Por André Bozzetto Jr
Acordei de súbito com o coração acelerado e uma sensação estranha. Estava tendo um sonho esquisito, mas não conseguia lembrar o que era. Só lembrava que era sobre o Guga. Olhei para o rádio-relógio na cabeceira da cama. 3:33 da tarde. Como a minha família tinha o hábito de ir a praia somente de manhã, eu costuma tirar um cochilo depois do meio-dia. Quando acordava ia para o centro, jogar fliperama, dar uma olhada nas bancas de revistas e encontrar o pessoal para bater um papo, quase sempre sobre bandas de rock. E garotas, é claro.
No toca-discos rodava em volume baixo um vinil do Iron Maiden:
When you know that your time is close at hand
Maybe then you'll begin to understand
Life down here is just a strange illusion
(Quando você souber que o seu tempo está próximo
Talvez então você comece a entender
Que a vida aqui embaixo é apenas uma estranha ilusão)
O disco era do Guga. Ele tinha todos os álbuns do Iron Maiden, até o recém-lançado Somewhere in Time. Será que foi por causa do sonho ou uma associação com a música que me fez ficar pensando no Guga? Não sabia, mas decidi que iria até a casa dele.
Quando saí do quarto vi que não havia ninguém. Um bilhete em cima da mesa da cozinha avisava que os meus pais e meus dois irmãos menores tinham ido ao mercado e os meus avós foram fazer uma caminhada. Na nossa família sempre foi assim, íamos para a casa de veraneio em Tramandaí um pouco antes do natal e ficávamos até o fim de janeiro. Minha mãe era dentista e o meu pai era funcionário do Banco do Brasil. Não sei exatamente o que ele fazia, mas era do alto escalão administrativo. Ele tinha um amigo inseparável chamado Luiz, que era seu colega de emprego. Luiz também possuía três filhos e o mais velho deles, Guga, tinha a minha idade. Frequentávamos a mesma escola em Porto Alegre e passávamos as férias de verão nos mesmos períodos em Tramandaí. Ou seja, estávamos quase sempre juntos. Porém, nos últimos dias não tinha mais visto o Guga. Ele muito raramente ia à praia, mas já fazia quase uma semana que também não aparecia no fliperama e nem nos outros locais frequentados pelo pessoal da nossa idade. Os irmãos mais novos dele vinham todos os dias à nossa casa brincar com os meus, mas ele não deu as caras. Confesso que era um cara meio esquisito, o meu amigo Guga.
Peguei a bicicleta e saí. A casa do Guga ficava distante apenas quatro quarteirões da nossa, mas antes de ir para lá passei pelo centro, para me certificar de que ele não estivesse em algum dos locais de costume. Não estava.
Quando cheguei, vi que o carro do seu Luiz não estava diante da garagem. A casa parecia deserta. Deixei a bicicleta na entrada e toquei a campainha. Dentro de poucos segundos, Guga abriu a porta de supetão. Estava com os cabelos desgrenhados e olhos arregalados. Parecia mais estranho que de costume.
– Até que enfim! – disse ele, parecendo irritado – Por que demorou tanto?
– Como assim? – questionei.
– Estou desde ontem ligando para a sua casa!
– Ninguém me falou que você tinha ligado! Também não atendi nenhuma ligação sua, né... Se queria falar algo tão urgente por que não foi até lá?
– Entre, entre! Vou lhe contar tudo. – disse ele, parando com as reclamações.
Do lado de dentro a casa estava escura. Aparentemente todas as janelas e cortinas estavam fechadas. Guga me fez sentar no sofá e sentou sobre a mesinha da sala, bem diante de mim. Antes de começar a falar ficou me encarando por alguns segundos que pareciam intermináveis. Havia algo perturbador em seu olhar e eu não sabia se era medo ou loucura. Estaria chapado? Nunca soube que Guga usasse drogas.
– Eu preciso que você acredite em mim. – disse ele, em tom de cochicho.
