Por André Bozzetto Jr
Eu me arrependi tão logo cheguei. Antigamente o Parque era um lugar muito tranquilo e agradável. Dava para passar muitas horas caminhando pelas trilhas na mata, sentar nas sombras das grandes árvores para ler e relaxar, além de nadar nas águas calmas e refrescantes do riacho. Como quase ninguém ia lá, tudo permanecia limpo e preservado, sem gente desrespeitosa e lixo, que dá praticamente na mesma. Mas isso ficou no passado. Lixo agora é o que mais se vê no Parque aos finais de semana. Não apenas garrafas, copos plásticos, bitucas de cigarro e pacotes de tudo quanto é porcaria, mas sobretudo o lixo humano. Gente bêbada, vulgar e irritante, que não respeita nada e nem ninguém e inferniza a todos com uma espécie de competição de dejetos sonoros em caixas de som que vomitam “funk ostentação”, “sofrência”, “sertanejo universitário” e sabe-se lá quais outros tipos de diarreia auditiva impossível de se classificar como música. Não satisfeitos em tornar os espaços públicos urbanos em antros de imundice e baixarias, passaram a infestar também os últimos redutos da natureza em que era possível se vivenciar a paz. Agora tudo é zoeira e sujeira. Em nome da “diversão”, se expõe o que há de mais patético e degradante dentro de cada um.
Como o tempo estava para chuva, acreditei que poderia ter uma manhã de sábado um pouco mais sossegada, mas estava enganado. O Parque estava quase tão cheio como de costume. O pessoal ocupava a estrutura fixa dos quiosques e ainda espalhava gazebos e tendas por todos os lados, com churrasqueiras móveis impregnando o ar com fumaça escura de carvão. Eu trazia na mochila alguns sanduíches e o meu exemplar de O Idiota, mas Dostoiévski ia ter que esperar. Decidi descansar um pouco – o Parque ficava a 7 km da cidade e eu tinha ido a pé – e logo voltaria para casa. Diante daquele deprimente show de grosseria e vulgaridade, o silêncio do meu quarto parecia muito mais convidativo e acolhedor.
Sentado em um dos únicos bancos de madeira que ainda estavam vagos, comecei a me lembrar de uma cena presenciada um pouco antes que, agora percebo, já era um prenúncio do que estava por vir. Bem diante da entrada do Parque, passou por mim uma antiga caminhonete rural, praticamente caindo aos pedaços. Na pequena carroceria havia um colchão, algumas sacolas de roupas, potes de comida e um cachorro. Ao volante estava um senhor idoso e ao seu lado uma senhora, igualmente idosa. Eu reconheci o motorista. Era o Seu Sebastião. Ele morava em uma humilde chácara ao lado do Parque e costumava ir à cidade vender chás, mel e outros produtos naturais. A minha avó geralmente comprava dele um pouco de camomila, macela e hortelã. Quando eu era criança e o Seu Sebastião passava lá em casa, sempre me chamava de Gurizinho e me dava umas balas artesanais de mel e funcho. Naquele momento ele dirigia com expressão tensa e séria. Quando passou ao meu lado, diminuiu ainda mais a velocidade e ficou me olhando, com ar preocupado. “A gente está indo embora, Gurizinho”, disse ele, parecendo realmente me reconhecer, “Nessas matas têm coisas muito antigas que deveriam ser deixadas quietas. O que aquela gente está fazendo lá do lado do rio não vai acabar bem. Você também devia ir embora.” E assim eles se foram, com certeza, para nunca mais voltar. Pessoas simples, que viviam naquelas terras a sabe-se lá quantas gerações, partindo de forma melancólica, rompendo com suas raízes, agora condenadas ao esquecimento. Gente que aprendeu a conviver em harmonia com a natureza, expulsa pela presença iminente e sem alma do concreto e do asfalto, pelo avanço hostil de uma urbanização que consome a tudo, sem ligar para ninguém, nem para eles e nem para a natureza.
Era sobre isso que ele estava falando quando se referiu “ao que estavam fazendo lá do lado do rio”. Um grande condomínio de luxo. As terras na margem oposta do curso d’água não faziam mais parte do Parque, portanto, na visão dos políticos que autorizaram a obra, poderiam ser devastadas e maculadas com torres de tijolo, vidro e aço para abrigar gente rica e esnobe que certamente estaria mais preocupada com o formato da piscina e a cor das paredes do lado de dentro do que com as árvores e o rio do lado de fora. A obra, ainda em fase inicial, já deixava claro com suas máquinas e caminhões, que a concretude do sonho capitalista esmaga e transforma em pesadelo as referências daqueles com quem quase ninguém mais se importa. Seu Sebastião, com seu rosto marcado pelas rugas tristes da desilusão, que o diga.
