2º Ciclo
Por André Bozzetto Jr
Quando alguém trombou no meu ombro, retomei a consciência ainda meio entorpecido, como se estivesse despertando de um estranho estado de hipnose ou, no mínimo, acordando de um sono profundo marcado por um pesadelo esquisito.
Então me dei conta de onde estava: debaixo do lonão amarelo, diante do palco principal da Feira da Mandioca, onde ocorria a Mostra Cultural. O povo todo ali ao redor compenetrado, olhando para o telão onde imagens ruins – tipo aquelas gravadas com uma câmera VHS vagabunda – mostravam o interior escuro e sujo de um barracão abandonado, com um barulho bizarro e perturbador ao fundo. Era aquele filme. Era “Dillodokers”.
A sensação de vertigem estava de volta, e cheguei a pensar que iria desmaiar enquanto tentava organizar as ideias e entender o que poderia estar acontecendo. Será que eu tinha alucinado? Vítor Venganno, a pirâmide negra, a multidão ensandecida bebendo, comendo e fodendo num caos infernal... seria tudo ilusão? Ou a ilusão seria aquele exato momento, onde eu parecia ter voltado no tempo? Poderia ser efeito da porra do remédio experimental? Caralho, eu não devia ter bebido.
Ainda estava olhando ao redor e me sentindo desorientado, quando notei um sujeito grandalhão e careca que estava bebendo no canto esquerdo do bar. Ele pegou uma lata de cerveja, abriu de forma apressada e virou tudo de uma vez só. Amassou a lata, pediu outra e fez a mesma coisa. Depois de novo, e de novo. Deve ter esvaziado umas seis ou sete latas em um minuto. Enquanto bebia, parecia que ficava cada vez mais agitado e ansioso. Xingava os caras do bar porque demoravam para lhe entregar as cervejas, e tomava tudo de forma tão desesperada que ia derramando boa parte pelo rosto e pelo peito. De repente, outras pessoas começaram a fazer exatamente a mesma coisa. O grandalhão careca, cada vez mais irritado com a velocidade que lhe entregavam as latas, pulou o balcão do bar e começou ele próprio a pegar as cervejas no freezer. Os funcionários tentaram impedi-lo, mas, sem mais nem menos, dezenas de pessoas começaram a invadir o bar, abrir as bebidas e tomar tudo ali mesmo, como se não houvesse amanhã. E eram homens, mulheres, crianças, velhos, de tudo. Estava acontecendo novamente!
Virei para o meu amigo Carlinhos, e, como da primeira vez, não deu tempo de lhe dizer nada, pois ele já estava correndo na direção do bar, abrindo caminho aos empurrões entre o pessoal que se acotovelava ali, até pular o balcão e começar a disputar latas de cerveja com os outros ensandecidos. Quando conseguia pegar alguma, enfiava na boca com desespero, antes que alguém tentasse lhe tirar das mãos e beber por primeiro. Sim, definitivamente, estava acontecendo tudo de novo!
Senti mais uma vez aquela sensação horrível de pavor e urgência, mas, mesmo assim, consegui me apegar a uma migalha de esperança. Não adiantava ficar tentando entender a situação. Tudo iria sair de controle muito rapidamente e aí não teria mais jeito. Era preciso agir. Pensei que se eu pudesse chegar logo ao barracão abandonado onde estava o círculo ritualístico daquele filho da puta do Vítor Venganno, então poderia fazer algo antes de o pandemônio se tornar irreversível. Não tinha a menor ideia do que seria esse algo, já que a minha tentativa anterior não tinha dado muito certo, mas, chegando lá talvez surgisse alguma possibilidade. Só havia isso para acreditar.
Então segui correndo pela extremidade direita do parque, sem passar pela parte central, e assim ganhar tempo. Procurava não olhar diretamente para ninguém, evitando que as cenas bizarras – que ficariam piores a cada minuto – tirassem meu foco e me atrasassem. Conforme os resmungos, risadas, gemidos e até gritos iam aumentando, eu me esforçava para não dar ouvidos. Não tinha certeza se estava totalmente imune àquela loucura toda ou se ainda poderia acabar absorvido por aquilo.