– Fala logo, cara! O que está acontecendo? – rebati, já começando a ficar nervoso.
– Ok, ok! – resmungou ele, fazendo gestos para que eu falasse mais baixo – vou te contar tudo desde o início.
– Onde estão seus pais? – perguntei, olhando ao redor.
– Não sei. Eles nunca ficam em casa de tarde. Devem ter ido à praia ou levado meus irmãos no parque de diversões em Imbé.
– Você está drogado?
– Não! – respondeu ele, se descabelando em um gesto teatral de irritação.
– Então fala logo que porra está acontecendo!
Guga fechou os olhos e respirou fundo. Parecia estar tomando coragem para falar, ou escolhendo as melhores palavras.
– Você sabe que eu nunca fui de pegar muita mulher, né...? – disse ele, se esforçando para parecer calmo – Por causa de eu usar brinco, cabelo comprido e camisetas de banda. Essa merda do preconceito...
Na verdade, eu discordava. Guga pegava pouca mulher, mas não era por causa do visual rockeiro. Conhecia outros caras com o mesmo perfil que estavam sempre rodeados de garotas. O problema dele era ser esquisito e feio mesmo. Mas é claro que eu não iria dizer isso.
– E você sabe que eu sempre fui louco pela Vanessa, né...?
Vanessa era filha de outro colega de trabalho dos nossos pais e que também sempre passava as férias de verão em Tramandaí. Ela era realmente muito gostosa e, obviamente, não dava a menor bola para o Guga. E nem para mim.
– Sim, cara. O que essa sua doideira tem a ver com a Vanessa? – perguntei, impaciente.
– Antes deixa eu te contar outra coisa... – disse Guga, chacoalhando os cabelos e levando as mãos à cabeça, como se estivesse se esforçando para organizar as ideias – Outro dia eu desci até o porão. Nem me lembro mais o que estava procurando, mas era algo sem maior importância. Acabei encontrando lá embaixo uma caixa cheia de livros do meu tio, Ângelo. Havia coisas bem sinistras lá: livros de demonologia, de rituais, alguns escritos em outros idiomas... e tinha também o Livro de São Cipriano. Já ouviu falar?
– Acho que é um livro de feitiços e bruxarias. – respondi, começando a ficar ainda mais desconfortável com o rumo da conversa.
– Isso mesmo! O Livro de São Cipriano, o da capa de aço!
– Não me admira que o seu tio tenha ficado louco! – resmunguei – Mexendo com essas coisas!
– Não foi por isso que ele ficou louco. – argumentou Guga – Foi por causa da drogas. Consumiu tanto que fritou o cérebro.
– Tem certeza?
– Bem, deixe para lá, não tem importância. – rebateu ele – O fato é que eu folheei o livro e achei um feitiço para... trazer a mulher desejada. Exigia um monte de ingredientes bizarros e que não seriam fáceis de conseguir, mas pensei: por que não...
– Cara! Não acredito que você fez isso! – gritei, me levantando.
– Calma, calma! – disse Guga, me puxando pelo braço e me fazendo sentar de novo. Agora eu percebo que agi errado, muito errado. Mas, naquele momento, eu ficava imaginando a Vanessa peladinha na minha frente e...
– Você ficou louco de verdade! – disse eu, me levantando para ir embora de novo.
– Não! Por favor escute, escute! – insistia Guga, me puxando novamente pelo braço e parecendo cada vez mais alucinado – Eu fiz o ritual na segunda-feira de noite. A princípio nada aconteceu, nem na terça de manhã. Mas, de tarde, depois que todo mundo tinha ido à praia, ela apareceu aqui.
– Ela quem? – perguntei, sentindo o coração acelerar.
– Vanessa! Tocou a campainha e, quando abri a porta, simplesmente entrou e foi tirando a roupa! Transamos aí mesmo, no sofá onde você está sentado.
