Na calada da noite, ouço ecos de vozes distantes me chamando de volta para lugares que já não existem mais.
Na calada da noite, ouço ecos de vozes distantes me chamando de volta para lugares que já não existem mais.
Por André Bozzetto Jr
Esse tipo de fugitivo é dos mais estranhos, porque sua fuga começa quando não há ninguém lhe perseguindo. Na verdade, ele gostaria que houvesse. Ser perseguido, ser notado, ser almejado – por mais paradoxal que seja – é estar vivo e, às vezes, ele se sente morto.
O estranho fugitivo não foge de algum lugar ou indivíduo específico, mas sim da realidade. Ele olha ao redor e o que vê lhe parece hostil, não porque lhe ameaça, mas porque o ignora. A sensação de não pertencimento o instiga a partir. Ele não sabe ao certo para onde. A escuridão das dúvidas lhe oprime e o medo do escuro reverbera o medo do desconhecido. Fugir para um lugar novo não parece seguro. E se o novo for pior do que o antigo? E se lá ele se sentir ainda mais vazio, mais frio, mais sozinho, mais perdido? Não, definitivamente, as incertezas do futuro não são atraentes para esse perfil de fugitivo. Mas, se o presente lhe hostiliza e o futuro lhe amedronta, para onde mais ele pode fugir? Então, nesse paradoxo, se desvela a sua mais marcante característica: o estranho fugitivo é aquele que quer fugir para o passado.
Mas, é claro, o passado que ele almeja é um passado idealizado, um recorte composto somente pelos momentos bons – alguns notadamente reais, outros consciente ou inconscientemente exagerados e superestimados, e outros ainda que existem apenas em sua mente.
Na encruzilhada em que o fugitivo se encontra há várias rotas de fuga, mas todas são efêmeras, porque no passado não há permanência. Tal qual a areia de uma ampulheta, escorre sempre de forma inexorável. Seu destino é desvanecer.
Ouvir recorrentemente as músicas que serviram de trilha sonora aos grandes momentos, rever os filmes clássicos que marcaram época, jogar os velhos videogames que sedimentaram a diversão de toda uma geração. Rememorações prazerosas, porém fugazes. Miragens fadadas a desaparecer na aridez de um deserto interior onde já não brilha mais sol nenhum. Tudo que era, tudo que houve, já não está mais lá. Não há mais troca de discos de vinil e fitas K7. As locadoras de vídeo morreram melancólicas e vazias, com não mais do que alguns poucos nostálgicos para chorar suas memórias em meio a fitas VHS empoeiradas e DVDs riscados. Jogos de 8 e 16 bits? Todos humilhados e trucidados pelas armas modernas de guerreiros moldados em gráficos realistas, de telas de PC e consoles de última geração, altamente treinados por horas infindáveis de partidas on-line. Para contar a História dessa fase idílica perdida, não há mais sítios arqueológicos lá fora. Os resquícios, as fontes históricas jazem agora em HDs, “nuvens on-line” e streamings. O passado virou pó e o futuro é virtual. Para o presente sobrou só um buraco, escuro, triste e vazio.
Mas essas são as rotas secundárias, obscuras, lembradas por poucos e frequentadas por quase ninguém. A grande freeway que conduz ao “Eldorado” litorâneo do passado é acessada in loco. O estranho fugitivo é um viajante irredutível e o seu ponto de chegada nunca está lá na frente, mas sempre ali atrás. Trafega na contramão do trânsito ordinário, navega no contrafluxo da correnteza. E quando finalmente chega ao seu destino em busca do antigo, se defronta com o novo.
A busca é pelas paisagens de ontem, mas elas já foram soterradas pelas de hoje. Onde havia aquela casa de estilo peculiar, emanando imagens de existência pitoresca, agora há um arranha-céu de face espelhada, que reflete apenas a frieza do trivial. Aquele prédio antigo, tão singular, tão cheio de história, foi posto abaixo e no seu lugar irrompeu outro, maior e mais moderno, mas que não é cenário de nenhuma crônica, não instiga nenhum devaneio. Uma torre de concreto e ferro desinteressada no que ficou para trás e indiferente ao que está por vir. Monumento indolente, não representa nada, porque foi erigido para ser apenas mais um entre tantos outros.
Outdoors decrépitos e rasgados tomam o lugar onde antes havia a sombra aconchegante de árvores frondosas. Fachadas de redes de farmácias se impõe onde antes estava o comércio tradicional, que foi julgado ultrapassado e teve que fechar as portas há muito tempo. Muros altos e pichados, cercas elétricas e intimidadoras escondem a lembrança de onde existiam gramados verdejantes para crianças brincarem e varandas aconchegantes para casais se sentarem ao final da tarde. Cores – que eram vivas porque tinham vida – foram encobertas por tons monocromáticos e melancólicos.