Como mudei o trajeto em relação à primeira vez, não encontrei pelo caminho o meu vizinho João e nem o meu irmão. Também não passei em frente ao telão onde estaria o Vítor Venganno, pois ele não iria ter muita serventia mesmo e só iria me atrasar. Contudo, quando cheguei ao início da estradinha que subia o morro e levava à parte antiga do parque, encontrei o Sabidão. Ele estava parado, observando o céu escuro e ameaçador. Quando passei ao lado dele, pareceu me notar.
– Sandrinho, você sabia que um portal dimensional, em tese, poderia não apenas fazer a conexão entre duas dimensões distintas, mas também permitir a passagem para outro ponto do espaço-tempo? – perguntou ele, olhando na minha direção – Realidades alternativas... multiversos... parece que alguém está bagunçando as linhas temporais.
Não parei e nem respondi nada. Apenas comecei a subir o morro o mais rápido que podia. Eu não fazia ideia de porque o Sabidão ficava falando aquelas coisas. Dava a impressão que ele entendia, ou pelo menos desconfiava do que estava acontecendo. Não ficava ensandecido como o povão, mas também não parecia normal. Talvez ele sempre tenha sido meio louco, mas de um jeito diferente.
Quando cheguei diante dos barracões, precisei me escorar em uma árvore para recuperar o fôlego. A tontura estava piorando e lá embaixo a algazarra aumentava cada vez mais. Foi só então que percebi algo diferente. O primeiro prédio, onde Vítor fazia seu ritual, não estava tão detonado como da outra vez. Parecia até razoavelmente bem conservado.
Sem entender o que aquilo significava, tentei abrir a porta, mas estava trancada, assim como as duas janelas da frente. Andei para a esquerda e vi que a janela daquele lado também estava fechada, porém, frouxa. Provavelmente abriria se forçada. Então, recuei alguns passos, peguei embalo e me joguei com o ombro de encontro a ela. Os tampos de madeira velha se abriram com um estrondo e eu caí para dentro.
Quando levantei a cabeça, fiquei chocado. O cenário estava muito diferente. Várias lâmpadas iluminavam o ambiente e deu para ver que todas as ferramentas e tralhas tinham sido empilhadas junto às paredes para liberar espaço. No centro, havia mesas e escrivaninhas com pilhas de livros e dois computadores de onde saiam grossos cabos que se conectavam a uma grande máquina, muito esquisita. Dava para perceber que ela tinha sido construída de forma improvisada, pois contava com partes de vários outros eletrodomésticos e aparelhos. Consegui reconhecer componentes de computadores, fornos micro-ondas, máquinas de raio-x e xerox, todos conectados a uma câmara de bronzeamento artificial e outros elementos que eu não sabia o que eram. E do lado dela – me olhando com cara de espanto – estava um sujeito que, para a minha surpresa, não era Vítor Venganno. Era o irmão dele, Walter, o nerd, o CDF, o gênio das feiras de ciências. Estava ali, com suas roupas bregas de sempre e seus óculos ridículos. A diferença é que tinha um tipo de aparelho auditivo esquisito na orelha direita. Eu não lembrava de ele ter problemas de surdez.
– Vá embora! – disse Walter, se recuperando do susto causado pela minha invasão.
– Vou nada! – respondi, já sentindo a raiva aumentando novamente – Onde está aquele bosta do seu irmão?
– Você não vai encontrar ele aqui. – disse Walter, voltando a mexer na máquina, como se a minha presença ali fosse apenas um inconveniente – Caia fora. Tenho coisas importantes para fazer.
– Coisas importantes, né?! – retruquei – Como trazer os Dillodokes para tocar o terror no nosso mundo!
– Como você sabe disso?! – questionou Walter, interrompendo novamente seu trabalho e me olhando com expressão muito espantada.
– Seu irmão me contou tudo.
– O meu irmão não pode ter lhe contado nada! – gritou ele – Fale a verdade!
– Foi ele sim! – insisti – Mas não aqui. Não agora. Foi... antes... no passado... na primeira vez que tudo isso aconteceu.
Walter andou na minha direção e parou exatamente na minha frente, me olhando, boquiaberto.
