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20 de mar. de 2021

ÁGUAS SOMBRIAS - PARTE III: Uma Noite Muito Bizarra

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Depois do relato anterior, que para algumas pessoas pode ter dado a impressão de que não teve nada a ver com o primeiro, justifico que todas as histórias estão interligadas e servem para ilustrar o tipo de acontecimentos insólitos que ocorrem nas imediações do Lago Verde e também para evidenciar que não são tão raros assim. Vou dar mais um exemplo aqui e, no próximo capítulo, começarei a explicar qual pode ser a razão de tais fenômenos misteriosos. Se você ainda não leu o capítulo introdutório dessa série, clique AQUI, e para ler a segunda parte clique AQUI. A história de hoje eu decidi nomear como

Uma noite muito bizarra

            Conforme já mencionei anteriormente, depois da incrível e apavorante experiência vivida em uma noite calorenta às margens do Lago Verde, comecei a buscar por todos os relatos e histórias que conseguia compilar e, entre várias, essa é uma das mais impressionantes e bizarras. Eu já conhecia a versão “oficial” do fato, como todo mundo na cidade, pois o ocorrido gerou muito alvoroço e boatos, mas a versão supostamente verdadeira só fiquei sabendo depois. E adivinhe aonde? Isso mesmo, no Bar do Fachi! Havia cinco rapazes tomando cerveja em uma mesa naquela noite, não sei como entraram no assunto, pois quando cheguei já estavam falando à respeito. O personagem principal desse causo para lá de esquisito era um rapaz um pouco mais velho que eu, natural da cidade mesmo, mas que morou durante muitos anos em Porto Alegre, depois voltou a morar em Ilópolis, depois foi para a Capital de novo, depois retornou para a nossa cidadezinha, e atualmente não sei onde está morando. Obviamente, não podemos revelar seu nome verdadeiro, então, vamos providenciar um fictício: Raimundo. Tomei conhecimento desse relato em 1998, ou 1999, mas o fato, pelo que me recordo, ocorreu em 1997.

            Todo ilopolitano conhece muito bem o Ginásio de Esportes de propriedade da Escola Estadual, localizado na esquina das ruas Augusto Tomasini com a Luís Bresolin. Durante muitas décadas o local sediou o Campeonato Municipal de Futsal, evento que mobilizava muita gente, do interior e da cidade. Também servia de espaço para a realização de eventos, festas e baladas. Ah, se aquelas paredes falassem! Quantos gritos de gol, xingamentos às mães de juízes diversos, risos e lágrimas… quantos namoros, brigas, romances e amizades que marcaram as páginas das vidas de muitas gerações e hoje são apenas memórias. Há lugares que, ao longo do tempo, constituem uma aura própria, formada por um pouquinho de cada um que já esteve lá. O Ginásio de Ilópolis é um lugar desses e outro dia vou escrever mais sobre ele. Por enquanto vou me limitar a dizer que naquela noite estava acontecendo um evento grande, devia ser o concurso de escolha da Garota Cultura, promovido pela Rádio do município vizinho, ou algo assim.

            Raimundo – que era uma espécie de galã da época – estava de olho em uma moça, aluna do terceiro ano do Ensino Médio. Depois de algumas cervejinhas e um pouco de dança (eu imagino a cena ao som de Barbie Girl, do Aqua, grande sucesso daquele ano) o casal saiu de fininho e foi para o carro do rapaz. Em poucos minutos já estavam estacionados no bosque de pinheiros às margens do Lago Verde, que além de ficar bem próximo, já tinha entre a juventude da época o status de local propício a esse tipo de encontro, chegando até a ganhar o apelido extraoficial de “Motel dos Pinheirinhos”. Dizem que em certas noites chegava até a ter congestionamento nas estreitas estradinhas que circundam a área, e na grande maioria das vezes não acontecia nada de anormal. Mas, naquela noite específica, aconteceria sim. Algo muito anormal.

            Pelo que se sabe, o rapaz estacionou seu carro quase no mesmo lugar onde eu e os meus amigos estávamos na noite do primeiro relato. Não parecia haver outros por perto naquele momento. Talvez por isso mesmo as coisas evoluíram rápido no interior do veículo e logo o casal já estava sem roupas. Porém, o lance parou por ali mesmo, pois, segundo Raimundo, o carro de repente começou a balançar violentamente, como se várias pessoas o estivessem chacoalhando ao mesmo tempo.

            Como estava muito escuro ao redor, Raimundo pensou que seus amigos os haviam seguido e estavam de sacanagem. Abriu a porta e já saiu do veículo – pelado mesmo – xingando quem quer que fosse. Até então ele estava irritado, mas não com medo. Só começou a sentir medo de verdade quando percebeu que não havia ninguém do lado de fora, ao mesmo tempo em que a música e a luz interna do carro se desligaram, tornando a escuridão praticamente total. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o rapaz ouviu um estrondo muito forte vindo do próprio veículo e a moça começou a gritar desesperadamente.

            Apavorado, Raimundo percebeu que o som dos gritos foi ficando mais fraco, não porque a garota estava se acalmando, mas sim porque ela estava ficando mais distante! Estava sendo arrastada, ou levada para longe – por alguém ou alguma coisa – de forma muito rápida. O rapaz tentou gritar o nome dela, mas sua voz se perdeu na escuridão da noite quando percebeu que ele próprio estava sendo arrastado. Ao contrário da moça – que pela direção da voz parecia ter saído voando – Raimundo foi puxado rente ao chão, como se estivesse com o tornozelo amarrado junto ao para-choque de um carro em movimento.

