Por André Bozzetto Jr
Foi na quarta-feira de noite que o meu irmão me ligou empolgadíssimo, dizendo que eu deveria ir até a casa dele – a mesma casa em que vivemos durante toda a infância e adolescência, mas que ele habitava sozinho desde que nossos pais faleceram e eu me mudei para Porto Alegre – para ver uma coisa fantástica que ele havia descoberto, ou inventado, algo assim. Não quis me dar detalhes, apenas insistiu que era um lance espetacular e que precisava me mostrar o quanto antes. Parecia meio fora de si, de tanta afobação. Prometi que iria no sábado de manhã.
Francis sempre foi um cara meio esquisito, caladão. Nunca teve muitos amigos, ficou com pouquíssimas garotas. Depois que nossos pais morreram, ficou mais isolado ainda. A psicóloga disse que ele deveria fazer terapia e talvez até procurar um psiquiatra, mas ele nunca quis nem uma coisa nem outra. Trabalhava dando aulas de informática em escolas de computação mantidas pela Prefeitura, e, quando não estava trabalhando, ficava enfiado dentro de casa, mexendo no computador ou assistindo TV. De Porto Alegre até a nossa cidade natal dá umas três horas de viagem, então eu sempre procurei visitá-lo uma ou duas vezes por mês, aos finais de semana e geralmente o encontrava mobilizado em construir algo. Geralmente algum aparelho eletrônico que não funcionava – ou, nas raríssimas ocasiões em que funcionava – se revelava completamente inútil.
Na sexta-feira tive uma noite agitada por pesadelos estranhos e acabei perdendo a hora no sábado de manhã. Saí de Porto Alegre quando já era praticamente meio-dia. Durante a viagem, percebi que o céu ia ficando cada vez mais escuro conforme avançava. Quando finalmente cheguei, a impressão era de que um temporal iria desabar sem demora.
Me chamou a atenção o fato de que as ruas da cidadezinha estavam completamente desertas. Por mais que a população fosse de apenas 3 mil habitantes, era incrível não ver uma pessoa sequer nas calçadas, nenhum carro transitando.
Ao estacionar diante da casa do Francis, o silêncio era tanto que chegava a causar um mal-estar. Comecei ter a sensação de que algo estava errado. Bati na porta e ele não atendeu. Chamei, gritei pelo seu nome, e nada. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Então dei a volta no pátio e encontrei a porta da cozinha aberta. O interior da casa estava escuro e cheirava mal. Pilhas de louça suja na pia e restos de comida sobre a mesa. Havia uma bagunça em todos os cômodos, com caixas de papelão e plástico bolha pelo chão. Parecia que o meu irmão tinha comprado muitas coisas recentemente.
Aquele pressentimento desagradável que eu sentia desde que cheguei na cidade, só foi aumentando com o sumiço do Francis e o estado da casa, e piorou ainda mais quando me aproximei da escrivaninha do seu quarto e dei uma olhada no monte de papéis que estavam espalhados ali. Havia projetos que pareciam ser de máquinas e estranhos aparelhos eletrônicos, mas também desenhos feitos à mão de criaturas monstruosas e horríveis, além de algumas paisagens sinistras e sombrias. Sobre a cama estavam jogados alguns livros de bruxaria, demonologia ou merdas desse tipo, ao lado de um caderno que continha anotações que, para mim, pareciam completamente sem sentido, envolvendo algo chamado “Dillodokers”. Comecei a temer que a sanidade do meu irmão tivesse desandado de vez.
Decidi ir até a casa ao lado falar com os Gardelli, que eram nossos vizinhos desde quando nossos pais anda estavam vivos. Talvez eles tivessem informações sobre o Francis.