Tive um impulso de levantar do sofá, mas não consegui. Também não consegui dizer nada. Aquilo me parecia tão absurdo que chegava a dar medo. Estava com a sensação de que algo terrível ainda estava por vir no meio daquela loucura toda.
– Cara, preciso confessar que, apesar de estranho, foi maravilhoso! – continuou Guga – E depois ela se vestiu e foi embora, sem dizer uma palavra. Eu sei que parece esquisito, mas fica pior, porque no dia seguinte ela apareceu de novo! Tem vindo todas as tardes depois que a minha família sai de casa!
Comecei a suar. Sentia minha garganta ficando seca. De repente, senti uma vontade tremenda de estar em casa, na segurança do meu quarto. Ou melhor, na segurança do meu quarto lá na minha casa oficial, em Porto Alegre.
– Só que a partir do segundo dia, as coisas foram ficando cada vez mais bizarras... – continuava Guga, aparentemente sem perceber o meu desconforto – Ela queria fazer de tudo, entende? Digo, tudo mesmo, como nos filmes pornô! No começo achei legal, lógico, mas começou a passar do ponto... Ela queria que eu batesse nela, que batesse com força, e me batia também! E parecia que nunca ficava satisfeita!
Guga ergueu a sua surrada camiseta com a estampa do disco Born Again do Black Sabbath e virou de costas.
– Está vendo esses arranhões? Parecem navalhadas, né? Mais isso foi só o começo!
Eu queria dizer que não consegui ver as tais marcas, mas ele simplesmente não parava de falar, me encarando com aqueles olhos insanos.
– Ontem ela quis pegar uma faca! – disse ele, com voz trêmula – Enquanto a gente transava ela começou a se cortar! E me cortou também! Veja! Tá vendo essa cruz invertida aqui no meu peito?! Foi ela quem cortou!
Tentei olhar mais de perto, mas ele já tinha abaixado a camisa de novo. Agora lágrimas escorriam dos seus olhos.
– Quando ela fez isso eu saltei da cama e disse “pra mim chega”! Então ela me socou no nariz, cuspiu na minha cara, me chamou de puto, de veado, de frouxo e disse que se eu não fizesse tudo que ela mandasse, iria dizer para todo mundo que eu a estuprei!
Guga estava chorando. Chorando de verdade, feito uma criança.
– Sabe o que eu acho? – questionou ele, tentando enxugar as lágrimas – Que o ritual liberou um demônio que entrou no corpo dela e agora está fora de controle.
Eu estava completamente apavorado. Não por causa da história toda de demônio, mas por ver que o meu amigo havia ficado louco. Iria parar em um hospício, como o seu tio, que já estava lá há anos.
– Você não acreditou em nada, não é mesmo? – resmungou Guga, em tom de desespero – Mas se você visse, então acreditaria, né?
– Ela vai vir hoje também? – perguntei com um fiapo de voz, fazendo muito esforço para disfarçar a angústia.
– Não, meu amigo. Ela já está aqui.
*
– Ela já está aqui...? – questionei, olhando ao redor, enquanto um arrepio percorria minha espinha.
– Sim. – respondeu Guga, com o medo estampado no olhar – Está dormindo no sofá do porão... Comecei a levá-la para lá por causa dos gritos e das gargalhadas. Não queria correr o risco de os vizinhos ouvirem. Hoje enquanto descíamos para lá ela passou a mão em um litro de uísque que estava ali naquele balcão junto com as outras bebidas do meu pai. Tinha mais da metade dentro, e ela bebeu tudo enquanto transávamos. Depois apagou.
– Deixa ver se eu entendi: A Vanessa, a maior patricinha que já conheci, fez sexo selvagem e sadomasoquista com você, bebeu meio litro de uísque e agora está dormindo no sofá do seu porão? – perguntei, tentando deixar claro o quão insano isso parecia.