            Embora não saiba precisar por quanto tempo isso durou – e ele teve a impressão que foi muito – na verdade deve ter sido rápido, pois apesar de estar completamente nu, não se machucou muito, ficando apenas com alguns esfolados, terra e palha de pinheiro pelo corpo.

            Quando conseguiu se levantar, Raimundo chamou pela moça e ainda conseguia ouvir ela gritando, mas parecia cada vez mais longe. Então sentou ao volante do carro e tentou ligá-lo, mas sem sucesso. Ele não ligava de jeito nenhum. Naquele momento, a única ideia que passou pela sua mente desesperada foi a de pedir ajuda. E precisava ser o mais rápido possível. Imediatamente!

            Então ele simplesmente saiu correndo pelas estradinhas em meio ao bosque, seguindo em direção ao Ginásio de Esportes, que fica a apenas 1 km do Lago Verde, talvez um pouquinho mais ou um pouquinho menos. Não me pergunte como ele fez isso, pois eu já estive em situação semelhante e sei como é difícil correr na escuridão, com a sensação constante de que há uma ameaça que você não consegue enxergar, lhe espreitando por entre as árvores.

            Contudo, o fato é que ele conseguiu chegar de volta à festa, sem sofrer maiores danos. Mas, havia um detalhe: estava pelado. Ao se aproximar do Ginásio, mais ou menos lá pelas cercanias da casa do Celso Secco, ele começou a se esgueirar por trás dos carros estacionados, procurando avistar algum conhecido do lado de fora, sem ser visto pelo povo que circulava diante do evento.

            Como em Ilópolis todo mundo conhece todo mundo, ele logo avistou alguém que sentiu confiança em chamar. Deu alguma explicação rápida e mandou o sujeito entrar na festa e buscar os seus amigos que estavam lá. Enquanto o cara fazia o que ele pediu, pois qualquer um entenderia o senso de urgência do momento, Raimundo tentou permanecer escondido detrás dos carros, mas era óbvio que alguém mais iria vê-lo e, como sempre acontece em lugares pequenos, a notícia se espalhou à velocidade da luz e rapidamente um monte de gente já estava saindo do recinto com os pescoços espichados, tentando enxergar onde estava o tal cara pelado zanzando por entre os veículos.

            Em meio ao tom de comédia, sem saber se era para achar graça ou se apavorar, quatro ou cinco amigos de Raimundo saíram da festa, embarcaram em dois carros e seguiram em direção ao Lago. O rapaz então precisou sair de onde estava parcialmente escondido para que eles o deixassem embarcar também, e foi nessa hora que muita gente viu o tal sujeito “com o bundão branco e o bilau de fora”, como me contaram as más línguas depois.

            Enquanto Raimundo tentava explicar o ocorrido – sem ninguém entender quase nada – o grupo rapidamente chegou ao local onde estava o carro abandonado e todos começaram a procurar e chamar pela moça desaparecida, pois esta parte era a única que tinham entendido.

            Embora não conseguissem enxergá-la, os rapazes ouviam a voz da garota ao longe. Alguns diziam ter a impressão que o som vinha de uma direção, outros de outra, e havia até quem achasse que os gritos vinham do alto. Os dois carros com os quais o grupo chegou ao local estavam funcionando perfeitamente e parece que até o de Raimundo voltou a funcionar quando tentaram ligá-lo de novo. E foi assim, com o auxílio dos faróis, que finalmente avistaram a moça, depois de muito circularem pelos arredores. Ela estava dentro da água, a mais de 500 metros do local de onde havia sumido. Para ser mais específico, estava próxima daquela área onde há um laguinho menor, do outro lado da estrada que passa sobre uma tubulação de concreto.

            Como ela sabia nadar, já estava se aproximando da margem por conta própria e não foi nada difícil para os rapazes a retirarem da água. Estava com o corpo repleto de arranhões e pequenos cortes, como se causados pelo atrito com os galhos dos pinheiros, mas nenhuma lesão mais séria. O dano maior parecia ser psicológico mesmo, pois não parava de chorar e balbuciar palavras incompreensíveis, em choque. Não conseguia explicar o que havia acontecido, assim como Raimundo também jamais conseguiu.

            Provavelmente você que está lendo isso deve estar achando que essa história não pode ser verdade, que é maluquice, invencionice, ou simplesmente uma bela mentira, não é mesmo? Pois então, com certeza a maioria das pessoas pensaria do mesmo jeito e por isso foi preciso inventar uma história mais plausível para tentar justificar o injustificável. Raimundo e seus amigos decidiram contar para todo mundo a seguinte versão: o casal estava no carro, namorando, quando de repente apareceu um cara da cidade vizinha, Arvorezinha, acompanhado de dois amigos. Esse sujeito gostava da moça que estava com Raimundo e, enciumado e irritado por ter sido rejeitado na festa, decidiu seguir o casal com seus comparsas para se vingar. Então esses três indivíduos teriam agredido o casal, o que justificava os machucados. Como na época havia uma forte rivalidade entre grupos de Ilópolis e de Arvorezinha, tendo inclusive gerado diversas brigas, é possível que muita gente tenha acreditado na história.

