada. Continuamos
andando apressadamente. Não havia tempo para conversa. Precisávamos fazer algo
com urgência. Aquele som terrível que vinha do céu escuro parecia cada vez pior.
Agora era como se centenas de tábuas de madeira estivessem sendo quebradas ao
mesmo tempo. E aquela sensação que eu sentia desde que acordei, uma vertigem
que não era bem vertigem, também parecia estar piorando, minuto a minuto.
– Está ouvindo esse barulho? –
perguntou o Sabidão, já ficando para trás – É a malha do espaço-tempo sendo
rompida.
Um calafrio passou por mim naquele
momento. Olhei por sobre o ombro e o Sabidão continuava lá, imóvel, encarando
as nuvens escuras e anormais do céu apocalíptico.
Eu puxava Vítor pelo capuz e pelo
braço para que ele andasse mais depressa. Estávamos praticamente correndo morro
acima, através de uma estradinha de terra rodeada por árvores grandes e
antigas.
– Como é o fim disso? – perguntei,
sem diminuir o passo – Como um pandemônio como esse termina?
– Normalmente, pessoas sob um grau
tão intenso de influência dos Dillodokers acabam enlouquecendo de forma
irreversível, morrem por sofrer algum tipo de colapso físico, se suicidam ou
acabam matando umas as outras. – disse Vítor, ofegante – Mas hoje, em função do
portal dimensional aberto pelo ritual e da imensa energia fornecida por toda
essa gente, eles vão se materializar, vão poder agir fisicamente no nosso
mundo.
– E o que eles vão fazer?! –
questionei, me arrependendo logo em seguida por ter feito essa pergunta.
– Vão fazer a única coisa que é da
natureza de cada um deles... – respondeu Vítor, cada vez com menos fôlego em
função da caminhada – Os da gula vão devorar tudo que estiver pela frente, os
da luxúria vão estuprar qualquer um que tenha órgãos genitais, e assim por
diante...
– E essa é a sua vingança, não é
mesmo?! – gritei, fazendo um esforço para me controlar e não arrebentar todos
os ossos da cara daquele filho da puta ali mesmo – Você nunca foi homem que
chega para enfrentar quem lhe abusava! Nunca teve coragem de reagir! E agora se
vinga destruindo todo mundo! Um monte de gente inocente que nunca lhe fez nada!
Vítor não respondeu. Apenas olhou
para o chão e se encolheu, decerto com medo de apanhar. Embora estivesse mesmo
com vontade de fazer isso, precisei me escorar em uma árvore na beira da
estrada e vomitar. Cheguei a pensar que ele tentaria fugir enquanto eu
vomitava, mas nem tentou. Devia estar cansado demais, ou com receio do que
aconteceria quando eu o pegasse de novo.
Logo adiante já começavam a
aparecer os barracões abandonados. Eram quatro, a maioria deles em péssimas
condições, com tábuas podres nas paredes e vigas do telhado envergadas para
baixo. Dava a impressão que poderiam desabar a qualquer momento.
– É aqui. – disse Vítor, apontando
para o primeiro deles.
As duas janelas da frente estavam
fechadas, mas a porta estava apenas escorada por uma tramela de madeira. Ele
abriu e entrou na frente. Eu fiquei um pouco para trás. Fui tomado por uma
sensação de medo que dava a impressão que faria meu coração sair pela boca.
– Eles estão aqui dentro? –
perguntei, espiando pela porta entreaberta.
– Não. – respondeu Vítor – Eles
ainda estão na dimensão deles. Não fizeram a travessia por enquanto. Mas deve
faltar pouco.
– Mas, no seu vídeo... você os
filmou. – insisti, entrando com desconfiança.
– Naquele dia eu fiz um ritual
para que eles se materializassem, justamente para poder filmá-los, mas foi por
poucos segundos. Precisa muita energia para que eles possam se manifestar
diretamente no plano físico. Mesmo tendo sido bem rápido, foi preciso um grande
sacrifício para que eles aparecessem daquela vez.
