10 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE I


 Por André Bozzetto Junior

 

            – Caramba! Vamos fazer uma pausa! – suplicou Milton, de forma ofegante – Não aguento mais carregar essa porra de sacola térmica!

            – Vai dizer que você preferia ter deixado a cerveja em casa?! – provocou Paulina, em tom debochado.

            – Ele tem razão! – intercedeu Cíntia, apontando para Milton e se esforçando para recuperar o fôlego – estamos subindo morro acima desde as oito horas da manhã!

            – Certo! Certo! Vamos fazer uma parada! – apaziguou Rafael – Mas também não é preciso tanta reclamação, pois a partir de agora a subida já fica bem menos íngreme. Já estamos quase no topo.

            – Aleluia! – gritou Milton, erguendo as mãos ao céu em um gesto propositalmente teatral.

            – A vista aqui de cima é muito bonita. Dá para ver todo o vale lá embaixo. – disse Paulina, retirando a mochila das costas e sentando-se no capim – Como é mesmo o nome desse lugar?

            – Morro da Guabiroba. A maior parte pertence ao município de Encantado. – explicou Rafael, entre um gole e outro de água.

           – Não acredito! Você só pode estar brincando! – vociferou Cíntia, gesticulando exaltadamente – Morro da Guabiroba?! Você nos trouxe para o Morro Assombrado?!

           – Epa! Você está doidona?! Que história é essa de assombração?! – intrometeu-se Milton, achando graça do chilique da namorada.

            – É uma idiotice! – interveio Rafael – Histórias de caipiras e gente ignorante! Dizem que por estas bandas aparecem fantasmas, monstros ou sabe-se lá que outras bobagens do tipo! Tudo palhaçada!

            – Palhaçada coisa nenhuma! – retrucou Cíntia – Já ouvi falar várias vezes sobre pessoas que desapareceram quando vieram caçar ou acampar por aqui! Além disso, a Clotilde, minha vizinha, já contou para todo mundo que um primo dela foi atacado uma coisa quando dirigia de noite através do morro, indo para a cidade de Doutor Ricardo!

            – A rodovia que vai para Doutor Ricardo fica do outro lado do morro. – explicou Paulina.

            – E mesmo que fosse aqui perto, qual o problema?! – exclamou Rafael – Me admiro muito em ver que você, Cíntia, que se acha tão moderna, acredita nessas histórias fajutas!

            – Porra, Rafael! Você sabe que a Cíntia é encucada com esses negócios! – resmungou Milton – Será que não havia outro lugar para acamparmos?!

            – Ora, mas não foram vocês mesmos que exigiram um lugar isolado e deserto para fazermos o que bem entendermos?! – retrucou Rafael – Justamente por causa de todas essas histórias imbecis de assombração é que eu tenho certeza de que nenhum caipira vai aparecer por estas bandas! Poderemos beber, fumar e trepar à vontade!

            – Tem certeza? – perguntou Paulina, em tom malicioso.

            – Claro! Até porque a parte habitada do morro fica para aquele lado! – exclamou Rafael, apontando para a sua esquerda – Aqui poderemos ficar bem sossegados!

            – Ótimo! Ótimo! – disse Milton, levantando-se e recolocando e enorme sacola térmica nas costas – Então vamos subir o resto do trajeto e montar logo o acampamento! Não vejo a hora de fazermos o churrasco!

            – E bebermos as cervejas! – complementou Paulina.

            – Perfeito! Vamos lá! – incentivou Rafael, tomando a dianteira do grupo no reinício da caminhada.

            Mesmo contrariada, Cíntia levantou-se e recolocou a mochila nas costas para seguir os amigos. Antes, porém, olhou para além dos morros circundantes, do outro lado do vale e constatou, com certa apreensão, que nuvens escuras surgiam no horizonte. Parecia que uma tempestade estava por vir.