            Porém, bastaria uma reflexão mais atenta para se perceber que tinha muitos furos nessa versão, a começar pelo peladão circulando lá pelos arredores do Ginásio. Provavelmente os primeiros a perceber que algo estava muito estranho nessa história toda – além do vexame – foram os pais da moça, tanto que a mandaram para concluir o Ensino Médio em Porto Alegre, onde a família tinha parentes, e depois ela já ficou por lá mesmo para fazer a faculdade. “Quem não é visto não é lembrado”, diz o ditado, e mantendo a garota afastada, poderia ser que o povo se esquecesse mais rapidamente daquele caso constrangedor. O mais engraçado é que, como sempre acontece nas cidadezinhas do interior, com o passar do tempo a história vai ganhado versões alternativas, reduzidas, aumentadas ou simplesmente modificadas a tal ponto que quase ninguém mais se lembra de como as coisas ocorreram na época. Ao longo dos anos, eu já ouvi gente contando essa história – na verdade, parte dela – dando a entender que o Raimundo teria circulado nu pelo entorno do Clube Recreativo, da Praça e até do Salão Paroquial. Sabemos que as coisas não foram bem assim, mas, de qualquer forma, “a tal festa onde um cara apareceu pelado na rua” se tornou parte do folclore popular de uma geração. Uma festa muito bizarra, mas que nos dias de hoje, talvez fosse classificada como uma mera lenda urbana.

            Depois de ouvir atentamente esse relato, me convenci de que os acontecimentos insólitos envolvendo o Lago Verde eram mais comuns do que se poderia imaginar, o detalhe é que quem passou por isso raramente assume publicamente. O mais normal é se ficar sabendo assim, em uma mesa de bar ou entre aqueles pequenos círculos de amigos de confiança. Eu poderia inserir vários outros relatos nessa série, mas não vou fazer isso. Creio que já ilustrei como os fenômenos ocorrem – há diferenças, mas também padrões de semelhança – e agora vou me dedicar a explicar porque eles ocorrem. A primeira possível explicação para a origem dos eventos misteriosos chegou até mim em 2001 ou 2002, enquanto eu trabalhava na Escola EMAFA e apareceu por lá um professor da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) que estava fazendo sua tese de Doutorado – ou Pós-doutorado – sobre Educação Ambiental. Foi ele quem primeiro me falou sobre Linhas Ley. Mas, isso é assunto para o próximo capítulo.


19 de mar. de 2021

ÁGUAS SOMBRIAS - PARTE II: O Menino do Lago


 

Por André Bozzetto Junior

 

            Após vivenciar a experiência relatada no capítulo anterior (que você pode ler clicando AQUI), passei a ficar praticamente obcecado pela vontade de entender a lógica por trás daqueles insólitos acontecimentos. As respostas mais coerentes vieram um tempo depois, mas vou seguir a abordagem dos fatos em ordem mais ou menos cronológica.

            A primeira coisa que fiz, nos dias seguintes, foi procurar por um colega de aula do tempo do Ensino Fundamental, quando estudávamos na Escola Estadual, que ficava no prédio onde hoje funciona a Câmara de Vereadores e a Secretaria de Educação de Ilópolis. Eu não tenho mais contato com ele há muitos anos e, por isso, vou lhe dar um nome fictício neste relato: Sílvio. Pelas informações que tenho, ele foi trabalhar como pedreiro em Porto Alegre, no início dos anos 2000 e ficou morando por lá mesmo. A família dele vivia bem próximo do Lago Verde – onde está até hoje – e, por isso mesmo, sempre soube de muitas histórias estranhas supostamente acontecidas por aquelas bandas ao longo do tempo. Sílvio havia me contado várias dessas histórias quando conversávamos nos intervalos das aulas, e eu queria muito ouvi-las de novo, agora com outras possibilidades de entendimento.

            Encontrei-o algumas semanas depois, em uma sexta-feira de noite, no Bar do Fachi, mais popular ponto de encontro dos jovens de nossa faixa etária naquela época. Convidei Sílvio para tomar uma cerveja e rapidamente entramos no assunto dos “causos misteriosos” envolvendo o Lago Verde. Creio ser interessante mencionar que naquela época – final de 1998 – eu havia acabado de publicar meu primeiro livro, Odisseia nas Sombras, o que gerou certa repercussão no Município. Então, as pessoas viam como natural o meu interesse de escritor por ouvir histórias e causos diversos e relatavam o que sabiam de boa vontade, se limitando a pedir anonimato, para não se exporem e correrem o risco de virar alvo de piadas por parte daqueles que não acreditam nesse tipo de acontecimentos.

            Para a minha surpresa, Sílvio tinha uma nova história que, ao contrário daquelas que me haviam sido relatadas na infância, das quais ele só tinha ouvido falar através de parentes e amigos, agora tratava-se de algo vivenciado presencialmente, bem pouco tempo atrás. Para deixar a narrativa mais fluida e facilitar a leitura, vou transcrever o relato na forma de um conto, que decidi intitular como

O Menino do Lago

            Em um sábado de noite, haveria um baile no salão da comunidade de Linha Peca, distante mais ou menos uns 5 km da cidade de Ilópolis. Sílvio e um grupo de mais três rapazes, formado por primo e amigos, estavam bebendo em um bar no centro, quando decidiram que queriam ir ao evento. Nenhum deles tinha carro, e como não arrumaram qualquer carona, optaram por ir a pé mesmo. Compraram várias latas de cerveja para beber no caminho, acreditando que a caminhada seria divertida e que, para voltar, conseguiriam que alguém os trouxesse de volta.

            Inicialmente, nenhum membro do grupo parecia ter a mínima preocupação por terem que passar pelas margens do Lago Verde no meio da noite, já que esse era o caminho mais rápido para se chegar à Linha Peca. Era lua cheia, o céu estava sem nuvens e a temperatura estava bem agradável. Em tese, daria para percorrer o trajeto sem maiores dificuldades. Talvez até arrumassem uma carona no caminho, com alguém que também estivesse indo ao baile. Porém, quando passou diante da própria casa – que estava às escuras em função de toda a família já ter se recolhido – Sílvio começou a ficar apreensivo. Se lembrou das diversas vezes em que a mãe recomendou que não fossem para perto do lago à noite. Também lhe veio à mente os diversos relatos de aparições fantasmagóricas feitos por outros parentes, e nenhum deles parecia estar brincando ao tocar nesse assunto. Chegou até mesmo a pensar em propor ao grupo que desistissem da ideia, mas como sabia que não seria ouvido, preferiu ficar quieto. Cogitou sugerir aos amigos que caminhassem o mais rápido possível quando chegassem às margens do reservatório, mas ficou com vergonha porque deduziu que o acusariam de estar com medo. Então seguiu calado, com uma crescente sensação de que algo ruim viria pela frente.