– Incrível! – disse ele, pensativo – Agora entendi. Então aquela anomalia eletromagnética que os sensores captaram foi a sua consciência atravessando para esse plano da realidade. E foi o meu irmão quem fez você parar aqui?
– Foi meio sem querer, mas foi. – respondi, irritado – Mas não foi com a porra de uma máquina como essa aí. Foi com um ritual.
– Com um ritual... – repetiu Walter, começando a caminhar em círculos, e com expressão de quem estava se esforçando para processar todas as informações – Meu irmão sempre teve essa predileção mística e ocultista, enquanto eu sempre fui um homem da ciência.
Ele andou até a escrivaninha e pegou o pergaminho misterioso, o mesmo que eu já tinha visto com Vítor.
– Você consegue entender a grandiosidade das formas de inteligência que desenvolveram isso aqui?! – disse Walter, balançando o pergaminho com empolgação – As possibilidades de sua aplicação são tão absurdamente vastas! Eu desenvolvi uma máquina, mas há múltiplas variáveis. Sabe-se lá quantas!
– Não estou entendendo nada dessa conversa! – reclamei – De onde veio essa porra?!
– É uma antiga transcrição de algo que estava em posse de alguma civilização ainda mais antiga, com certeza milenar... – respondeu ele – Mas a origem desse conhecimento eu acredito que seja extraterrestre, assim como aquilo.
Então ele apontou para a parte de cima da sua máquina e só naquele momento eu vi que ali estava encaixada a pequena pirâmide negra, que anteriormente tinha visto no centro do círculo ritualístico do Vítor Venganno.
– Se isso é tão antigo, como pode ter instruções para construir uma máquina com aparelhos dos dias de hoje? – questionei.
– No pergaminho não têm instruções, mas sim conceitos. – disse Walter – Vai da capacidade de cada leitor decodificar isso em algo funcional.
– Bom, chega de papo furado! – falei, sentindo a vertigem piorar – Precisamos parar tudo isso antes que não tenha mais volta.
– Parar?! – questionou ele, parecendo realmente surpreso com a ideia – Parar por quê?!
– Você é muito cara de pau! – retruquei, já esgotando o que ainda restava de paciência – Trazer esses demônios para cá, apenas por vingança! Destruir um monte de gente inocente para revidar bullying! Isso é doentio!
– Isso é unir o útil ao agradável... – disse Walter, parecendo muito convencido do que falava – Os Dillodokers não criam nada, apenas potencializam o que já existe dentro de cada um. Não há ninguém inocente nessa história. Além disso, essa destruição que tanto lhe preocupa é para trazer um bem maior. Eu não estou sacaneando essas pessoas, mas sim ajudando.
Eu estava tão chocado ao ouvir o babaca falando aquelas merdas que nem sabia o que dizer. Então ele continuou com suas explicações:
– Você é a prova da existência de múltiplas dimensões da realidade, umas paralelas as outras. As percepções obtidas através dos nossos cinco sentidos nos transmitem a ilusão de que nossa mente é una e centrada em nosso cérebro, mas isso não é verdade. Na realidade, nossa mente é composta por múltiplos estados de consciência, que coexistem ao mesmo tempo, em diferentes dimensões. Nós habitamos onde está o foco de nossa atenção. A dimensão que parece mais real é aquela que capta com mais eficiência nossa percepção em detrimento das outras. Mas algumas dessas dimensões são melhores do que outras. Em algumas, as pessoas são cheias de vícios mesquinhos, como nessa em que estamos. Aqui as pessoas são orgulhosas, vaidosas, gananciosas, luxuriosas, odiosas e assim por diante. Mas há outras onde não é assim. Eu não sei quantas dimensões existem, mas se essas cheias de vícios e degradação forem destruídas, todas que sobrarem serão melhores. Então, não importa em qual nossa consciência habitará, pois será uma boa dimensão para se viver. Entendeu agora? Os Dillodokers só destroem o que precisa ser destruído.
– Você é louco! – gritei – Quem pode garantir que, nessas dimensões sem defeitos, caras como eu e você realmente existimos?! Você se acha perfeito?! Pense em nossos familiares e amigos... não existe ninguém sem defeitos!