 *

            Pouco depois do meio-dia, o grupo de amigos já havia se estabelecido em um pequeno planalto na parte superior do morro, montando o acampamento e acendendo o fogo para o churrasco. Depois de uma refeição regada a muita cerveja e pontuada por conversas triviais e descontraídas, cada casal recolheu-se para a intimidade de suas barracas. Aparentemente, a desagradável discussão da manhã sobre a má fama do Morro Assombrado já havia sido esquecida.

 *

            Quando Milton acordou, algum tempo depois, constatou que estava sozinho em sua barraca. Olhou para o relógio em seu pulso e surpreendeu-se ao ver que já passava das 18 horas da tarde. Saiu apressado do iglu e avistou Cíntia sozinha, próximo da borda do declive, observando o horizonte.

            – O que você está fazendo? – indagou o rapaz.

            – Veja. – disse a moça, sem tirar os olhos do céu – Está vindo uma tempestade.

            – Ora, e daí?! É só uma chuva de verão! Ficaremos nas barracas até passar.

            – Que escuridão! – exclamou Paulina, saindo do segundo iglu em companhia de Rafael – Pensei que estivéssemos no horário de verão!

            – São as nuvens de tempestade. – disse Cíntia – Vem chuva por aí.

            – Não sei por que tanta falação por causa de uma chuvinha! – resmungou Rafael, enquanto carregava a espingarda – Mesmo que tenhamos que ficar algumas horas dentro das barracas, temos várias coisas legais para fazer.

            – O que você vai fazer com essa arma?! – indagou Paulina, surpresa.

            – Caçar, logicamente! Está cheio de pombas nesses matos.

            – Eu é que não vou ficar andando para cima e para baixo nesses barrancos! – retrucou a moça.

            – Pois então fiquem aqui! – retrucou Milton – Iremos eu e o Rafael.

            – Não acho uma boa ideia ficar apenas nós duas nesse lugar! – esbravejou Cíntia.

            – Ora, parem de ser chatas! – exclamou Rafael – Nós vamos apenas até aquele bosque ali na borda da descida! Será que não podem ficar 300 metros longe de nós por meia hora?!

            Em protesto, as duas moças resmungaram ao mesmo tempo, mas a dupla de rapazes não lhes deu ouvidos. Sem mais delongas, seguiram na direção do bosque, deixando as namoradas no acampamento.

            Tão logo adentraram por entre a parte mais densa da vegetação, os dois amigos perceberam que naquela área o declive era mais íngreme do que imaginavam e a pouca luminosidade que penetrava por entre os galhos das árvores robustas tornava a visibilidade pouco favorável.

            – Merda! – resmungou Milton – Acho que não escolhemos bem o local. Está vendo o precipício que há lá embaixo?!

            – Sim. – respondeu Rafael – E com essa escuridão o negócio fica perigoso. Vamos descer ali pela esquerda, mas cuidado para não resvalar!

            Como em uma cena de um ingênuo filme de comédia, tão logo Rafael acabou de proferir a sua frase de advertência, Milton perdeu o equilíbrio ao pisar em uma pedra mal fixada no barranco e, com um grito de espanto, rolou pela encosta do declive, ganhando velocidade na medida em que despencava.

            – Jesus Cristo! – gritou Rafael, um segundo antes de se desatar a correr morro abaixo atrás do amigo.

            Embora não tenha demorado mais do que dois minutos, a descida de Rafael pareceu-lhe ter durado uma eternidade, pois além do desconforto de ter que segurar a espingarda, ainda precisava ter todo o cuidado possível para que ele próprio não caísse ladeira abaixo. Na medida em que descia, via pela lateral da encosta o rastro de arbustos amassados deixado pela queda do amigo e, em seu íntimo, temia encontrá-lo morto.

            Porém, pelo menos nesse aspecto, a realidade revelou-se melhor do que a mais positiva das expectativas. Quando chegou a uma pequena área plana que se assemelhava a uma espécie de degrau natural esculpido no barranco, Rafael já encontrou o companheiro se levantando. Milton estava com as roupas sujas de terra e cheias de folhas dependuradas, mas, além de um pequeno corte na testa por onde escorria um estreito filete de sangue, não aparentava ter sofrido nenhuma outra lesão mais séria.