            Quando chegaram próximo ao final do calçamento – na altura daquele local onde há uma espécie de piso de cimento que se prolonga da margem para dentro da água, e é utilizado como plataforma de descarga para lanchas, jet ski e similares – o grupo ouviu um longo assobio, melodioso e tétrico ao mesmo tempo, que pareceu vir do meio do lago. Imediatamente, todos pararam de rir e conversar, ficando no mais absoluto silêncio. Sílvio sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha. Olharam em direção à água e, sob a luminosidade pálida do luar, avistaram, lá no meio, um menino acenando para eles. Ficaram como que petrificados assistindo aquela cena. O menino acenava, tornava a mergulhar, sumindo nas águas escuras, para em seguida emergir de novo, emitir aquele enregelante assobio, acenar e afundar novamente na escuridão.

            Sílvio não conseguiria dizer por quanto tempo ficaram vislumbrando aquela cena fantasmagórica. Sabe apenas que sua atenção foi despertada pelo grito vindo da sua esquerda. Quando olhou naquela direção, um de seus amigos estava apontando para a margem, com expressão de desespero. Então, ficou em pânico ao perceber que seu primo estava entrando no lago, já com a água na altura do peito. Ele parecia em transe, e dava a impressão de que continuaria em frente até sumir nas profundezas, só tendo sido impedido por que o rapaz mais velho entre os membros da turma se jogou na água e rapidamente nadou até o amigo, arrastando-o para fora.

            Sílvio e o garoto que estava ao seu lado ajudaram os outros dois a sair da água. De volta à estrada, todos pareciam perfeitamente despertos e cientes de algo muito anormal estava acontecendo. Antes mesmo que pudessem falar qualquer coisa ou cogitar o que fazer, começaram a ouvir passos de algo, ou alguma coisa, que vinha correndo pela escuridão, na direção deles. Imediatamente, se puseram a fugir de volta para a cidade, correndo e gritando estrada à fora.

            Dentro de poucos minutos, já estavam diante da casa de Sílvio, que, conforme já mencionado, ficava próxima. Só então se deram conta de que estavam faltando dois rapazes, justamente os que haviam entrado na água. Nesse momento, os familiares de Sílvio já estavam saindo de casa para ver qual era o motivo da gritaria. Sem tempo para detalhes, foi dito que algo estranho tinha acontecido no lago e dois amigos estavam desaparecidos. Rapidamente, um grupo de cinco ou seis pessoas com lanternas e facões se dirigiu ao local onde a dupla havia sido vista pela última vez.

            O primo de Sílvio estava ali mesmo, deitado no chão em posição fetal, chorando baixinho, em estado de choque. Apesar de tudo, não aparentava estar machucado. Quando questionado sobre onde estava o outro garoto, dizia apenas que alguma coisa o havia arrastado para longe. O grupo continuou procurando pela estrada, pela margem do lago e pelas encostas de mato.

            Subitamente, notaram alguém se aproximando pela estrada escura. Quando apontaram as lanternas naquela direção, viram que era o rapaz desaparecido que voltava mancando e caminhando com dificuldade. Estava ensanguentado, com a camisa esfarrapada e as calças rasgadas na altura dos joelhos. Faltava-lhe o sapato no pé esquerdo. Cogitaram levá-lo ao hospital, mas depois, na claridade, viram que ele estava muito esfolado e até com alguns cortes, mas nenhuma lesão mais grave. No hospital fariam muitas perguntas e seria difícil dar alguma explicação convincente sem parecer ridículo. Por fim, decidiram tratar seus ferimentos em casa mesmo.

            Quando perguntado sobre o que havia acontecido, ele disse simplesmente que alguma coisa o agarrou e saiu lhe arrastando pela estrada, até passar pela frente da Escola EMAFA, quando finalmente foi solto. Ou seja, foi arrastado nos cascalhos por mais de 300 metros.

            A família de Sílvio repreendeu o grupo, dizendo que todos sabiam ser perigoso circular por aquela área tarde da noite. Também disseram que muita gente já tinha presenciado a aparição do Menino do Lago, um fenômeno que se repetia ocasionalmente há muitos anos. Supunham que se tratava do espírito de alguém que havia se afogado ali, em algum momento do passado. Explicaram que, um bom tempo antes da construção da Escola EMAFA, um pouco para cima daquele local, havia várias casas de famílias, inclusive de alguns parentes. Quando surgiu, na segunda metade da década de 70, a proposta da Prefeitura de remover esse pesoal para a Vila Santa Rita, a quase totalidade aceitou de bom grado, justamente por que tinham medo de sair de casa durante a noite.

            Obviamente, fiquei muito intrigado com a história do Sílvio, o que só aguçou a minha curiosidade para procurar saber mais. Pouco tempo depois, fique sabendo da versão “real” de um fato muito polêmico envolvendo um casal de “namorados”, que tinha dado o que falar na cidade, pelo menos entre os jovens. Vim a saber que, na verdade, a história não era como se contava, mas sim  tinha relação com os insólitos acontecimentos do Lago Verde. Mas, esse relato farei no próximo capítulo.