– Isso mesmo! – reafirmou Guga, começando a chorar de novo – Mas não foi apenas sexo selvagem e sadomasoquista... Você precisa ver o que aquilo fez com o meu pau! Está doendo pra caralho e...
Guga começou a abrir o zíper da calça jeans, mas eu o interrompi.
– Eu não quero ver o seu pau! – gritei, levantando do sofá – Quero ver a Vanessa.
– Pode ir lá no porão – disse Guga, fechando a calça novamente – Mas eu não vou descer com você. Não vou descer lá nunca mais!
Concluí que era melhor acabar com aquela história de uma vez por todas. Se Vanessa estivesse lá – o que eu duvidava – então teríamos um problema provavelmente ligado a surtos psicóticos e drogas pesadas. Se não estivesse, então precisaríamos pensar em como explicar aos pais do Guga que ele precisava de tratamento psiquiátrico urgente.
Me dirigi para a porta do porão sem dizer nada. Me pareceu que quanto mais fosse falado sobre aquela loucura toda, pior seria. Guga me seguia à certa distância, visivelmente amedrontado. A casa estava mergulhada na penumbra. Achei que poderia até já ser noite lá fora.
A porta do porão ficava na entrada da cozinha. Estava entreaberta e havia uma fraca luminosidade vindo lá de baixo. Olhei para Guga e ele deu um passo atrás, deixando claro que não iria descer comigo.
– Você é um cara inteligente, sempre tira 10 na escola... Vai saber o que fazer para resolvermos isso. – disse ele, tentando parecer esperançoso.
Respirei fundo e desci as escadas. O porão era grande, mas mal iluminado por apenas uma lâmpada comum no centro do teto baixo. Havia móveis, caixas e utensílios diversos espalhados por todos os lados. Parecia que raramente alguém descia lá. No lado direito da escada tinha uma mesa com uma caixa de papelão em cima. Dentro da caixa vi diversos livros e, entre eles, o tal Livro de São Cipriano. A capa não era de aço, mas pintada e adornada de tal forma que parecia ser. Tocando era bem fácil perceber a diferença. Mas, mesmo assim, era algo sinistro. Embora eu não acreditasse nessas coisas, parecia mesmo algo dotado de algum tipo de energia.
Também havia dentro da caixa outra coisa que me chamou a atenção: um objeto em forma de pirâmide, de uns 10 centímetros de altura e cor preta. Apenas olhando não dava para saber se era feito de metal ou algum tipo de mineral. Curioso, pensei em pegar a pirâmide na mão, mas, antes mesmo que eu tocasse no objeto, ele pareceu vibrar e emitir um rápido flash luminoso, como o de uma máquina fotográfica. Levei um susto e me afastei da caixa.
Foi então que aquela sensação de desconforto e medo – até ali mais ou menos controlada – aumentou absurdamente. Vi que logo adiante de mesa havia um pequeno espaço delimitado no chão por um tapete retangular. No fundo estava uma antiga televisão desligada, ladeada por duas poltronas desbotadas. Em cima de uma pequena cômoda estavam empilhados diversos exemplares de revistas em quadrinhos, como Mad, Zagor, Tex, Kripta e Spektro. Mas, o que fez o meu sangue gelar nas veias foi avistar o sofá, logo ao lado. Realmente, havia alguém deitado ali. Me aproximei lentamente. Parecia que o coração iria saltar do peito. Então eu vi. Não era Vanessa quem estava deitada lá. Mas eu sabia quem era. Reconheci sem dificuldades uma prostituta imunda e fedorenta, de cerca de 40 anos de idade, conhecida como “Marta Fogueteira” que passava a noite bebendo, fumando maconha e fazendo ponto na Praça da Tainha. Era alvo de gozações de todos. Quando algum garoto da nossa idade reclamava de falta de namorada, era de praxe se dizer que o mesmo deveria recorrer aos serviços da Marta Fogueteira.