– Um sacrifício... – falei,
sentindo minhas pernas tremerem – e o que... quem você sacrificou?
– Você vai preferir não saber. –
respondeu ele em um tom de voz baixo, quase um resmungo.
Dessa vez ele tinha razão. Eu
preferia não saber.
Dei alguns passos para dentro do
galpão. As duas janelas do fundo estavam abertas, fazendo com que até desse para
enxergar algo em meio a penumbra. Junto à parede da direita havia uma velha
cadeira de escritório e uma espécie de escrivaninha improvisada com tábuas e
tijolos. Me aproximei e vi sobre ela vários livros, a maioria em inglês, de
autores como Helena Blavatsky, Franz Hartmann, Charles Leadbeater, Eliphas
Levi, Kenneth Grant e Phil Hine. Também tinha um manuscrito com várias páginas
amareladas, tipo um pergaminho, escrito em um idioma completamente
desconhecido.
– Você não vai entender nada. –
disse Vítor, às minhas costas – Está escrito em Aklo.
– Foi com isso que você começou a
fazer essas merdas de rituais? – perguntei.
– Sim... – ele respondeu acenando
positivamente com a cabeça e em seguida apontando para o chão, um pouco mais ao
fundo do barracão – E também com aquilo.
Cheguei mais perto para poder ver
melhor. No piso havia sido traçado um círculo de mais ou menos uns três metros
de diâmetro. Em seu interior foram desenhadas algumas figuras geométricas
esquisitas e vários caracteres daquela escrita estranha, do pergaminho. Na
borda do círculo, espaçados regularmente, estavam vários cristais de quartzo
transparente – tipo aqueles que se vende em Soledade – de uns quinze ou vinte
centímetros de altura cada, e bem no centro havia um objeto que, de cara, me
pareceu muito insólito. Era uma pequena pirâmide negra, de apenas uns dez ou
quinze centímetros de altura, mas parecia ser feita de um material
desconhecido. Não dava para ter certeza se era algum tipo de cristal, metal, ou
sabe-se lá o quê. Na verdade, era até difícil ficar olhando para aquilo, pois
quando nos aproximamos do círculo o objeto simplesmente começou a emitir flashes de luz, como se tivesse
detectado a nossa presença, ou algo assim. A pirâmide parecia estar vibrando,
numa velocidade cada vez maior.
– De onde veio essa porra?! –
perguntei, impressionado.
– Quem trouxe a pirâmide junto com
o pergaminho foi o meu irmão. – respondeu Vítor – Não sei a origem do artefato,
mas deve ser algo de uma civilização ancestral, incrivelmente antiga.
O irmão dele? É claro que eu
conhecia. Walter Venganno. Devia ser uns quatro anos mais velho e todo mundo o
considerava até mais babaca do que o Vítor. Então, como não podia deixar de
ser, sofria o dobro de bullying do que o outro. A principal diferença era que,
enquanto o Vítor tinha banca de rockeiro revoltado, Walter era o nerd clássico,
com direito a usar roupas bregas, óculos cafonas e todo o resto. Era o tipo de
sujeito que só tirava nota 10 na escola, em todas as matérias, e sempre ficava
em primeiro lugar nas Feiras de Ciências. O Sabidão era o único que conseguia
rivalizar com ele, mas acabava sempre perdendo. Walter Venganno era imbatível
em termos de ser CDF. Quando terminou o Ensino Médio, foi para Porto Alegre
fazer faculdade, se não me engano, de Física, ou algum outro desses cursos que
só consegue concluir quem passa o dia inteiro estudando, sem nunca beber e nem
comer mulher nenhuma. Só estudo, nada de diversão. Assim era o Walter Venganno
que eu lembrava.
– O seu irmão também está
envolvido nessa merda?! – questionei – Cadê ele?
Vítor não respondeu. Apenas
abaixou a cabeça rapidamente, como se estivesse escondendo algo e então –
talvez sem se dar conta – ficou olhando fixamente para o interior do círculo
ritualístico.