            Quero concluir citando que, duas ou três semanas depois dessa conversa com o Sílvio, encontrei na rua o rapaz que teria sido arrastado em seu relato. Nos conhecíamos do tempo de escola e até tínhamos jogado futebol juntos algumas vezes, então não tive receio de tocar no assunto. Quando perguntei o que havia acontecido naquele momento fatídico, ele – que tinha um sotaque carregado e costuma usar umas gírias engraçadas – ficou constrangido, mas respondeu mais ou menos assim:

            “Eu gritei: Corre, piazada, que tá vindo o diabinho encarnado! Dai aquela coisa me puxou e levei um peitaço que tá louco! Me esfolei tudo os peito e os beiço!”

            Questionei se ele não tinha conseguido ver o que era que estava lhe puxando, e a resposta foi:

            “Só vi dois zóião vermeio me oiando! Parecia que chegava sair fuísca naquela escuridão!”

            Eu disse então algo como “Que bom que pelo menos aquilo não seguiu para dentro da água…”, ao que ele interrompeu:

            “Tentou me arrastar para dentro da água, sim! Só que eu me agarrei numas capoeiras e depois me firmei num pinheirinho. Daí a coisa me largou.”

            Por fim, fiz a pergunta que não queria calar: “O que será que era aquela coisa?”. Ele respondeu meio sem jeito, e já foi saindo, encerrando a conversa:

            “Acho que era o demônho”.   

17 de mar. de 2021

ÁGUAS SOMBRIAS - A Verdade Sobre o Lago Verde

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Não começarei essa história pelo início, mas sim pelo meio. É estranho, eu sei, mas esse relato será cheio de fatos estranhos e misteriosos, então é bom se acostumar. Vou iniciar por este ponto porque assim ficará fácil ao leitor entender o motivo de meu interesse pelo assunto e o porquê de eu estar falando sobre isso apenas agora, mais de vinte anos depois do incrível acontecimento que irei narrar.

            Primeiro, me deixe falar rapidamente sobre o lugar. Ilópolis, “A Cidade da Erva-mate”, é um pequeno município de pouco mais de 4.000 habitantes, localizado na parte menos famosa da serra gaúcha, mais especificamente na Encosta Superior Nordeste do Planalto Meridional do Rio Grande do Sul, parte alta do Vale do Taquari. A grande maioria da população é composta por descendentes de italianos que chegaram à região no início do século XX, atraídos pela oportunidade de extração madeireira proporcionada pela enorme floresta de araucárias que ali existia e, com o passar das décadas, adotou a exploração da erva-mate como o foco principal de sua atividade econômica.

            Entre os vários atrativos turísticos do município – que não iremos detalhar por não ser do objetivo deste texto – com certeza ocupa lugar de destaque o Lago Verde, um inspirador espelho d’água de 178.000 metros quadrados, rodeados de mata nativa, com grande concentração de araucárias, entrecortada por frondosos bosques de pinheiros, do tipo pinus elliottii. O lago é, na verdade, um reservatório artificial, construído no início da década 1940 para represar a água que alimentaria uma pequena usina hidrelétrica construída nas imediações com o objetivo de fornecer energia ao povoado, bem antes de ele ser emancipado. No início dos anos 80, a usina foi desativada, e a partir de então a barragem continuou existindo como um cartão postal apto a várias atividades de lazer e recreação, como pesca, natação, canoagem e outros esportes aquáticos, além de um local agradável e convidativo para passeios, caminhadas, piqueniques e acampamentos. Pelo menos esta é a versão oficial. Como irei relatar nas próximas páginas, a história real é bem mais obscura, e as pouquíssimas pessoas ainda vivas que conhecem a verdade não gostam de tocar no assunto e se recusam a revelar o que sabem, mas eu irei contar.

            Assim como qualquer ilopolitano da minha geração, ou de gerações anteriores à minha, cresci ouvindo “histórias de assombração” sobre o Lago Verde. Este nome, inclusive, começou a se popularizar a partir da década de 1990, quando Ilópolis passou a ganhar alguma notoriedade em nível nacional por seu potencial ecoturístico, alardeado em programas de TV e publicações especializadas. Antes desse momento, o povo costumava a se referir ao local apenas como “A Barragem”. E do que tratavam os causos sobrenaturais relacionados à Barragem? Um pouco de tudo, mas lembro que os mais populares faziam menção à aparições de fantasmas, supostos espíritos de pessoas que teriam morrido afogadas nas águas escuras do lago em diferentes épocas, e que na calada da noite emergiam da escuridão para assombrar algum transeunte incauto. Também ouvi, por diversas vezes, menções a almas penadas de pessoas que haviam sido sepultadas em um antigo cemitério que foi demolido e removido no início dos anos 90 para a construção da Escola EMAFA, localizada em uma pequena elevação às margens do reservatório. Eu lembro muito bem desse cemitério. Ele ficava onde hoje está o Monumento à Agricultura, na pequena área calçada ao lado da escola. Tinha uma aparência realmente tétrica, com poucas sepulturas e lápides em meio a uma vegetação rasteira, que passava uma impressão de esquecimento e abandono. Não é difícil acreditar que tal visão despertasse nos transeuntes de imaginação mais fértil a sensação de cenário de filme de terror, com direito a fantasmas macabros perambulando à noite entre os túmulos em ruínas. Mas isso seria tudo? Não. Com certeza, havia mais. Porém, só fui descobrir posteriormente, pois quando se é criança, fica praticamente impossível distinguir fatos insólitos pautados na realidade de fantasias inventadas apenas para amedrontar meninos desobedientes. Para mim, as respostas começaram a aparecer em 1998. Vou começar a descrição dos fatos em um novo subtítulo, que chamarei de

Aquilo que espreita na escuridão

            Eu tinha 17 anos e estudava fora. Voltava para Ilópolis aos finais de semana e, nessas circunstâncias, o que mais gostava de fazer era me reunir com outros caras da minha idade para tomar cerveja, bater papo, jogar sinuca pelos bares da cidade e depois ir para algum baile na expectativa de ficar com alguma garota. Simples assim. Era a década de 90, em um lugar minúsculo do interior gaúcho, sem internet, sem celular e com o senso comum bem menos politicamente correto do que nos dias atuais.