Me aproximei do sofá, sem saber ao certo o que fazer, mas nem houve tempo para pensar em algo. Ela abriu os olhos de repente e me encarou. Quando vi aqueles olhos – que pareciam qualquer coisa, menos humanos – então entendi o significado do terror. Sua carranca esboçou um sorriso animalesco.
– Oi, gatão! Veio me comer também? – disse Marta Fogueteira, com uma voz que me lembrou a do vocalista da banda Venom.
Recuei, apavorado, tropecei em algo e cai sentado. Numa fração de segundos ela já estava sobre mim.
– Ponha esse pau para fora e vamos começar a diversão! – gritou a coisa, enquanto tentava abaixar a minha bermuda.
Em pânico, gritei, esperneei e acabei atingindo a coisa com um chute na boca. Ela soltou um berro horrível e recuou com as mãos no rosto.
– Sua bicha! Seu puto! Veadinho! – rosnava o ser que parecia com a Marta Fogueteira – Vou arrancar esse seu pauzinho de anão e dar para um cachorro sarnento comer!
Sem parar de gritar, corri de volta para a escada, trombando e derrubando no chão tudo o que havia pela frente. No meu íntimo eu tinha certeza de que se aquela coisa me pegasse ela iria realmente fazer aquilo que estava ameaçando.
– Onde já se viu um marmanjo desses ter medo de boceta?! – gritou a coisa, me seguindo de perto, logo antes de soltar uma gargalhada horripilante.
Quando cheguei ao topo da escada, praticamente me joguei para fora. Rastejei pelo chão da cozinha, tentando me afastar o mais rápido possível, mas, para o meu desespero, senti uma mão agarrando com muita força o meu tornozelo e me puxando de volta para a escada. “O pai do Guga tem uma arma, não é mesmo?”, foi o pensamento que passou pela minha cabeça enquanto gritava por socorro.
Me agarrei com as duas mãos no marco da porta e quando olhei para baixo vi a Marta Fogueteira – ou a coisa que se parecia com ela – praticamente escalando a íngreme escada, utilizando as minhas pernas como apoio. Quando ela estava quase na linha da minha cintura, reuni todas forças que consegui e desferi uma joelhada. O golpe a atingiu no queixo. Com o impacto, ela me largou e rolou escada abaixo.
Corri novamente para fora e tão logo adentrei a cozinha, Guga fechou a porta de acesso ao porão detrás de mim e trancou-a com a chave.
– Acredita em mim agora?! – gritou ele, apavorado.
– Guga, não é a Vanessa quem está lá embaixo! É a Marta Fogueteira! Será que você não percebe?!
Ele ficou me olhando, com cara de quem não estava entendendo nada.
– Acho que sei o que aconteceu... – falei, tentando manter a calma – O demônio que você liberou com o ritual precisava de um corpo para se manifestar. Então ele possuiu a Marta Fogueteira e deve ter usado algum tipo de poder para fazer você pensar que era a Vanessa. Entendeu? Uma ilusão!
– Marta o quê? – balbuciou ele, parecendo incrédulo.
– Fogueteira! A Marta Fogueteira!
Nesse instante, um estrondo pavoroso quase me fez infartar. Olhei para a porta do porão e vi lascas de madeira caindo através de um buraco.
– Achei um monte de ferramentas aqui embaixo! – berrou o Demônio-Marta, com sua voz de Cronos – Até um machado!
Com outra machadada, metade da porta veio abaixo. Guga saiu correndo e gritando através do corredor e sumiu no interior da casa. Eu não pude fazer o mesmo, pois a coisa bloqueou o meu caminho com o machado em mãos. Então corri para o lado oposto da cozinha, onde ficava a porta que dava acesso ao quintal e a garagem, mas ela não abria. Não importa o quanto eu tentasse girar a maçaneta, ela simplesmente não abria.
– Pode abaixar a cueca, meu bem! – rosnou o demônio, agitando o machado de forma provocativa – Está na hora de abater o pintinho!