Fazia poucos minutos que eu havia chegado, quando um casal acompanhado de uma menina de 9 ou 10 anos de idade se aproximou e começou a organizar um piquenique no gramado ao meu lado. Logo o cara disse para a esposa: “Enquanto vocês ajeitam as coisas aqui, eu vou até lá no rio ver como estão as obras. A perfuratriz grande ia chegar hoje de manhã. Logo estou de volta”. Eu conhecia aquele sujeito. Era funcionário do Departamento de Água e Esgoto. Devia ser um dos responsáveis por fiscalizar a construção do condomínio. Como se isso fizesse alguma diferença.
Se passaram mais alguns minutos e, como percebi que o céu estava mais escuro e a chuva logo viria, coloquei novamente a mochila nas costas e já estava pronto para refazer a caminhada de volta até a cidade, quando vi, se aproximando da direção do rio, alguém que vinha correndo, gesticulando de forma afobada e gritando algo para as pessoas que estavam ao redor. Era aquele sujeito, o cara do Departamento de Água e Esgoto. Claramente, a maioria das pessoas não dava nenhuma bola para seja lá o que fosse que ele estivesse dizendo. Muitos nem sequer ouviam, porque a poluição sonora que saía das diversas caixas JBL impregnava os arredores. Mas, conforme ele foi se aproximando – suado, afobado e apressado – consegui ouvir o que estava dizendo: “Corram! Corram! Aquilo está vindo!”. Quando ele passou por mim, pude ver o pavor estampado no seu rosto e não tive nenhuma dúvida de que, sabe-se lá o que fosse aquilo que estava vindo, devia ser algo completamente aterrorizante.
Tão logo chegou ao local onde estavam a esposa e a filha, pegou a menina no colo e disse “Vamos, querida! Calce os tênis porque vamos precisar correr!”. Assustada, a garotinha perguntou o que estava acontecendo, mas ele nada respondeu e somente continuou ajudando a colocar o calçado de forma afoita. Quando a esposa insistiu em perguntar o motivo de tanta agitação, ele apenas resmungou: “Eu disse para aqueles babacas que não era para escavar naquele lugar!”. E mais não falou. Pegou a filha por uma mão, a esposa pela outra e assim saíram correndo na direção do estacionamento, que ficava distante uns 500 metros dali.
Com o coração batendo acelerado e sentindo um medo que se tornava quase palpável, mesmo sem saber o porquê, não tive dúvidas e saí correndo também, assim como algumas outras poucas pessoas que notei com o canto do olho. Mal havia dado alguns passos quando percebi a terra tremendo sob os meus pés. O terremoto foi rápido, não deve ter durado mais do que 5 segundos, mas foi tão intenso a ponto de fazer com que eu e todos que consegui avistar caíssemos no chão. Escutei o barulho de árvores tombando, e um estrondo muito forte que deduzi ser um transformador de energia elétrica explodindo sobre algum poste, porque muitas das caixas de som silenciaram em seguida. Ouvi alguns palavrões, crianças chorando e expressões de incredulidade.
Ainda estava me levantando, quando começaram os gritos. No início eram poucos, mas muito rapidamente aumentaram de quantidade e intensidade. Os primeiros pareciam vir das proximidades do rio, e logo foram subindo, para a direção onde eu estava. Então várias outras pessoas começaram a correr e dentro de instantes o pânico foi se espalhando pelo Parque. Aquilo estava vindo!
Sem titubear, me botei a correr novamente, tentando nem olhar para os lados para não me distrair ou perder tempo. E os gritos aumentavam. Gritos de pavor, de dor, ou o que quer que fosse, mas eram gritos terríveis, de gelar o sangue. Tive a impressão de ter ouvido um som diferente, difícil de descrever, mas estranho o suficiente para me deixar ainda mais assustado. Eu corria como se não houvesse amanhã, porque talvez se aquilo me alcançasse não haveria mesmo.
Algumas pessoas me ultrapassavam na corrida e isso fez com que eu decidisse largar a mochila para ficar mais leve e rápido. Chegando no estacionamento, as pessoas embarcavam nos carros e partiam o mais rapidamente que podiam. A pressa era tanto que alguns veículos colidiam nos outros e começava uma sinfonia de buzinas e xingamentos. Em desespero, algumas pessoas tentavam pedir carona e se enfiar nos carros das outras, mas quase ninguém colaborava, deixando para trás homens, mulheres e crianças que gritavam e choravam, apavoradas. Eu decidi não perder tempo dependendo da caridade alheia e segui para fora do Parque a pé mesmo, tentando controlar o fôlego na corrida.
Foi então que, se sobrepondo ao choro, aos gritos e aos estrondos de árvores caindo, ouvi novamente aquele barulho, dessa vez tão alto, claro e horripilante que quase me deixei dominar pelo pavor. Não era um urro, não era um rosnado. Não sei o que era, mas com certeza não era humano e nem vindo de qualquer animal que eu conhecesse. Pela potência do som, vinha de algo grande, muito grande. Mesmo sem parar para olhar, tive a impressão de que a coisa vinha por entre a mata, pelo lado direito do portão do Parque e que, provavelmente iria atravessar a cerca e bloquear a estrada que ia em direção à cidade. Por isso, quando passei pelo portão e cheguei na rodovia, corri para o lado contrário.