Como ninguém atendeu quando bati na porta, girei a maçaneta e ela abriu. O senhor Luiz e a dona Marli estavam sentados no sofá diante, da TV. Tinham o olhar vidrado, como se estivessem hipnotizados. Nem reagiram à minha presença. Falei com eles, mas não responderam. Achando aquilo muito estranho, tentei falar mais alto e até gritar, mas sem resultado. Por fim, chacoalhei pelos ombros tanto o velho quanto a velha, mas nenhum deles reagia. Permaneciam em silêncio, olhando para a TV com expressões sérias.
E por falar na TV, quando olhei para a tela, me senti ainda mais incomodado e até com uma ponta crescente de medo. A imagem escura e cheia de chuviscos exibia uma série de cenas bizarras, com seres deformados e grotescos se movendo por lugares tenebrosos, intercalando com a exibição de atos de violência e perversão sexual entre pessoas que pareciam completamente enlouquecidas.
Apesar do horror das imagens, eu não consegui tirar os olhos da tela. Talvez fosse acabar entrando em transe também, e permaneceria ali, hipnotizado, se algo não tivesse desviado minha atenção. Percebi que alguns daqueles locais medonhos e várias das criaturas monstruosas que estavam sendo exibidas eram idênticas às dos desenhos que encontrei no quarto do meu irmão. Essa constatação me fez ter um sobressalto e parei de olhar para a TV.
Com a certeza de algo realmente ruim estava acontecendo, saí da casa dos Gardelli e caminhei até o outro lado da rua, onde morava a Dona Cleide. Pela janela entreaberta da sala, vi ela, a filha adolescente e a mãe idosa sentadas no sofá, assistindo àquelas cenas infernais através da televisão. Chamei, gritei, mas nenhuma delas esboçou qualquer reação.
Não satisfeito, andei até a casa ao lado, do Beto, nosso amigo de infância. Como sabia que ele nunca trancava a porta, nem bati, já abri e fui entrando. Na sala de estar não havia ninguém, mas quando fui para a cozinha, lá estava ele, sentado à mesa com um lata de cerveja na mão, que já devia estar vazia há muito tempo. Estava tão hipnotizado quanto todos os outros, com os olhos vidrados na TV sobre o balcão.
Já começando a ficar desesperado, balancei o Beto de um lado para o outro, dei um tapa no seu rosto e tentei arrancá-lo da cadeira. Nada disso fez qualquer efeito. Olhar para a TV com aqueles olhos arregalados e expressão séria era tudo o que ele fazia.
Voltei correndo para a casa da nossa família. Peguei o telefone e liguei para o Dr Lauro, médico e amigo da nossa família desde sempre. Talvez ele tivesse alguma notícia sobre o Francis ou pudesse fazer ideia do que estava acontecendo. Ninguém atendeu. Liguei então para o hospital, e novamente, ninguém atendeu. Cada vez mais amedrontado e irritado, liguei também para a Polícia, mas, sem resultado.
Sem saber o que fazer, saí para a rua, gritando um monte de palavrões. O céu estava tão escuro e repleto de trovões ecoando para todos os lados que parecia só um questão de pouco tempo até começar um dilúvio.
Embarquei no carro e comecei a andar lentamente pelas ruas da cidadezinha. Vi um gato em cima de um muro ali, dois cachorros revirando uma lata de lixo mais para lá, mas nada de seres humanos. Nem um único carro circulando. Em algumas casas onde havia janelas, cortinas ou portas entreabertas, dava para se ver pessoas imóveis assistindo TV. Zumbis, não em busca de carne fresca como nos filmes, mas sim de imagens bizarras emanadas através das telas de aparelhos eletrônicos.
Estava tentando decidir se iria até o hospital ou à delegacia, na esperança de encontrar algo diferente ou uma pista do paradeiro do meu irmão, quando um forte relâmpago me induziu instintivamente a olhar para o alto, na direção dos morros que circundavam a cidade. Foi aí que avistei algo que me chamou a atenção. A torre de metal que havia lá em cima, e que estava abandonada há décadas. Ela tinha pertencido a um pequeno canal de TV comunitário, que funcionou por pouquíssimo tempo e logo foi fechado. Percebi que uma grande antena, nova e reluzente havia sido instalada no alto da torre. Ela não estava lá na última vez em que eu estivera na cidade, uns 15 dias antes. Do que será que se tratava? Sentindo uma incômoda intuição, acelerei e parti naquela direção.