A janela era basculante, então não tinha como fugir através dela. Minha única esperança seria tentar correr até a gaveta dos talheres e pegar uma faca. Mas, mesmo assim: faca contra machado?! Que chance eu teria?!
Porém, não havia outra alternativa. Ou tentava isso ou seria esquartejado dentro de poucos segundos. Me joguei na direção da gaveta. Para meu desespero, parecia que eu me movia em câmera lenta. Vi o demônio vindo pela direita, com o machado erguido sobre a cabeça, pronto para descer sobre mim. A coisa tinha um brilho de ódio no olhar. Não ia dar tempo. Fechei os olhos e me encolhi de encontro à pia, esperando o golpe.
Então ouvi um estrondo ensurdecedor seguido de um baque que fez tremer o assoalho aos meus pés. Como não senti nada me atingindo, abri os olhos e dei de cara com Guga no outro lado da cozinha, segurando um revólver com mão trêmula e rosto molhado por lágrimas. Marta Fogueteira estava caída aos meus pés, dentro de uma poça de sangue que aumentava de tamanho rapidamente. Seus olhos sem vida já não tinham mais aparência demoníaca. Ela parecia apenas uma pobre mendiga desdentada.
– Meus Deus! – começou a balbuciar Guga – Eu matei a Vanessa! Matei a Vanessa!
– Calma, Guga! Você fez isso para me salvar! – disse eu, tentando me recompor e confortá-lo ao mesmo tempo – Veja! Não é a Vanessa! É a Marta Fogueteira!
– Os vizinhos devem ter ouvido o tiro... Meu pai vai ficar sabendo que eu peguei a arma dele e vai ficar bravo comigo! – dizia Guga, começando a chorar de forma mais desesperada do que antes.
– Ouça, eu tenho uma ideia! – falei, tentando demonstrar convicção – Foi com o Livro de São Cipriano que tudo começou, certo? Então a solução para isso também está no livro. Eu vou descer ao porão para pegá-lo e aí vamos dar um jeito, ok?
– Vanessa... Vanessa... – resmungava Guga, com olhar vidrado, parecendo nem ouvir o que eu estava falando.
Decidi deixar para lá e agir. Desci rapidamente as escadas do porão e peguei o livro de dentro da caixa de papelão. Quando comecei a subir de volta para a cozinha, ouvi Guga gritando “Me perdoa, Vanessa!” e então outro estrondo de tiro ecoou pela casa. Me encolhi instintivamente junto aos degraus e permaneci assim por alguns segundos.
– Guga?! Guga?! – gritei, já temendo pelo pior.
Como não tive resposta, subi correndo os degraus que ainda faltavam. E então Guga estava lá, sentado no chão da cozinha, com o corpo recostado na parede respingada de sangue. A arma pendendo da mão direita, o buraco ensanguentado na têmpora.
Em desespero, olhei ao redor, como se procurando algum tipo de ajuda, mas o que vi foi justamente o contrário: a manifestação do mais puro terror. Do cadáver da Marta Fogueteira estava saindo uma espécie de fumaça, ou melhor, parecia uma névoa, que rapidamente começou a se condensar e virar algum tipo de gosma. Em poucos segundos, aquela meleca nojenta começou a formar um corpo, mas era a coisa mais horrível que eu já tinha visto. Sequer tinha imaginado alguma vez algo tão bizarro. Era uma criatura com olhos enormes e com um corpo gelatinoso de onde saiam tentáculos, línguas, pênis e vaginas, mas tudo isso cheio de deformidades e aspecto pavoroso.
– É o demônio... – disse uma voz às minhas costas – ... O Demônio da Luxúria... da perversão sexual...
Quando olhei para trás, quase tive um ataque cardíaco. Era o cadáver do Guga que estava de olhos abertos e falando comigo, só que a voz não era do Guga. Parecia uma voz vindo diretamente do inferno. Como se não bastasse, o monstro começou a se mover na minha direção, emitindo um som que parecia risos provocativos.
