18 de out. de 2023

CRÍTICA DO FILME: A LENDA DO LOBISOMEM

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Na virada dos anos 1960 para 1970, a cultuada produtora inglesa Hammer, que há duas décadas vinha se mantendo como a principal expoente no que se refere à produção de filmes de horror e suspense, começou a entrar em decadência.  O desgaste da fórmula utilizada exaustivamente durante muitos anos fez com que, com o passar do tempo, seus filmes perdessem qualidade, e consequentemente, não conseguissem mais obter o sucesso e o retorno de outrora. Com isso, muita gente – atores, diretores e produtores – começou a cair fora, na tentativa de reencontrar o sucesso trabalhando sob um novo teto.

            Tentando tirar proveito da situação, um jovem empreendedor chamado Kevin Francis decidiu fundar sua própria produtora, a “Tyburn Films”. Infelizmente, a nova produtora também não conseguiu ser muito bem-sucedida, concebendo alguns poucos filmes antes de fechar suas portas. Porém, entre as suas produções se encontra um belo filme de lobisomem, chamado laconicamente de “A Lenda do Lobisomem” (Legend of The Werewolf, 1975). Para dirigir esse filme, Kevin Francis chamou ninguém menos do que o seu próprio pai, Freddie Francis, que trabalhou muitos anos na Hammer, dirigindo uma enorme quantidade de filmes, sendo que muitos deles chegaram a ser lançados no Brasil, como por exemplo “O Monstro de Frankenstein” (The Evil of Frankenstein, 1964), “Cilada Diabólica” (Nightmare, 1964) e “Drácula – O Perfil do Diabo” (Dracula Has Risen From the Grave, 1968). Para interpretar o personagem principal, foi contratado um dos mais emblemáticos atores da história do cinema de horror, o grande Peter Cushing, astro de dezenas de filmes memoráveis como os clássicos “A Maldição de Frankenstein” (The Curse of Frankenstein, 1957), “O Vampiro da Noite” (Horror of Dracula, 1958) e “O Cão dos Baskervilles” (The Hound of The Baskervilles, 1959), para citar apenas alguns.

            Mas não foi só isso. Para escrever o roteiro, foi contratado Anthony Hinds, mais um egresso da Hammer, que sob o pseudônimo de John Elder, roteirizou várias obras clássicas como “Drácula – O Príncipe das Trevas” (Drácula – Prince of Darkness, 1966), “O Beijo do Vampiro” (The Kiss of The Vampire, 1963) e “A Maldição do Lobisomem” (The Curse of The Werewolf, 1961). E por falar em “A Maldição do Lobisomem”, é notável que esse filme foi a grande fonte de inspiração para a concepção de “A Lenda do Lobisomem”. Em primeiro lugar, ambos os filmes foram livremente baseados no livro “The Werewolf of Paris”, de Guy Endore, embora cada uma das películas priorizasse elementos distintos da obra literária. Para o filme de 1975, o roteirista Hinds ainda utilizou elementos de outro livro chamado “The Wild Child”, de Francois Truffaut, principalmente na parte inicial.

            Mas além do roteiro, também existem outras similaridades entre “A Lenda do Lobisomem” e “A Maldição do Lobisomem”, principalmente no que se refere à direção, onde Francis parece ter se inspirado no trabalho do diretor Terence Fisher, utilizando também os recursos de narração em off no início, os saltos no tempo para situar a ação em diferentes períodos e a estratégia de mostrar o lobisomem indiretamente na maior parte do filme, optando por revelá-lo completamente apenas nos ataques finais. Inclusive, o visual do lobisomem é muito parecido com aquele de “A Maldição do Lobisomem”, evidenciando uma criatura bípede, com o corpo coberto por uma camada de pelos e preservando pelo menos parte das vestimentas, mãos convertidas em garras e face monstruosa, misturando feições híbridas de homem e lobo.

            Provavelmente, a maior sacada do diretor Freddie Francis foi ter conferido ao seu filme um visual bastante sombrio e obscuro, o que o torna mais perturbador do que o filme de Fisher. Além disso, em “A Lenda do Lobisomem” temos muito mais mortes, várias delas on scream, e com doses de sangue e violência que até então não eram vistas nos filmes de lobisomem anteriores. Francis também utilizou um interessante recurso de câmera em primeira pessoa para simular a perspectiva de visão dos lobos, e depois do lobisomem, onde a imagem adquire uma tonalidade avermelhada, num efeito simples, porém eficiente.

            Pois bem, depois dessa longa introdução de contexto e bastidores, vamos à história: O filme começa nos mostrando um grupo de camponeses pobres migrando através de uma sombria floresta no interior da França, sendo espreitados à distância por uma alcateia de lobos, em algum momento do século XIX. Então, uma mulher grávida começa a sentir as dores do parto, e na iminência de dar à luz, acaba ficando para trás com seu marido, enquanto os outros amedrontados camponeses seguem viagem pela mata. O bebê nasce, mas a mulher acaba morrendo durante o parto, deixando o marido sozinho com a criança. De repente, um grupo de lobos surge da escuridão e ataca o homem, devorando-o. Por algum motivo, o bebê recém-nascido é poupado pelas feras, e passa a viver em meio à alcateia.