            Há basicamente duas formas de se chegar ao Lago Verde. Uma delas é seguindo até o final a Rua Conselheiro José Bozzetto, que atravessa o centro da cidade e segue pavimentada até às imediações da Escola EMAFA. A outra é pela bem menos movimentada Rua Augusto Tomasini, que termina em um considerável declive de estrada de terra e mergulha em um denso bosque de pinheiros, já nas cercanias do lago. Em uma parte mais retirada deste bosque, haviam construído recentemente um prostíbulo que estava dando o que falar. Naquela sexta-feira em questão, Leandro, Marquinhos e eu havíamos combinado que iríamos “conhecer a zona” que tanto atiçava a curiosidade – ainda que fosse uma curiosidade bizarra – da maioria, senão de todos, os jovens da cidade.

            Logicamente, não tínhamos qualquer pretensão de “fazer programa” com as prostitutas, mas sim dar uma olhada no ambiente, que alguns amigos já haviam adiantado se tratar de uma espelunca de quinta categoria. Todo mundo sabe que cerveja de zona custa uma fortuna e, como mal tínhamos dinheiro, decidimos comprar umas latas de cerveja em um bar qualquer e beber nas margens do lago, para só depois seguirmos até o bordel ali próximo.

            O Leandro era o único que já tinha carteira de habilitação, e o pai dele lhe emprestava o carro para dar umas voltas aos finais de semana. Foi assim que chegamos até o bosque de pinheiros. Estacionamos entre as árvores, bem de frente para as águas do lago. Leandro deixou os faróis ligados com luz baixa e também acionou a lâmpada no interior do veículo. Pelos alto-falantes ouvíamos as músicas de uma fita K7 do Iron Maiden, nossa banda favorita. Estava uma temperatura agradável, quase calor, algo bem incomum se tratando das noites ilopolitanas, o que nos estimulou a ficar ao ar livre de bom grado, recostados no capô do carro. Devia ser por volta de 23 horas e conversávamos sobre um assunto qualquer, provavelmente garotas. Fazia bem pouco tempo que havíamos chegado, ainda estávamos na primeira lata de cerveja, quando as coisas começaram a ficar estranhas. Até aqui eu me lembro de tudo perfeitamente.                 

            Primeiro foi uma sensação esquisita. Parecia que o ar havia ficado mais parado, pesado, fazendo sentir até uma certa dificuldade em respirar. Ao mesmo tempo, tive  uma espécie de calafrio e começou a crescer dentro de mim uma sensação de desconforto – de medo, para falar a verdade – e isso parecia aumentar a cada segundo. Nem tive tempo de comentar sobre isso com os outros rapazes, porque nesse momento começaram as luzes. Pareciam faróis de carros se aproximando pela estrada e iluminando de forma estranha os troncos das árvores. Só que não havia nenhum barulho de carro e os fachos de luz não se aproximavam na horizontal, como se fossem, de fato, faróis, mas sim de forma ondulatória, como se subissem até o topo das árvores e descessem novamente. Olhei para os rostos dos meus amigos e reparei que eles observavam as luzes com expressões que não pareciam denotar exatamente medo, mas sim estranhamento, como se não entendessem o que estava acontecendo. O medo para valer tomou conta de todos alguns segundos depois, quando começaram as vozes.

            No começo era um som confuso, que não dava para distinguir claramente. Chegou a me passar pela cabeça que poderiam ser as vozes de pessoas conversando na outra margem do lago, apesar de ser uma distância muito grande para isso ser possível. Porém, logo ficou óbvio que não poderia ser esse o caso, pelo simples fato de que as vozes estavam se aproximando! Se aproximando por cima, ou por dentro do lago! Era como se fosse um turbilhão de vozes, algumas femininas, outras masculinas, falando todas ao mesmo tempo, umas parecendo rir, outras chorar. Não duvido que ali no meio estivessem sendo pronunciadas palavras em algum idioma primitivo e desconhecido, enquanto começaram a ganhar destaque os gritos. Sim, gritos estridentes, horríveis que me faziam gelar o sangue e suar frio. E estavam chegando mais perto.

            Eu e os outros dois amigos nos entreolhamos e era nítido o pavor no rosto de cada um. Sem dizer absolutamente nenhuma palavra, simplesmente nos precipitamos rapidamente em direção ao interior do carro, buscando sumir dali o mais rápido possível. Contudo, nem sequer havíamos entrado no veículo e a luz dos faróis e da lâmpada de interior apagaram subitamente. A música dos alto-falantes também cessou de repente. Mesmo assim, Leandro sentou ao volante e tentou dar partida. Nada. Nem sinal de que o carro poderia voltar a ligar. O único foco de iluminação que tínhamos naquele instante era a pequena chama de um isqueiro que Marquinhos tirou do bolso e acionou. Tudo acontecia muito rápido. Ao mesmo tempo que as vozes se aproximavam por um lado e as luzes por outro, começamos a ouvir também um novo barulho que, para mim, era ainda mais apavorante do que os demais. Era o som de galhos se partindo e mata sendo pisoteada por alguém, ou por alguma coisa que estava chegando pelas nossas costas. Era algo grande e, pelo barulho, dava a impressão que derrubaria uma árvore ao nosso redor a qualquer momento. Nesse instante, uma lufada de ar quente apagou a chama do isqueiro e mergulhamos na escuridão total. Escutei Marquinhos praguejando enquanto tentava acender novamente, mas sem sucesso.