            – Cara, graças a Deus você está bem! – Comemorou Rafael – Com uma queda dessas você poderia ter se quebrado todo!

            Contudo, Milton não compartilhou do entusiasmo do amigo, pois estava entretido, como se em transe, olhando fixamente para um ponto específico localizado um pouco abaixo do minúsculo platô em que se encontravam. Intrigado, Rafael olhou na mesma direção e, chocado, deixou escapar um gemido de espanto com o que vislumbrou. Enroscadas entre arbustos, estavam duas ossadas que eram inconfundivelmente humanas, pois entorno dos cadáveres descarnados eram perfeitamente identificáveis peças de vestuário, como calças, casacos e até uma mochila ainda presa às costas de um dos corpos.

            A dupla de amigos estava tão chocada com a macabra descoberta que só se deu conta da aproximação de suas respectivas namoradas quando as moças já estavam praticamente postadas ao seu lado e, mediante a terrificante visão, começaram a gritar alvoroçadamente.

            – Meu Deus! Eu disse! Eu disse! Esse lugar é amaldiçoado! – berrava Cíntia, em meio às lágrimas de desespero!

            – Vamos cair fora daqui! – implorava Paulina, também em prantos – Depressa! Depressa!

            – Alguém está se aproximando. – disse Milton, apontando o dedo para a direita, área onde a vegetação era ainda mais densa.

            Como Rafael permanecia em silêncio, alheio à gritaria ao seu redor, Milton o sacudiu pelo braço e tornou a apontar na direção de onde vinha o barulho de galhos se partindo e folhas secas sendo pisadas. As moças, ao se darem conta da iminente chegada de alguém – ou de algo – vindo de dentro da mata, passaram a gritar de forma ainda mais estridente.      

          – Alguém está se aproximando! – repetiu Milton, dessa vez aos berros.

            Apenas nesse momento Rafael pareceu se dar conta do que estava acontecendo. Quando olhou na mesma direção dos demais companheiros, avistou a vegetação que balançava e se envergava, deixando claro que dentro de segundos o grupo não estaria mais sozinho. Mediante o panorama de pânico e desespero que se formatava ao seu redor, deturpando sua capacidade de reflexão, o rapaz instintivamente ergueu a espingarda que trazia em mãos e apontou-a na direção temida. Quando apertou o gatilho, o estrondo do tiro veio acompanhado de um gemido abafado e do baque de algo pesado que desabou por detrás dos arbustos.

 

Continua...

6 de mar. de 2021

O VAMPIRO DA ESCADARIA

 

     Por Lord A

    SÃO PAULO, quando (ainda) era da garoa…

    Eu era menina, ainda trabalhava nos lugares de jogador lá do centro. Limpava as latrinas, servia bebida pros perdidos e pros desandados da vida. Depois tinha que voltar rápido na noite pro casebre onde morava com meus irmãos, o papai e a mamãe. Dava medo andar no vale do centro de madrugada, por que lá era lugar de coisa ruim e de sortilégio. Saía do botequim,  andava no meio dos prédios escuros, descia a ladeira e tinha que subir uma escadaria de mármore para sair do outro lado do vale. Valia-me da minha fé e dos meus santos.

    Lembro que tinha um flautista que tocava no final da escadaria, muito tempo atrás. Tempo de garoa, quando o vale era escuro e lugar de coisa ruim como falava o caboclo matuto. Tocava sua flauta, tocava triste, mas tocava bonito e muitos daqui e de lá vinham ouvir sua música. Vinham as moças-dama que não eram prendadas, gente sabida do centro e até do Brás. Ele tocava de noite, meia noite, hora de ronda e hora de magia da última sexta-feira do mês.

    Ele descia a escadaria de terno branco, lírio em flor. Vinha quando já era noite, noite bonita. E embaixo dos arcos, tocava para quem quisesse ouvir. Os meninos da rua, que vadiavam por ali e dormiam em qualquer canto que fosse canto, falavam que seus olhos eram cor da prata. Cor de lua cheia. Seu rosto ninguém via não, era como lua negra, lua escura. Era o que falavam quando a gente servia a sobra das comidas para ele no beco dos fundos do botequim.