Em poucos minutos já estava no topo da colina, cuja estrada de acesso era totalmente cercada pela mata. Estacionei diante da cerca que delimitava a propriedade e vi que o portão estava aberto. Quando entrei, a primeira surpresa: o Fiat Uno do meu irmão estava estacionado ali, com as portas dianteiras e do porta-malas abertas. Havia caixas da papelão, plástico bolha e papel de embrulho espalhados pelo chão, na direção do pequeno prédio retangular que ficava aos pés da torre.
Pichações, vidros quebrados e mato crescendo por entre os ambientes deixavam claro o estado de abandono a que o local foi sujeitado com o passar dos anos e reforçavam sua aparência incômoda e assustadora. Com o coração batendo acelerado, entrei pela porta de metal enferrujado, que não estava trancada. O que vi lá dentro me apavorou tanto que acreditei que fosse desmaiar, ou perder completamente a sanidade.
No fundo do aposento havia um painel – visivelmente recém-instalado – cheio de componentes eletrônicos e luzes coloridas e piscantes... E diante dele estava o meu irmão.
Francis estava suspenso por correntes presas em seus pulsos e afixadas no teto. Sua cabeça estava partida – arrebentada de dentro para fora, é a maneira correta de descrever – e no interior do seu crânio alguma coisa se movia, um tipo de criatura que projetava finos tentáculos para fora e que se conectavam nas entradas dos equipamentos como se fossem plugues orgânicos e gosmentos. Por mais incrível que pareça, tive a impressão de que talvez o meu irmão pudesse não estar morto. Seus olhos semicerrados pareciam mais de alguém em estado de coma do que propriamente um cadáver.
Mas, não tive como averiguar melhor. O monstro que estava dentro do crânio de Francis deve ter notado a minha presença, pois começou a fazer uns barulhos medonho e balançar alguns tentáculos na minha direção. Foi então que a surpresa e o choque deram lugar ao pavor e ao desespero. Comecei a gritar – tomado pelo pânico e pela raiva – e gritando saí porta afora procurando por alguma arma improvisada.
Como dei de cara com o carro do Francis, contornei até o porta-malas e retirei de lá a chave de rodas. Aos gritos e com os olhos cheios de lágrimas, retornei ao interior do prédio e comecei a distribuir pancadas para todos os lados. Bati nos tentáculos da criatura que estavam conectados nos aparelhos, mas, além de não dar muitos resultados, ela passou a tentar me agarrar com os membros livres. Na confusão, comecei a bater também nos equipamentos, que se quebravam causando curtos-circuitos e gerando faíscas e pequenas labaredas ao redor.
Um tentáculo do monstro se enroscou no meu pescoço, me obrigando a partir na direção do Francis e bater na sua cabeça, de onde saiam os membros daquela criatura nojenta. Eu gritava e batia com força, de novo e de novo, até sentir o aperto ao redor do meu pescoço ceder. Voava sangue e gosma para todos os lados e a coisa sibilava furiosa enquanto eu continuava batendo, e provavelmente continuaria até não sobrar mais nada, se o fogo originado nos aparelhos não tivesse se alastrado rapidamente, dando início a um incêndio.
Corri para fora e, poucos instantes depois, o fogo já consumia o pequeno prédio por completo. Lá dentro, a criatura havia silenciado. Seria impossível tirar Francis daquelas correntes antes de as chamas bloquearem a saída. Além disso, ele não poderia estar vivo naquelas condições. Seria melhor que não estivesse.
Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando para o clarão das chamas que contrastava com a escuridão do céu, formando uma cena fantasmagórica. O reflexo das labaredas na estrutura metálica da torre contribuía para o tom espectral da paisagem.
Então ouvi barulho de carros se aproximando. Quando olhei para trás, já havia pelo menos quatro veículos estacionando diante do portão, e várias pessoas começaram a desembarcar deles. Eu conhecia quase todas: o Zé, do açougue, o Antônio, da padaria, os dois irmãos Shwertz, Beto, o meu amigo de infância, entre outros. Mas, porque será que estavam portando facas, machados, facões e até armas de fogo? Teriam despertado do transe e deduzido o que se passava? O fogo na torre teria chamado sua atenção? Teriam vindo com a intenção de destruir o monstro que estava controlando a tudo? A maneira séria – eu diria até “furiosa” – com que olhavam para mim me fez desconfiar do contrário.
Antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, houve um estrondo e, quase ao mesmo tempo, o zunido de um bala que passou centímetros acima da minha cabeça e atingiu a parede logo atrás. Então o grupo começou a correr na minha direção com as armas em punho e ódio no olhar, gritando todo tipo de xingamentos contra mim. Estava claro – apavorantemente claro – que era eu quem eles queriam matar.
Sem pensar duas vezes, saí correndo em total desespero. Passei rapidamente pela lateral direita do prédio em chamas e me embrenhei na mata fechada. Entre as árvores já estava bem escuro, pela presença das nuvens da tempestade iminente e pela noite que se aproximava. Depois de correr por alguns metros, tendo meu corpo arranhado e até cortado pelos galhos e arbustos do denso matagal, avistei um declive do meu lado direito. O barranco tinha uns três metros de altura, aproximadamente, e seguia em paralelo às grandes árvores na direção da estrada. Isso me deu uma ideia. Como tinha uma certa vantagem em relação aos meus perseguidores, que ainda não estavam no raio de visão, pulei para baixo da encosta e segui agachado, no sentido contrário ao qual tinha vindo. Alguns instantes depois, pude ver por entre a vegetação a turba passando reto lá em cima do barranco, seguindo para o interior da floresta.
Segui desse jeito o mais rapidamente que pude, até avistar a cerca da propriedade. Então corri na direção do portão e embarquei no meu carro. Engatei ré pisando fundo e fazendo voar cascalhos para fora da estrada. Manobrei e parti acelerando na direção da rodovia. Pelo retrovisor, pude ver algumas pessoas surgindo logo atrás, saindo da mata. Escutei dois estrondos. Um dos tiros arrebentou o vidro do para-brisa traseiro e o outro atingiu o retrovisor da porta direita. Mas eu já estava fora de alcance. Em instantes cheguei ao asfalto e acelerei pra valer na direção sul. Quase ao mesmo tempo, o temporal que estava se ensaiando finalmente desabou. A chuva forte dificultava a visibilidade, mas eu não diminuía a velocidade. Não conseguiria aliviar o pé, mesmo se quisesse.
Agora, já faz mais de uma hora que estou na estrada. A chuva diminuiu bastante. Tenho cruzado por vários carros o tempo todo e pelas cidades por onde passei, tudo parece normal. O que quer que tenha acontecido lá na minha terra natal, parece ter sido um evento local, isolado. A sensação de “normalidade” é tão concreta que começo a me perguntar se as coisas realmente aconteceram do jeito que me parece terem acontecido. A hipótese de um pesadelo ou algum tipo de estranha ilusão começa a se tornar mais palpável. O que devo fazer? Estou pensando em voltar para casa – em Porto Alegre – e telefonar para o Francis. Se ele não atender, então o corpo dele ainda deve estar lá, no prédio da torre, consumido em chamas, com o cérebro devorado por algum tipo de monstro infernal. Caso ele atenda, então é porque nada mais faz sentido, e quem terá sido envolvido pelos tentáculos da loucura sou eu.