O estranho fugitivo descobre que sua fuga nunca será um sucesso, pois seu refúgio é uma utopia. Anseia por aquilo que não existe mais. Procura o que não pode mais ser encontrado. Anda em círculos, mas nunca chega onde deseja, pois, tal qual um ouroboros, está sempre mordendo a própria cauda.
Ainda há frestas por onde ele consegue vislumbrar resquícios do que era, focos de resistência que se impõe ante o avanço implacável do porvir. Uma banca de jornal de onde vieram os gibis que embalaram fantasias, um restaurante que sediou refeições memoráveis, uma praça que aconchegou momentos singelos, mas marcantes. Sobrevivem, porém, diferentes. A catarse só pode ser parcial, porque se nem as fotos resistem ao desgaste inflexível do tempo, as paisagens muito menos.
E os habitantes desse refúgio idealizado? A maioria partiu para sempre e só vai existir em memórias tênues enquanto alguém ainda se lembrar deles. Alguns ainda estão lá, mas mudaram, porque quiseram, porque precisaram ou simplesmente porque foram arrastados pelo fluxo impiedoso do tempo, que não poupa nada e nem ninguém, sentenciando todos à ruína e ao esquecimento, mais cedo ou mais tarde. É claro que ainda há um ou outro outsider que reluta bravamente em entregar os pontos e ceder à maré metamorfoseante de contemporaneidade, mas estes heróis de outras épocas hoje estão reduzidos a observadores nostálgicos de impérios que já ruíram. O poder está nas mãos de outros e o único status que lhes restou foi o de “fora da lei”. Não aceitam o papel de prisioneiros, mas também estão condenados, pois o tempo é um adversário contra o qual não adianta querer lutar e do qual não há como escapar. Para não ser esmagado por ele, só o que resta é seguir o fluxo.
Essa é a grande lição que o estranho fugitivo aprende em sua jornada. Ele é obrigado a seguir em frente, mas pode escolher onde, como e com quem quer fazer isso. Sempre haverá uma porta aberta, sempre haverá um meio de continuar, sempre haverá alguém com quem compartilhar o percurso. A estrada está lá, basta decidir como percorrê-la. A busca é o desafio e o prêmio não está no fim, mas no trajeto. Tentando fugir, ele descobriu que é livre.
Por André Bozzetto Jr
O seu nome oficial é um tabu. Não deve ser mencionado. Não deve ser apontado nos mapas. Como sílabas blasfemas, causa mal-estar em quem ouve, estigmatiza quem pronuncia. Um filho bastardo cuja existência constrange o núcleo familiar. Uma promessa grandiosa nunca cumprida, que envergonha a honra do falastrão. Está no topo da lista dos assuntos sobre os quais é melhor não comentar. Daqueles que é melhor fingir que não existem.
Contudo, ela existe. Ela está lá. Como uma cicatriz antiga e profunda, corta o território de leste a oeste, acelerando ódio em cada reta, envergando angústias em cada curva.
Tal como na fluidez de suas formas, o medo não trabalha com números exatos, mas a imaginação simbólica sim. 666 km de asfalto, poeira, sangue e lágrimas. “Estrada da Morte”, “Rota do Inferno”, apelidos clichês para um mal que também nada possui de original. São décadas atropelando sonhos, estilhaçando esperanças e esmagando futuros. Ano após ano, ceifando vidas.
Crateras na pista que espelham os buracos deixados no interior de quem viu seus entes queridos embarcarem para a última viagem, da qual nunca mais voltaram.
Placas pichadas, amassadas e quebradas indicam – em ruínas – os destinos para os quais alguns partiram, mas nunca chegaram.
Vegetação insidiosa que invade o acostamento e sorrateiramente oculta cruzes improvisadas e tristes flores mortas deixadas como réquiem para alguém que não está mais lá. Não está mais aqui. Não está mais em lugar nenhum.
Reformas fictícias adicionam camadas de ilusão sobre o sangue ressecado. Monumentos fúnebres onde não há ninguém enterrado. Piras funerárias com cheiro de piche e dinheiro queimado. Obras póstumas de expectativas jamais concretizadas.
Circular por ela de dia é uma tarefa hercúlea. De noite é vivenciar um pesadelo de olhos abertos. Fantasmas que assombram trechos desertos. Aparições que irrompem de pontos mal-afamados. Espectros oriundos de tragédias. Assombrações originadas de desgraças.
Em locais onde muita gente de cá costuma passar para o lado de lá, às vezes a porta acaba ficando aberta. Quem é mais sensível consegue enxergar através da fresta. Vê a sobreposição do aquém e do além. Vislumbra a encruzilhada dimensional por onde transitam os vivos e também os mortos.
Estranhas ilusões, tão perturbadoras quanto a loucura. Tão reais quanto a morte.