            Em meio ao pânico, alguém – provavelmente o Marquinhos – gritou “Corre, piazada!”, e foi isso o que fizemos. Corremos, imagino que cada um para um lado, destrambelhadamente em meio às trevas, tomados pelo mais completo pavor. Acredito que eu tenha tropeçado e caído no mínimo umas três ou quatro vezes. Trombei contra galhos e tronco de árvores e, enquanto me lembro disso, penso que só por um milagre não me machuquei seriamente.

            Como se não bastasse todo esse terror, ainda havia espaço para um novo elemento apavorante. Enquanto corria, eu gritava pelos nomes dos meus amigos e pedia por socorro, porque estava realmente em pânico. Eles não respondiam, mas alguma outra coisa respondia. Quando eu berrava “Leandro?!”, uma voz gutural, grossa e cavernosa repetia ao meu redor: “Leandro?!”. Quando eu gritava “Marquinhos?!”, uma voz tétrica e espectral repetia: “Marquinhos?!”. Se eu dizia “Socorro!”, alguma voz medonha dizia: “Socorro!”, logo em seguida. Não tenho vergonha de admitir que comecei a chorar de medo nesse momento.

            De repente, senti como se fosse uma rajada de vento quente me atingindo e não sei se caí, se acabei saltando involuntariamente de algum barranco ou se alguma outra coisa aconteceu, mas o fato é que parecia não estar mais tocando o solo por alguns instantes, como se estivesse flutuando. A impressão que eu tenho é que isso não durou mais do que alguns segundos até que me estatelei no chão, inclusive batendo a lateral da cabeça com muita força, a ponto de ficar bem zonzo, talvez no limite de perder a consciência.

            Quando consegui me levantar, meio grogue, notei que tudo estava em silêncio. Avistei, não muito distante, o que parecia ser a luz de um poste de iluminação pública. Andei o mais rápido que consegui naquela direção e notei, com muito alívio, que estava saindo do bosque de pinheiros e entrando na Rua Augusto Tomasini. Debaixo da luz do poste, reparei que minhas mãos estavam esfoladas por ter caído nos cascalhos, as minhas calças estavam sujas de terra nos joelhos e na bunda, além de ter uma mancha úmida na altura do zíper. Provavelmente me urinei de tanto medo. Também estava com um grande “galo” entre os cabelos, acima da orelha esquerda. Fora isso, de resto parecia tudo bem.

            Instintivamente, comecei a correr pelas ruas desertas de volta em direção ao centro da cidade, sem saber o que fazer. Será que os meus amigos também teriam conseguido sair dos arredores do lago? Parei diante da casa do Marquinhos, que ficava apenas poucos quarteirões distante da entrada do bosque, e vi que estava tudo escuro e silencioso. Sua família com certeza estava dormindo. Olhei para o relógio no meu pulso e levei um susto ao constar que eram 02:40 da madrugada. Como poderia ter se passado todo esse tempo? A impressão que eu tinha é que tinham transcorrido apenas alguns minutos, ou no máximo meia hora, desde que as coisas começaram a ficar estranhas no lago.

            Agindo meio que sem raciocinar, caminhei até a casa do Leandro – que ficava perto da minha – e reparei que lá também estava tudo escuro e silencioso. O carro não estava estacionado no lugar de costume, no pátio da frente. O que fazer então? Acordar as famílias e contar a verdade? Julguei que ninguém iria acreditar. Achariam que eu estava bêbado ou drogado. Além disso, tive medo da possível reação dos pais se soubessem que nosso plano era ir ao bordel. Chamar a polícia? Sem chance. A polícia não gostava da nossa turma porque, além de ficarmos até tarde pelas ruas aos finais de semana, atitude classificada como “de marginais”, ainda usávamos camisetas de bandas de rock, alguns tinham cabelos compridos e brincos, o que servia perfeitamente ao estereótipo de “maconheiros” com o qual algumas pessoas gostavam de nos rotular.

            Sem saber o que fazer, acabei não fazendo nada e fui para casa. Entrei silenciosamente para não correr o risco de acordar alguém e coloquei minha calça diretamente dentro da máquina de lavar roupa, para diminuir a chance de a minha mãe perguntar o porquê do estado em que ela se encontrava.

            Não sei se por exaustão, esgotamento ou qualquer outro motivo, tive a impressão de que peguei no sono tão logo deitei a cabeça no travesseiro. Tive o sono agitado por sonhos estranhos dos quais não me recordo direito. Lembro apenas de uma parte, onde estava diante do Lago Verde, ao entardecer. O céu estava escuro, como se uma tempestade se aproximasse. Então, várias pessoas, com roupas de diferentes épocas começaram a sair da água e andar na minha direção. Entre elas, havia um velho de aparência indígena que dizia “Eu avisei que ninguém deveria vir aqui nestes dias! Eu avisei!”. Então fui acordado pela minha mãe, dizendo que o Leandro estava me esperando na sala. Lá fora o sol já estava alto e sua luminosidade entrava pelas frestas da janela.

            Enquanto me vestia, escutei a voz do Leandro conversando com o meu irmão sobre alguma trivialidade qualquer, o que me tranquilizou. Fui ao banheiro e depois entrei na sala como se tudo estivesse dentro da normalidade. Leandro, como se nada tivesse acontecido na noite anterior, disse que iria até a comunidade de Linha Gramadinho buscar algumas coisas para sua mãe e passou para ver se eu gostaria de lhe fazer companhia. Respondi que sim e imediatamente fomos saindo. Nesse momento vi a minha calça no varal e me senti aliviado. Minha mãe não devia ter percebido nada.