Percebi que várias pessoas tiveram ideia semelhante e seguiram na mesma direção que eu. Parece que foi o mais acertado, pois do lado oposto continuavam vindo gritos, sons que imaginei serem de carros colidindo em algo e até uma explosão. Mas, não havia motivo para diminuir o ritmo. Logo aquele som infernal ecoou novamente, logo atrás de nós. Agora eram alguns membros do nosso próprio grupo de fugitivos que gritavam apavorados, decerto porque cometeram o erro de olhar para trás e vislumbrar aquilo.
Uma moça loira passou correndo pela minha direita como se fosse uma maratonista, mas, quase imediatamente, percebi com o canto do olho que algo se projetou na direção dela e a puxou de volta rapidamente. Seria um tentáculo?! Não tenho certeza. Só sei que ouvi o perturbador barulho de algo se partindo, um grito estridente e então alguma coisa quente e pegajosa respingou na minha nuca.
Comecei a sentir as forças me abandonando. Percebi que não iria conseguir correr por muito mais tempo e então o meu destino seria o mesmo daqueles que iam ficando para trás, que gritavam e depois se calavam para sempre.
Nesse meio tempo, pelo menos dois carros que vinham na nossa direção, deram meia-volta e fugiram pelo mesmo caminho de onde surgiram, sem ajudar a ninguém. Quando já estava começando a ficar sem esperanças, ouvi um ronco de motor e olhei para o lado direito. Em uma estrada de terra que seguia paralela à rodovia onde estávamos, vi uma antiga camionete F1000 se aproximando rapidamente. Ao volante estava um homem de meia idade, com um chapéu na cabeça, gesticulando que era para irmos na direção dele. Percebi que havia mais gente na cabine, e na carroceria estavam dois garotos e um velho, todos acenando e gritando em nossa direção.
No instante seguinte, a camionete saiu da estrada de terra com uma manobra brusca, levantando uma nuvem de poeira, adentrou no acostamento e diminuiu bastante a velocidade – quase parando – para que pudéssemos alcançá-la. Reunindo minhas últimas forças, percorri os metros finais o mais rápido que pude e fui o primeiro a chegar. Várias mãos pegaram nos meus braços e me puxaram para cima da carroceria. Imediatamente, me virei e ajudei os próximos que vinham chegando a subir também. Foram apenas duas moças e dois rapazes. Dos retardatários eu ouvi só os gritos, estridentes, sofridos, devastadores.
Quando a camionete voltou a pegar velocidade, agora acelerando pelo asfalto, fechei os olhos com força e me sentei no assoalho da carroceria. Não queria de jeito nenhum olhar na direção da coisa. Não queria ver o que ela fazia com as pessoas que pegava. Achava que não iria resistir a uma visão dessas e a loucura iria me dominar, se já não estivesse dominando. Mesmo assim, com os olhos fechados e a cabeça abaixada, ouvia o pessoal ao meu lado gritando “Meus Deus! Olha o tamanho daquela coisa!”, “Que horror!” “De onde saiu aquilo?!”.
Na medida em que o motorista pisava fundo no acelerador, uma discreta sensação de alívio parecia se manifestar. Me recostei na lateral de carroceria e, provavelmente pela exaustão e pela pressão emocional, senti que estava desfalecendo. Antes de perder os sentidos, ainda ouvia frases aleatórias das pessoas ao meu redor. “Não se preocupem. Tem dois galões de gasolina aí do lado.”, “Perdi o meu celular!”, “Será que aquela coisa vai continuar nos seguindo?”, “Onde será que foram parar os meus pais?!”. E então apaguei completamente.
Acordei suado e com dor de cabeça. Talvez esteja com febre. Já está anoitecendo. Todo mundo ao meu redor está dormindo, menos o velho, que observa a estrada, sério e silencioso. Não faço ideia se estamos rodando desde que apaguei ou se foi feita alguma parada. Agora tenho dúvidas se tudo que eu acho que se passou realmente aconteceu. Pode ser que eu esteja delirando, que seja loucura. Gostaria de acreditar que foi apenas um pesadelo, daqueles tão traumáticos que passam a nos assombrar em noites insones, como fantasmas. Provavelmente seria melhor do que encarar a frágil e enigmática noção daquilo que eu acreditava ser a realidade.
Olho ao redor e não reconheço a paisagem. Vejo apenas a mata, que agora me parece sombria e ameaçadora. Não sei para onde vamos, nem o que será de nós quando chegarmos. Pensei em perguntar ao velho se ele sabe onde vai dar essa estrada, mas tenho medo que ele responda que a estrada não leva a lugar nenhum. Talvez aquilo ainda esteja em nosso encalço. Talvez ela nos alcance quando mergulharmos completamente nas trevas da noite. Talvez a coisa já tenha me pegado. Talvez toda essa escuridão que se aproxima esteja dentro da minha mente. Talvez...
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