Ele abriu a boca para tentar argumentar mais alguma coisa, mas eu não estava disposto a ouvir. Lá fora os gritos aumentavam e a minha vertigem também. Olhei ao redor e avistei em um canto do barracão algumas velhas ferramentas amontoadas. Fui até lá e peguei uma picareta. Já sabia o que fazer.
– Não posso permitir isso. – disse Walter, às minhas costas – Solte essa coisa.
Quando me virei, dei de cara com ele apontando uma arma para a minha cabeça. Parecia uma 765, como uma das que o meu pai tinha. Larguei a picareta.
– Você pensou que eu não teria nenhuma prevenção contra interrupções externas ao realizar um trabalho tão importante como esse? – disse Walter – Você não entende?! O fato de você estar aqui é uma sincronicidade. Você tem um papel importante nessa narrativa. É um dos avatares dos novos tempos, assim como eu. Não gostaria de ter que atirar, mas, se você me obrigar, é isso que vou fazer.
A arma estava apontada para o meu rosto, a pouco mais de um metro de distância. Foi aí que percebi o que iria salvar a minha vida. A história ainda não tinha acabado.
Dei um passo em frente e Walter tentou apertar o gatilho. Uma, duas, três vezes, sem sucesso. Rapidamente, tomei a a arma das mãos dele e o acertei no meio da cara com um soco de direita. Ele desabou no assoalho, quase desmaiado. Os óculos e o aparelho auditivo voaram para longe. Apesar de ser um pouco mais alto do que o seu irmão Vítor, Walter era tão magrelo e fracote quanto ele. Agora que estava desarmado, não representava mais perigo nenhum.
– Você é tão otário que nem sabe que precisa abaixar a trava da arma para atirar. – falei, colocando a pistola na cintura – Agora, chega dessa loucura!
Walter não disse nada. Apenas rastejou pelo chão apressado, em busca do aparelho auditivo. Por que o aparelho e não os óculos? Foi aí que entendi.
Caminhei rapidamente até o pequeno objeto e, antes que Walter o alcançasse, eu o pisoteei várias vezes, até despedaçá-lo.
– Não! Não! – gritou ele, com voz de choro.
– Era essa porra que lhe protegia da influência dos Dillodokers, né?! – falei, furioso – Então agora você vai provar do seu veneno!
Nesse momento, caminhei na direção da máquina com a picareta em mãos. Com sete ou oito golpes ela já estava destruída, completamente inutilizável.
– Seu idiota! Ignorante! – gritou Walter, ainda caído no chão – Não percebe que destruindo a máquina você só impediu os Dillodokers de se materializarem nesta dimensão?! O que está acontecendo lá fora vai continuar. É um processo que se retroalimenta do mal que existe dentro de cada um, lembra?!
Infelizmente, ele aparentava estar certo nisso. A algazarra no centro do parque parecia mais infernal do que nunca. Gritos apavorantes – de fazer gelar o sangue – davam até a impressão de estarem se aproximando, como se parte daquela multidão enlouquecida estivesse subindo o morro correndo.
Então olhei para algo reluzente no chão. A pirâmide negra havia caído de cima da máquina enquanto eu a destruía e estava vibrando e emitindo pequenos fachos de luz esbranquiçada junto ao assoalho. Lembrei que, da primeira vez que a vi, apenas lhe removi do centro do círculo ritualístico com um chute. Mas, e se agora eu a destruísse totalmente? O que aconteceria?
Me aproximei da pirâmide e ergui a picareta. Quase ao mesmo tempo, a porta e as janelas da frente do barracão foram arrombadas por uma multidão de gente enlouquecida que entrou gritando e quebrando tudo que havia pela frente, como uma horda de zumbis em um filme de terror, só que pior, porque era real.
– É a Ira, Sandro! – gritou o desesperado Walter, um segundo antes de dezenas de pessoas se jogarem sobre ele, se acotovelando, o espancando e arrebentando seu corpo com as mãos.
Foi nesse instante que eu desferi o golpe e então tudo foi tomado pela escuridão. Não apenas nós e o nosso mundo, mas o universo, o cosmos e a porra toda que havia na minha mente.
O próximo ciclo inicia em breve...
Para fazer download do arquivo em PDF clique AQUI.
Nenhum comentário:
Postar um comentário