            Um salto no tempo de alguns anos nos apresenta a carroça do Maestro Pamponi (Hugh Griffith, de “O Abominável Dr Phibes” e “A Câmara de Horrores do Dr Phibes”) atravessando a floresta. Trata-se de um grupo itinerante de artistas velhos, pobres e decadentes, que se apresentam em vilarejos do interior da França para conseguir alguns trocados. Então Tiny (Norman Mitchell), um misto de músico e assistente do Maestro Pamponi, é incumbido de ir caçar para tentar providenciar algo para a janta, uma vez que o grupo acamparia na floresta durante noite. A principio, Tiny é bem sucedido, abatendo uma lebre. Mas antes que ele possa recolher sua caça, um menino (Mark Weavers) surge da mata, pega o animal e passa a devorá-lo. Quando tenta fugir, acaba recebendo um tiro na perna disparado por Tiny, que depois de uma breve luta, acaba arrastando-o para o acampamento. Com poucos escrúpulos, o Maestro Pamponi decide usar o selvagem garoto como uma das atrações de seu bizarro espetáculo mambembe, apresentando-o em uma jaula como “O Garoto-lobo”.

            Com o passar dos anos, o garoto vai se familiarizando com o convívio de Pamponi e sua turma, e com isso vai ficando mais civilizado (mas não muito), e passa a participar também de outras atrações do espetáculo, fazendo acrobacias. No auge da juventude, Etoile (David Rintoul), como foi batizado, já quase não se assemelha mais com aquele menino agressivo e animalesco que era na época em que foi encontrado pelos artistas.  Porém, junto com a juventude, com o aflorar de novos sentimentos e emoções, também passou a ter vazão em Etoile o seu lado animalesco que estava reprimido e adormecido em seu interior. Dessa forma, em uma noite, enquanto dormia sob o luar, o rapaz se transforma em lobisomem e rasga a garganta de seu amigo Tiny. Ao ser descoberto, na manhã seguinte, acaba abandonando apavoradamente o grupo de Pamponi, e foge para Paris. Como se pode ver, aqui está mais uma semelhança entre “A Lenda do Lobisomem” e “A Maldição do Lobisomem”, já que em ambos os filmes a explicação para a origem da criatura licantrópica é obscura, incerta e muito pouco convincente. Pelo visto, nas décadas de 1960 e 1970 esse tipo de detalhe não era considerado lá muito relevante.

            Ao chegar na periferia de Paris, Etoile logo é atraído para um pequeno e precário jardim zoológico que funciona nas imediações, mais especificamente pela jaula dos lobos, com os quais logo faz amizade. É então que aparece o zelador do zoológico (Ron Moody), um velho beberrão e solitário, que convida Etoile para ficar no zoológico, trabalhando na limpeza e no trato dos animais. Sem muitas opções, o rapaz aceita. Surge então um grupo de prostitutas que trabalha em um bordel localizado nos proximidades, e que frequentemente vem até o zoológico passear e dar comida para os bichos. Entre as moças, se destaca Christine (Lynn Dalby), que logo desperta a paixão do jovem Etoile.

            Os dias passam e Etoile é constantemente repelido por Chistine, que diz querer apenas manter uma amizade com ele. Então, quando a lua cheia volta a surgir, o rapaz se transforma novamente em lobisomem e começa a fazer vítimas pelas redondezas, se esgueirando pelos becos e galerias de esgotos, atacando clientes do bordel, mendigos e prostitutas.

            Somente depois já ter transcorrido mais de meia hora de filme é que surge em cena o Professor Paul (Peter Cushing), que trabalha no necrotério local, e com sua perspicácia nas autópsias ajuda a polícia a desvendar diversos crimes. Quando os corpos mutilados das pessoas atacadas pelo lobisomem começam a chegar no necrotério, as suspeitas do Prof. Paul e seus assistentes recaem inicialmente sobre possíveis (porém inusitados) ataques de um lobo. Intrigado, o professor começa a empreender uma investigação por conta própria, e sabendo que a presença de um lobo em plena Paris é algo muito remoto, acaba chegando até o zoológico onde trabalha Etoile, para se certificar de que nenhum animal fugiu de lá. Mesmo recendo uma resposta negativa, o enxerido professor continua rondando e investigando pelas redondezas, e à medida que os crimes se sucedem a cada lua cheia, começa a ganhar força a ideia de que algo muito pior do que um lobo anda atacando os andarilhos solitários nas escuras ruas da periferia de Paris. Dessa forma, um encontro entre o Professor Paul e o lobisomem não tardará a acontecer.

            De uma maneira geral, “A Lenda do Lobisomem” é um filme que tem muito mais acertos do que erros. A caracterização do monstro é condizente com o que se fazia na época, e as transformações utilizam os já conhecidos métodos de sobreposição e sequência de cortes de imagem. Apesar da limitação de recursos, a ambientação do filme também ficou satisfatória, retratando a periferia de Paris como ela realmente deve ter sido no século XIX, degradada, suja e sinistra, frequentada em abundância por bêbados, mendigos e prostitutas. As atuações do elenco, se por um lado estão longe de serem brilhantes, por outro não comprometem. O diferencial, como era de se esperar, fica por conta de Peter Cushing, cujo talento dispensa maiores comentários. As cenas em que o lobisomem aparece atacando suas vítimas, apesar de curtas, também ficaram legais, com destaque para a cena com o mendigo nas galerias do esgoto, próximo do final. E têm ainda a trilha sonora, que na minha opinião, é uma das melhores já compostas para um filme de lobisomem.

            Porém, o grande aspecto negativo do filme é a sua direção irregular. O filme começa promissor, mostrando a primeira parte da história com dinamismo e eficiência. Mas depois que Etoile chega a Paris, o filme fica lento, calcado basicamente em diálogos (alguns enfadonhos), sendo entrecortados por algumas rápidas aparições do lobisomem. Apenas nos 20 minutos finais é que a ação deslancha, fazendo com que o filme se torne novamente empolgante.

 

NOTA: As críticas desta seção foram escritas originalmente no início dos anos 2000 e publicadas em diversos sites e blogs da época.

Nenhum comentário:

Postar um comentário