Por André Bozzetto Jr
As luzes estroboscópicas que animam a festa fazem às vezes de portal dimensional e eu estou de novo lá. Só mais uma vez – como das outras – que nunca é a última de verdade. Dançando com a ginga de um bloco de mármore e a desenvoltura de uma montanha de granito. Bebendo cerveja morna e azeda, mas que depois das 03 da manhã parece um elixir dos deuses. Observando em meio às luzes coloridas os rostos que, no ar etílico da noite, parecem sempre mais bonitos, sempre mais jovens. Não é curioso, que no fim de um baile de interior tanta gente feia se torne bonita, e que muitos rejuvenesçam como se por mágica? Apenas em relação ao cheiro é que não cabe muita poesia. Perfume é joia rara. O comum é o trinômio: cerveja, cigarro e sovaco. Será que ainda está dando briga lá fora?
Embarcamos no Chevette vermelho daquele amigo engraçado e partimos. A madrugada já vai adiantada e seguimos felizes pela RS-332, a rodovia da parte alta do vale, por onde transitaram tantos sonhos e agora, para mim, emergem lembranças a cada curva. Naquele ginásio teve uma festa de carnaval com banho de espuma. Ali na frente uma vez pifou o Opala no qual voltávamos de outra festa tipo essa. Naquela curva quatro amigos capotaram em outro Chevette – um branco, dessa vez.
O motorista ligou o rádio e estava tocando The Killing Moon, da banda Echo and The Bunnymen. Bem, essa parte não é verdade. Essa música é a que estou ouvindo agora, enquanto escrevo essas linhas. Naquela noite o rádio devia estar tocando axé, pagode romântico ou, na melhor das hipóteses, dance music, pois estávamos em meados da década de 90 e era isso que infestava as rádios. Mas quem está fazendo o relato sou eu e muitas vezes a ficção é bem mais divertida do que aquilo que chamamos de realidade, não é mesmo?
Fiz todas essas digressões apenas para contar que naquela ocasião, assim como em várias outras, eu vi aquele cara. Ele apenas observava. Na época eu ainda não sabia quem era, e como ele não fazia nada além de observar de forma discreta e até sorrateira, eu o apelidei de “O Espião”. O sujeito tinha uma aparência estranhamente familiar e sempre que eu o via sentia uma sensação esquisita, como um déjà-vu ao contrário. Não era como vivenciar uma cena com a impressão de já ter vivido essa mesma cena anteriormente, mas sim como se o fato ainda fosse ser vivenciado de novo, no futuro.
Como alguém se sentiria se conseguisse perceber que não está
revivendo suas próprias memórias, mas sim participando das memórias de um outro
alguém? Talvez tenha sido a primeira vez em que fiquei intrigado com essa espécie de paradoxo.
Mas, as reflexões tiveram que ser interrompidas. Alguém me sacudiu no banco de trás e eu acordei. Desci do Chevette meio cambaleante e percebi que o domingo já estava raiando. Passaríamos o dia curando a ressaca e na segunda-feira seríamos adultos de novo.
Por André Bozzetto Jr
É um caminho que jamais esteve em qualquer mapa. Surgiu em uma longínqua era passada, já encoberta pelas inexoráveis poeiras do tempo. Teve origem na mente do primeiro homem que entendeu como uma ilusão a frágil estrutura que considerava ser a realidade e, uma vez desperto, quis partir para além dos limites que o aprisionavam. Desde então, todo aquele que um dia desejou fugir, sonhou em ir embora, ou fantasiou com novos rumos, acabou por acrescentar alguns quilômetros a mais nessa via arquetípica. No passado era composta por terra ou areia, porque não havia nada diferente para servir de pavimento. Com o tempo, vieram as pedras, as pontes, os túneis, o asfalto e os viadutos. Hoje ela pode ter qualquer formato – todas as formas que a mente humana já concebeu. Quem faz a paisagem é olho do viajante.
É uma via idílica, fomentada pelas esperanças de quem botou a mochila nas costas e partiu ao amanhecer, tendo o sol nascente como guia. Mas também é uma rota assombrada pelos fantasmas daqueles que se perderam, vindos não se sabe de onde, com destinos aos quais nunca chegaram.
A estrada não leva a lugar nenhum por que ela não tem ponto de chegada. Nunca termina. Tal qual ouroboros, é uma serpente que morde a própria cauda. Um caminho que se desdobra sobre si próprio. Um simulacro de viagem, que quando parece estar se aproximando da conclusão, se reconfigura em um novo começo. Ela não é um fim em si mesma, mas apenas um subterfúgio para a jornada do viajante. Não é intrinsecamente real até que o viajante a torne real e, por isso mesmo, é uma rota que não pode ser concluída, apenas transcendida.