    Eu via gente bonita que corria dos quatro cantos para ouvir o flautista da escadaria tocar. Cães silenciavam seus berros e vinham ali pastorear. Os gatos vinham da kalunga menor, do meio da consolação atraídos pela melodia. Ficavam ali, deitados no mármore ouvindo. Tinha um gato preto, grande e gordo, que ficava ali sentado na estátua de ferro, tomando conta de todos, só na vigília. Eu saudava sua força, sabe! Parecia chefe de todos os gatos!

    Naquela madrugada só veio uma moça, bonita e de escarlate, ver o flautista tocar. Era faceira, o escarlate de seu vestido parecia ruborosa rosa de cruzeiro já em flor. Pele marmórea que parecia deusa de além dos mares e olhar de fogo, escondido sobre o cacheado negro dos cabelos.

    Terminado o tocador, ela o chamou. Baixou ventania forte na escadaria que apagou os tocheiros. Os meninos correram que nem os cães na noite. Uns eram cãezinhos espertos e foram respeitadores. No breu só ouvi um guinchado pavoroso:  Issiiiiisssssssssss… Isssssssiiiiiiissssssssss… E som de vigorosas asas negras encouradas bateram e bateram, abanando toda poeira, todos os males,  todo chororô…

    Quando passou a confusão e eu acordei só vi os gatos seguindo o gato preto de volta pra Kalunga menor da Consolação. Nunca mais vi flautista lá e nem moça faceira de escarlate. Bateram asas e voaram dali, voltaram pra banda de lá. Noite de última sexta-feira do mês, quando passo lá, acendo vela preta e olho para copeira das árvores. Dali do breu, sinto que sou olhada de volta, então sei que está tudo em paz.

    Uma noite uns rapazes ricos e sabidos, todos embriagados tentaram me pegar lá perto da escadaria, quando eu ia de volta pro casebre da minha família. Eles queriam fazer malvadeza com eu. Eles me seguraram e me tiraram do chão…As copas das árvores perto da escadaria balançaram forte. Daí veio um guinchado pavoroso, coisa de morto, coisa do lado de lá… e eu cai no chão.

    Quando acordei era de manhã cedo, seu delegado tava lá, todo de preto com todo seus policiais, só vi a carroça com os corpos dos rapazes estraçalhados, tudo sem cabeça e os corpo aberto. Os homem sabido falavam que os corpo tava tudo sem sangue e as cabeça tavam tudo amarrada nos galhos das árvores. Delegado perguntou seu eu sabia de algo, e falei que não sabia de nada e me mandei. Só vi as pétalas de rosa vermelha no final da escadaria.

    Vez por outra na madrugada da última sexta-feira, gente que é sabida e gente que não é, passa lá e também acende vela preta e vermelha lá na escadaria. Uns que podem mais deixam vinho do bom lá. As moças perdidas deixam rosa vermelha e badulaques delas nos cantinho dos degraus perto das velas. Todos eles fazem conversador lá, falam baixinho e cochicham…Uns até chamam de “compadre” quando falam…Eu só sei que acendo minha vela, faço meu agradecedor e subo a escadaria logo. Ali é lugar de povo que sai voando na lua cheia e faz o que a gente não faz aqui não. Lá longe ouço os cães vadios e os meninos correndo junto no breu do vale. E tem o “Seu gato preto” que fica lá convidando e recebendo as prendas, deitado, esparramado no mármore da mureta enluarada…

 

* Publicado originalmente no blog fontesdaficcao.wordpress.com, em 2009.

24 de fev. de 2021

UM ESTRANHO PRISIONEIRO

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Todos os prisioneiros sabiam o que lhes aguardava ao serem capturados por aquela corja de piratas: serem vendidos como escravos para algum magnata do leste ou serem executados e jogados ao mar. Por isso, era compreensível que enquanto estivessem no calabouço passassem todo o tempo especulando sobre possibilidades de fuga ou chorando em desespero pela ausência delas. A imensa maioria agia dessa forma, com exceção de um único detento: aquele sujeito esquisito que foi capturado por último. Desde que ele chegara à prisão, passou todas as suas horas mergulhado em um silêncio impassível e indiferente, que em nada combinava com a postura histérica e agressiva dos demais cativos.