            Embarcamos no carro do pai do Leandro, mas ao invés de irmos para Gramadinho, fomos diretamente para a casa do Marquinhos. Uma quadra antes da sua residência, o avistamos na calçada, caminhando afobadamente. Ele estava justamente indo nos procurar. Então, nós três nos dirigimos até o bar do Fachi, que estava vazio aquela hora da manhã. Pedimos uma Coca-Cola de dois litros e nos sentamos em uma mesa no canto. Era hora de tentarmos entender o que havia acontecido na noite anterior.

            Contei a minha versão e eles ouviram tudo atentamente. Pareciam espantados, mas não exatamente surpresos, pois viveram situações parecidas. O segundo a fazer seu relato foi o Leandro. Ele disse que quando começou a correr no escuro, também gritou pelos nossos nomes, mas não nos ouviu respondendo em momento algum. Também não escutou nenhuma vez a nossas vozes chamando por ele. Marquinhos confirmou a mesma coisa. Todos nós estávamos chamado uns aos outros, mas não nos ouvíamos.

            Leandro contou que, tentando correr na direção contrária ao horrendo barulho de mata sendo despedaçada, acabou indo parar na estrada do outro lado do bosque, bem na hora em que vinha passando um carro. Ele fez sinal para que parasse, e ficou feliz ao ver que seus ocupantes eram conhecidos. Tratavam-se de quatro garotos de nossa idade, que frequentaram a escola conosco durante anos e moravam na comunidade de Linha Borges. Eles estavam muito bêbados, rindo e gritando dentro do carro, empolgadíssimos para ir ao bordel. Com certa dificuldade, Leandro tentou disfarçar o pavor e disse que seu carro havia tido uma pane e que, ao procurar ajuda no escuro, acabou se perdendo dos demais amigos. Com muito esforço, convenceu o alucinado quarteto a lhe dar uma carona de volta ao seu veículo.

            No curto trajeto, nada de anormal foi observado. Leandro sentou novamente ao volante e, ao dar partida, dessa vez o carro ligou normalmente. Ao verem o veículo funcionando, os garotos da Linha Borges partiram fazendo grande estardalhaço sem nem lhe perguntar se ele precisa de mais alguma coisa, fissurados que estavam da ideia de irem para a zona. Leandro então saiu de lá dirigindo atentamente, em busca de algum sinal de Marquinhos ou de mim. Obviamente, não nos avistou. Então, fez a mesma coisa que eu fizera anteriormente, passou na frente da casa do Marquinhos e da minha, onde viu tudo escuro e silencioso. Também chegou à mesma conclusão que eu: tentar ir para a cama e dormir. Um detalhe interessante é que ele disse que passava um pouco da meia-noite quando chegou em casa. Então, parece que esse insólito evento tem algo a ver com lapsos de tempo.

            Em seguida, foi a vez de Marquinhos contar sua história e ela foi a mais rápida e estranha de todas. Ele disse que estava correndo pela mata quando sentiu “como se fosse um vento quente” que o envolveu no momento em que caiu e começou a rolar pela encosta de um barranco. Então apagou. Quando acordou, o sol já estava começando a raiar. Ele estava sentindo uma tremenda dor de cabeça, como se estivesse com uma grande ressaca, e percebeu que havia sangue ressecado ao redor do seu nariz. Mas agora vem a parte mais espantosa: ele não estava nas margens do lago ou no meio do bosque, como seria de se imaginar, mas sim, no centro da cidade. No local onde hoje há o prédio da Unidade de Saúde de Ilópolis, nos anos 90 tinha outro bem menor, que também funcionava como Posto de Saúde, e na entrada do terreno havia um gramado com uma árvore perto da calçada. Foi ali que ele acordou. Então partiu rapidamente para casa – que ficava apenas um quarteirão de distância – com receio de que alguém pudesse vê-lo ali, deitado na grama, e o acusasse de estar bêbado ou drogado. Sem conseguir dormir, ficou andando de um lado para o outro do quarto, até os seus pais acordarem e ele poder sair, fingindo que havia passado a noite em casa.

            Nenhum de nós tinha qualquer teoria sobre o que havia acontecido. Ao longo dos anos, quando voltávamos a tocar no assunto, surgiam várias, mas, naquela manhã ensolarada de sábado, apenas estávamos felizes por estarmos vivos e saudáveis, e também por nossos pais não terem descoberto nada. Combinamos de guardar segredo, pois, em uma cidadezinha onde todo mundo se conhece, não queríamos virar motivo de chacota, uma vez que ninguém iria acreditar em nós.

            Com o tempo, eu descumpri o combinado e contei essa história para algumas pessoas – poucas, é verdade. Apesar do mal-estar por não ter mantido a palavra empenhada com meus amigos, por outro lado isso acabou sendo extremamente útil por dois motivos: em primeiro lugar, serviu para eu ver que muita gente poderia sim ter acreditado em nosso relato, pelo simples fato de que casos semelhantes já aconteceram com várias pessoas, como vim a ficar sabendo. Em segundo lugar, acabei encontrando os indivíduos certos para me ajudar a entender o que havia acontecido conosco naquela noite e também com tantos outros ao longo dos anos, pois o assunto já era “investigado” há muito tempo, embora sempre de forma extremamente confidencial e por um número muito restrito de conhecedores. Foi o que eu soube através deles que, pela primeira vez, irei relatar em seguida.