30 de out. de 2022

WILLY E O HOMEM-LAGARTO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Era um final de tarde de sábado. Eu estava jogado no sofá, tomando Coca-Cola e comendo biscoito recheado. Lembro de estar irritado porque recém tinha acabado o jogo do campeonato gaúcho entre Inter e Juventude e o Inter tinha perdido. É incrível como o Inter sempre perdia do Juventude naquela época. Para falar a verdade, eu estava mais irritado porque os meus pais tinham ido a um casamento e só iriam voltar muito tarde. Então eu precisava ficar em casa cuidando do meu irmão William – ou Willy, como nós o chamávamos. Isso era péssimo porque eu andava xavecando a Sandrinha e naquela noite ela iria a uma festa na casa da Flávia. Como eu não poderia ir, não tinha como ficar com ela de uma vez por todas, e ainda corria o risco de ter por lá outros otários arrastando a asa para o lado dela.

            Foi por isso que eu não dei a mínima bola quando o meu irmão entrou dizendo que tinha um cara parado na esquina, observando nossa casa. O Willy tinha 11 anos nessa época, e uma imaginação muito fértil. Desde bem novo ele gostava muito de desenhar e andava sempre com lápis e caderno de desenho para lá e para cá. Nossa casa ficava na última rua da cidade, depois da qual tinha só uma área de mata com um lago em seu interior. Willy passava muitas horas por lá, sozinho, fazendo seus desenhos. Volta e meia ele voltava dizendo que tinha visto coisas estranhas. Uma vez foi um fantasma. Em outra, um dinossauro. Na quinta-feira de manhã, quando levantamos para ir à escola, ele me disse que estava acordado durante a noite quando sentiu um leve e rápido tremor de terra, como um “miniterremoto”. Obviamente, mais ninguém na casa percebeu nada. Naquela mesma tarde, ele voltou alvoroçado do bosque, dizendo que havia um “homem-lagarto” zanzando por lá. No meio da noite, começou a gritar e quando fomos ver o motivo do escândalo, ele falou que viu através da janela o homem-lagarto rondando a casa. Meus pais disseram que foi apenas um pesadelo, e que se ele não parasse com essas histórias, seria proibido de assistir filmes e ler quadrinhos de terror. Depois disso ele não falou mais no assunto, mas eu percebi – mesmo sem dar importância – que nos dois últimos dias ele andava diferente, mais calado do que de costume e parecendo preocupado.

            Mas, naquele chatíssimo entardecer eu não queria saber de nada disso. Simplesmente mandei Willy entrar e ir para o banho. Depois eu colocaria uma pizza no forno para jantarmos e, se ele se comportasse, poderia assistir O Exterminador do Futuro 2 na TV junto comigo. Foi somente quando eu estava no cozinha arrumando a mesa para o jantar que vi através da janela alguém lá fora, meio encoberto pela sombra de uma árvore. Ainda não havia anoitecido totalmente e senti um calafrio quando tive a impressão de reconhecer quem era aquele cara parado lá, olhando na minha direção. Era o Julião. Um garoto novo que chegou na escola há poucos meses e rapidamente ganhou fama de encrenqueiro, com especialidade em agredir e humilhar os meninos mais novos. O principal problema é que ele era mais velho e maior do que praticamente todos que estudavam no turno da manhã, pois, por ter reprovado em várias séries, já estava com 17 anos e ainda frequentava o ensino fundamental. Diziam inclusive que ele andava armado com um canivete automático.

            Alguns amigos meus já tinham apanhado do Julião e sido ridicularizados por ele na frente de toda a escola. Ninguém tinha coragem de denunciar, pois sabiam que depois a sua vingança seria ainda pior. Eu sentia um ódio tremendo daquele sujeito, começava a tremer e a suar só de ver ele por perto. Prometi a mim mesmo que, no dia que ele tentasse algo comigo – não importaria o que aconteceria depois – eu iria reagir. Afinal, eu tinha 14 anos, mas já era alto, quase do tamanho dele.