            Porém, tudo mudou cerca de duas semanas após a sua chegada. Tão logo anoiteceu, ele levantou-se do canto onde geralmente permanecia sentado e começou a chamar pelos carcereiros. Assim que um deles apareceu, o estranho enfiou sua mão por entre as grades e o atingiu com um soco, soltando uma gargalhada logo em seguida.

            Furioso, o pirata agredido pediu a ajuda de um companheiro e arrastou o prisioneiro rebelde para fora da cela. Era evidente que os carcereiros pretendiam espancá-lo com toda a brutalidade que sua petulância merecia. Contudo, ali mesmo, no corredor da prisão, algo inacreditável aconteceu. Com um urro enregelante, o estranho se desvencilhou de seus agressores e deu vazão a uma metamorfose que o transformou em um monstro enorme e horrendo.

            Sem dificuldades, a criatura destroçou a dupla de piratas antes mesmo que eles pudessem desembainhar suas espadas, para em seguida tomar as escadas e partir para o andar superior da antiga fortaleza.

            Ouvindo os gritos de dor e desespero que vinham lá de cima, pela primeira vez os demais prisioneiros sentiram-se gratos por estarem trancafiados e protegidos por detrás das grades de suas celas imundas.     

20 de fev. de 2021

REFLEXÕES DE GUERRA


 

Por Renato Rosatti

 

                   A noite estava fria, escura e chuvosa. Perdido na floresta, no meio de mais uma guerra insana, eu estava ferido e à beira de um colapso emocional. Eu me perdera do pelotão numa batalha e vagava agora sozinho em meio à mata, carregando a dor de um projétil que se alojara em meu ombro e questionava incessantemente o horror real à minha volta, e a barbárie insensata da guerra.

                Solitário, com frio, dor, cansaço, e com a escuridão me engolindo em suas entranhas e ocultando medos e pavores no desconhecido. Quanto à guerra, eu pensava com indignação qual o seu propósito, e consegui concluir, envergonhado de minha própria humanidade, que qualquer diferença entre os povos não deveria ser negociada com tanta violência e irracionalidade. Matar para não morrer. Destruir a natureza. Combater a vida trilhando marchas fúnebres e saudando a soberana morte, vencedora triunfal de todas as batalhas. Ferir, mutilar, proporcionar o sofrimento e a dor em meus semelhantes, matar e se congratular de minha superioridade frente ao inimigo. Tudo é insano e sem sentido.

              Ali, na escuridão, ferido, perdido num inferno criado pela minha própria espécie, eu continuava meus pensamentos e começava agora a delirar ao tentar entender a guerra. E visões também começavam a surgir à minha volta. Explosões, disparos de projéteis, gritos de dor, cheiro de sangue coagulado no ar, morte. Cenas de horror real em estado puro e absoluto. Delírios, visões... Sozinho, no escuro, dor, frio, o inferno... a guerra...

                Foi quando eu ouvi uma voz gutural, rouca, pavorosa, ecoar em meus ouvidos em meio às visões e ruídos do caos de meus delírios. Parecia um som sobrenatural, vindo da podridão do além, do desconhecido, como um lamento grotesco de uma legião de criaturas agonizantes e desesperadas. As palavras traduziam a dor profunda da guerra e me incitavam a obter a minha paz eterna. Sons guturais e distorcidos que gritavam pelo fim da loucura e sofrimento. Delírios, visões, mensagens...

                Eu, esgotado física e psicologicamente, esforcei-me em minhas poucas energias, peguei minha metralhadora, apontei para a própria cabeça, e sem hesitação disparei explodindo meu cérebro, cujos pedaços misturaram-se com a mata, agora vermelha de meu sangue, o sangue de outra vítima.

       Para mim, a guerra finalmente acabava...

      E o pesadelo também, acordando desesperado, mergulhado em suor...