De forma meio automática, eu comecei
a olhar também e só então percebi, em meio a todos aqueles símbolos e caracteres
bizarros, que havia ali algum tipo de líquido ressecado, viscoso e escuro.
Seria sangue?
Foi nesse momento que a barulheira
vinda de fora chamou a minha atenção. Primeiro foram os gritos vindos lá de
baixo, da parte principal do parque. Gritos que pareciam de dor, de pavor...
gritos horríveis. Milhares de pessoas gritando ao mesmo tempo.
Quando dei por mim, já estava em
uma das janelas traseiras do barracão. Olhei para baixo e vi um barranco, quase
totalmente íngreme, de pelos menos uns vinte metros de altura e, lá no fundo, a
mata fechada. Mas, olhando para a direita, dava para avistar ao longe uma parte
do lonão principal do parque e das barraquinhas de comida. Lá se via uma
multidão correndo desordenadamente para todos os lados. Pareciam vários focos
de brigas generalizadas. Tive a impressão de ter ouvido tiros e, de repente,
algumas barracas começaram a pegar fogo. Olhei para Vítor, em pânico.
– Pelo que eu tinha percebido, já
tinham se manifestado as energias da Gula, da Luxúria e da Preguiça... – disse
Vítor, antes mesmo que eu perguntasse – Agora devem ter começado as
outras.
Praticamente ao mesmo tempo, aquele
som pavoroso vindo do alto pareceu se multiplicar absurdamente. Se antes era
como se centenas de tábuas estivessem sendo quebradas ao mesmo tempo, a partir
dali pareciam milhares, cada vez mais. Olhei para cima e, através da janela, vi
o céu macabro sendo tomado por algo parecido com raios, só que não eram raios
de verdade, pois emitiam clarões avermelhados e se espalhavam para os lados ao
invés de descer. Pareciam mais rachaduras,
caso isso fosse realmente possível.
– Não deve faltar muito agora. –
falou Vítor, com espantosa tranquilidade.
– Então faça algo! Agora, seu
filho da puta! – gritei em desespero, sentindo uma tontura tão forte que era
até difícil ficar em pé.
– Era isso que eu estava tentando
te explicar... – insistiu ele – Não conheço nenhum ritual para reverter o
processo. Talvez exista, mas eu não sei como é. Nem sequer traduzi todo o
manuscrito. Realmente não sei o que fazer.
Então foda-se. A situação não
seria resolvida na base da magia negra, então teria que ser na força bruta. Aquilo
me veio à mente e não havia tempo pra mais nada. Não tinha a menor ideia se
poderia funcionar e era bem mais provável que não. Mas, azar. Pra quem tava na
merda, se sujar um pouco a mais ou a menos, não faria diferença nenhuma.
Lembrei da Raiana e da minha família. Só me restava tentar.
Primeiro, parti na direção daquele
puto do Vítor Venganno. Ele me olhou com cara de apavorado quando puxei para o
lado a gola do seu moletom e, com a outra mão, arranquei do seu pescoço o colar
de proteção. Andei até a janela e joguei o objeto lá pra baixo do penhasco. Sem
chance de aquele filho da puta ir até lá pegar de volta. Se o destino de todo
mundo seria se foder, então ele iria se foder junto. Que os Dillodokers
fizessem bom proveito dele também, se fosse o caso.
Em
seguida, corri para dentro do círculo ritualístico – meio cambaleando por causa
da vertigem, quase insuportável – e chutei com toda a força aquela misteriosa
pirâmide que havia no centro. O artefato voou para o outro lado do barracão e
deu para ouvir o barulho de quando ele se chocou contra a parede. Então tive a
impressão de ficar congelado, preso no ar, imóvel. A sensação seguinte foi como
se o meu corpo tivesse desaparecido e ficado só a minha mente, mergulhando cada
vez mais rápido em uma escuridão infinita.
O próximo ciclo inicia em breve...
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