            E esse dia chegou. Certa manhã, no final da aula, Julião pegava alguns garotos aleatoriamente perto do portão de saída e jogava de cabeça dentro dos latões de lixo. E a escola inteira assistindo. Alguns riam, outros olhavam assustados, mas ninguém fazia nada. Eu fui saindo de cabeça baixa, quase chorando de raiva de ver aquilo e, de repente, nossos olhos se encontraram. Ergui a cabeça, meio sem querer, e ele já estava olhando para mim. Então abriu um sorriso debochado e veio na minha direção. Eu fechei o punho e respirei fundo. Acho que o meu corpo inteiro tremia como vara verde. Quando ele botou a mão no meu ombro e começou a falar algo, eu soltei o soco. Acertou bem no meio do nariz. Ele cambaleou, quase caiu e então se agachou, com as mãos no rosto. Houve um segundo de silêncio e, em seguida, toda galera que estava ao redor explodiu em gritos e vibração, como uma torcida comemorando um gol na final do campeonato. Julião me olhou com olhos arregalados, parecendo uma mistura de ódio e surpresa. O sangue escorria do seu nariz. Imediatamente eu saí correndo o mais rápido que já corri na minha vida. Ele tentou me seguir, mas desistiu poucos metros depois. Nas duas semanas seguintes ele simplesmente não apareceu mais na escola, mas muita gente disse que ele prometeu se vingar. Eu fiquei muito popular depois daquilo. Todo mundo queria ser meu amigo e, pela primeira vez, havia várias meninas me dando bola. Porém, eu nunca me esqueci da ameaça do Julião e, naquele início de noite de sábado, ela parecia mais real do que nunca.

            Até pensei em ligar para o clube onde estava acontecendo o casamento e pedir para falar com o meu pai. Mas, eu sabia exatamente o que ele iria dizer: que o Julião estava apenas querendo me assustar, que bastava deixar as portas e janelas bem fechadas e não haveria com o que se preocupar. Então foi isso que fiz. Conferi todas as portas e janelas do andar térreo e procurei não pensar mais no assunto, nem ficar olhando lá para fora para ver se o babaca ainda estava por lá.

            A noite foi transcorrendo de forma tranquila. Ainda faltava um pouco para começar o filme e Willy estava no quarto desenhando, enquanto eu estava deitado no sofá ouvindo música no meu walkman. Fazia pouco tempo que eu tinha conseguido a fita K7 do Black Album, do Metallica, e estava curtindo direto. Então, de repente, a energia elétrica se foi e a casa mergulhou na escuridão. Levantei rapidamente e olhei pela janela. Nós não tínhamos vizinhos próximos, mas, para além das árvores na rua de baixo dava para ver as luzes funcionando normalmente. Parecia que só a nossa casa estava às escuras. Naquele momento, Willy desceu correndo as escadas com sua pequena lanterna em mãos.

            – Mano, mano...! – dizia ele, assustado – Eu vi alguém caminhando no pátio lá de trás!

            “Julião”, logo pensei. Então ele realmente vai tentar algo.

            – Calma! – falei – É só um garoto estúpido tentando nos assustar. Vou ligar para o clube e o pai logo vai vir ou mandar alguém.

            – Não... – disse Willy, parecendo cada vez mais apavorado – É o homem-lagarto!

            Nesse instante, houve um estrondo vindo do alto e, em seguida, barulhos de passos lá em cima.

            – Mas o que é isso?! – falei – Tem alguém caminhando no telhado?!

            – Ou talvez tenha entrado por uma janela do andar de cima... – disse Willy, sussurrando – Acho que ele já está aqui dentro.

            Imediatamente corri para a cozinha, meio que batendo nos móveis que tinha pelo caminho. Willy me seguiu. Peguei o telefone e levei à orelha, mas estava mudo. Eu estava sentindo medo de verdade. Medo como nunca tinha sentido até então.

            – O telefone não funciona! – falei, enquanto pegava outra lanterna na gaveta.

            Então Willy deu um grito, me fazendo levar um baita susto. Olhei na direção dele, tentando entender o que estava acontecendo.

            – Tinha alguém espiando para dentro! – disse ele apontando para a janela da cozinha, às minhas costas – Depois correu para os fundos!

            Peguei o meu irmão pelo braço e fui conduzindo ele de volta para a sala.

            – Eu sei onde está guardado o revólver. – falei – Está no quarto do pai e da mãe. Vou lá pegar e, se alguém tentar entrar aqui, eu vou atirar e seja lá o que Deus quiser!

            – Mas, mano... – sussurrou Willy, apontando o dedo para o alto da escada que levava ao segundo andar – Eu disse que o homem-lagarto já está aqui dentro!

            Então eu olhei naquela direção. Havia uma certa claridade – não sei se era a luminosidade da lua entrando pela janela do corredor de cima ou algo diferente – e dava para ver a sombra de alguém se aproximando. Eu não sabia de quem era, ou do que era, porque realmente não parecia a sombra de uma pessoa, mas de alguma outra coisa. Em poucos segundos ela já estaria descendo a escada.