Naquele instante, ouvi sirenes ao longe, mas que se aproximavam rapidamente. Isso pareceu despertar novamente o meu instinto de sobrevivência e corri para fora da cozinha, sem nem olhar para trás. Atravessei a casa escura com o livro debaixo do braço e saí pela porta da frente. Já estava escuro do lado de fora, e a escuridão foi aumentando e me envolvendo conforme eu dava alguns passos pela calçada. Escuridão, sirenes, vertigem... e um baque.
*
Abri os olhos ainda sentindo tontura, sem saber por quanto tempo havia ficado desacordado. Não parecia ter sido muito. Tentei me mover, mas não consegui. Então percebi que estava afivelado a uma maca, no interior de uma ambulância.
– Já acordou?! – perguntou de forma mal-humorada um enfermeiro meio careca que estava sentado ao meu lado – Se não quiser tomar mais injeção é melhor ficar calmo. Chega de falar bobagem.
– Que bobagens eu falei? – perguntei, tentando me lembrar dos últimos instantes.
– Alguma coisa sobre possuir a Marta Fogueteira. – respondeu ele, sem disfarçar o descontentamento – Não tem vergonha? Um garoto da sua idade transando com essas prostitutas fedorentas?!
– Se ainda fosse com aquelas de Imbé, que são mais limpinhas! – emendou de forma debochada outro enfermeiro, um grandalhão, que acabava de chegar não sei de onde.
– Não é nada disso! – gritei – Por que acham que o Guga atirou nela?!
– Quem atirou em quem? – perguntou o careca, olhando para o outro e depois para mim, com cara de quem não estava entendendo nada.
– O Guga atirou na Marta Fogueteira e depois se matou! – respondi, sentindo as lágrimas umedecendo meus olhos – Ela estava possuída pelo demônio, mas depois o demônio saiu do corpo dela e tentou me pegar!
– Onde?! Quando?! – perguntou o grandalhão, visivelmente espantado.
– Lá dentro, na cozinha... – respondi, sem conseguir conter o choro – E o demônio fez o corpo do Guga falar, mesmo depois de morto!
– Você está mesmo doidão, rapaz! – disse o careca – Não há ninguém lá dentro. A casa está vazia. Os donos já foram chamados.
– Mas, como?! – gritei, tentando me soltar da maca – Eu tenho certeza!
– Veja o tipo de coisa que esses moleques andam lendo! – disse o grandalhão apontando para o Livro de São Cipriano que estava ao lado da maca, junto com os meus chinelos – Não me admira que fiquem loucos.
– Certo, já podem ir. – disse um policial militar bigodudo se aproximando da ambulância – Os pais do garoto já foram avisados e estão indo direto para o hospital. Alguém da Civil vai ir para lá também.
– Esperem! Mas e o Guga?! E a Marta Fogueteira?! – gritei, irritado por não me darem ouvidos.
– Pode fechar as portas que já estou aplicando mais calmante. – disse o careca para o outro enfermeiro, enquanto se aproximava de mim com uma seringa em mãos.
Tentei reclamar, mas não adiantou. A nova dose de calmante devia ter sido bem mais forte, pois senti que rapidamente estava perdendo os sentidos. As portas foram fechadas e a ambulância foi ligada. Ainda pude ouvir do lado de fora uma voz feminina perguntando algo que não consegui entender, e então o policial respondeu: “É apenas um garoto drogado tendo um surto”. Mas, me chamou a atenção o fato de que a voz da mulher lembrava de forma sinistra a do vocalista da uma banda de Heavy Metal chamada Venom.
– ... na verdade, acho que parece mais com a voz do Lemmy... vocalista do Motörhead... – balbuciei, já fechando os olhos.
– O quê?! – perguntou o enfermeiro, em tom irritado.
– O demônio... tem muitos truques e disfarces... – consegui dizer, antes de perder a consciência novamente.
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