            – Willy, é o seguinte... – disse eu, tentando parecer confiante – Vamos abrir a porta da frente e sair correndo. Vamos correr para a rua de baixo. Se não encontrarmos ninguém no caminho para pedir ajuda, vamos bater na porta do primeiro vizinho que conseguirmos chegar, ok?

            O meu irmão apenas concordou com um movimento de cabeça. Tinha os olhos arregalados e estava pálido de medo.

            Enquanto eu destrancava a porta da sala, pude ouvir os passos daquilo que estava descendo as escadas. Quase me mijei de pavor. Então, abri a porta e saímos correndo. Ou melhor, eu saí, porque Willy deu um grito tão logo foi bloqueado por alguém.

            Quando me virei e apontei a lanterna para o lado da entrada, comecei a tremer ao ver Julião segurando Willy pelo pescoço, enquanto encostava a lâmina de um canivete em seu rosto.

            – Agora nos encontramos de novo, né, seu babaca! – disse Julião – Vou talhar um “J” na cara do seu irmãozinho e então sempre que você olhar pra ele vai sentir vergonha por saber que essa cicatriz é culpa sua! Vergonha pior do que aquela que você me fez passar!

            Mas, antes que aquele demente pudesse cumprir a ameaça, uma coisa surgiu da escuridão através da porta. Era o homem-lagarto! Na verdade, não achei que se parecia tanto assim com um lagarto, mas era assustador e, com certeza, não era humano.

            Quando Julião viu a coisa se aproximando, deu um grito de espanto e – acho que agindo na base do instinto – largou Willy no chão e partiu com o canivete para cima da criatura.

            Até hoje eu não me lembro se a coisa estava segurando algum tipo de arma, ou se o raio saiu da sua própria mão. Mas, o fato é que uma luz esbranquiçada atingiu Julião e, imediatamente, ele começou a derreter. Ou melhor: evaporar. Primeiro foi sumindo as roupas e a pele, depois a carne, deixando os ossos expostos e, em seguida, esses também se desfizeram em uma nuvem de pó que esvoaçou, sem sobrar nada. E isso foi muito rápido. Muito mais rápido do que o tempo que estou levando para descrever. Julião foi atingido pelo raio e três segundos depois já não existia mais nenhum vestígio dele.

            Ao ver aquilo, Willy começou a gritar e, desesperado, correu de volta para dentro da casa. Automaticamente, entrei correndo atrás dele.

            Willy subiu as escadas, entrou no seu quarto e se enfiou debaixo da cama, algo que ele costumava fazer quando dava temporal, pois morria de medo. Tranquei a porta do quarto, puxei um armário e escorei para reforçar o bloqueio e depois tentei me enfiar embaixo da cama também, mas não havia espaço.

            Com um estrondo apavorante, o armário voou para longe e a porta foi aberta com a maior facilidade. O homem-lagarto entrou caminhando calmamente. Willy e eu começamos a gritar, acreditando que tinha chegado a nossa vez de virar pó, mas, ao invés disso, a criatura se curvou bem devagar, abriu uma gaveta na cômoda ao lado da cama e retirou de lá um objeto, que me pareceu algum tipo de cilindro prateado. Então, nos ignorando totalmente, a coisa virou as costas e saiu do quarto.

            Deitados no chão, meio iluminados pelos fachos das lanternas, Willy e eu ficamos nos encarando, tremendo e ofegando.

            – O que era aquilo que ele pegou? – perguntei, sentindo a minha voz falhando.

            – Era um pedaço da nave espacial. – disse Willy.

            – O quê?!

            – Eu tentei explicar, mas vocês não queriam ouvir! – insistiu Willy – Aquela noite que deu o miniterremoto, acho que foi quando a nave caiu dentro do lago. No dia seguinte eu pude ver, porque uma parte ficou para fora da água e tinha alguns pedaços boiando. Então, com um galho eu consegui pegar aquela peça e achei que seria legal guardar. Devia ser por isso que o homem-lagarto estava vindo aqui. Ele queria e peça de volta.

            Bem naquele momento começou um ruído estranho e uma vibração que podia ser sentida pela casa inteira. Uma luz esquisita surgiu através das janelas da frente. Willy saiu debaixo da cama e correu até lá para olhar. Eu o segui e cheguei bem a tempo de ver a nave iluminada flutuando por detrás das árvores do bosque, na direção do lago. Mas isso durou poucos segundos, porque, em seguida, ela partiu para cima em linha reta, em uma velocidade absurda, desaparecendo no céu escuro.

            E, a partir dessa noite, para Willy e para mim, a vida, o mundo e até o universo nunca mais foram os mesmos.

 

 


 

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