Por André Bozzetto Junior
De novo a imagem daquela estranha porta. Ela
não é fixada em parede alguma, e de seu interior parece emanar um luz
esbranquiçada. Adão não consegue visualizar direito o que há por detrás dela.
Seria uma escada?
De
repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se
abrem lentamente. Adão vê o copo vazio e a garrafa também. Havia adormecido
sobre a mesa e agora está de ressaca, mais uma vez. A queimação no estômago é
horrível. Talvez comer algo ajude a passar o mal-estar.
Contudo,
na geladeira só há líquidos. Todos eles alcoólicos. Decide pegar a vara de
pesca e descer até o rio. A ideia de fisgar um peixe para comer já ganha ares
de necessidade. Meio cambaleante, se põe a percorrer e curta distância que
separa sua cabana do curso d’água.
Enquanto
desce o barranco, avista por entre as árvores algo estranho bem junto à
margem. Uma sensação desconfortável e inquietante começa a oprimir o seu peito,
dando a impressão de que alguma coisa esquisita está prestes a acontecer. Ele
continua se aproximando com desconfiança, agarrando-se na vegetação ao redor.
Quando finalmente chega à borda do declive, o que avista lhe causa um espanto
tão grande que chega a cambalear para trás, soltando a vara de pesca e caindo sentado
na terra úmida. O que está estendido nas rochas diante de si é um cadáver, e,
como se tal descoberta não fosse suficientemente assustadora, o pavor lhe toma
por completo ao constatar que se trata do seu
próprio corpo ali desfalecido.
Ele
faz menção de levantar para sair correndo, mas, nesse momento, visualiza ao
lado do cadáver um menino magro, de olhos grandes e verdes, que parece ter
surgido do nada. A criança não faz movimento algum, permanece imóvel,
observando de forma impassível, mas, mesmo assim, sua presença transmite a Adão
um sentimento de pânico tamanho que ele fecha os olhos com força e grita, em
desespero.
*
De
repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se
abrem lentamente. Adão vê o copo vazio e a garrafa também. Estava de volta
sobre a mesa, só que dessa vez, o estranho menino estava sentado diante de si,
o encarando. Com o susto, ele cai do banco e o pavor emerge novamente, todo de
uma vez.
Adão
corre para dentro de casa e tranca a porta. Ao perceber que a janela está
aberta, se dirige para lá com a intenção de trancá-la também. Ele abaixa o
tampo de vidro e então dá de cara com os olhos esverdeados do menino
observando-o do lado de fora. Sem saber o que fazer, corre para o lado
contrário da sala e se agacha junto à parede tomado pelo medo. Nesse instante,
uma voz ressoa vinda do canto oposto:
– Não precisa ter medo.
Adão
tem a impressão de estar infartando. Olha para o lado, procurando identificar o
dono daquela voz misteriosa e vê um homem bem vestido, de aparência séria e
jovial.
– Quem é você?! Um fantasma?! – pergunta Adão,
com voz embargada.
– Bem, sou o espírito de alguém que está morto.
Então, tecnicamente, sim, sou um fantasma. – responde o homem
desconhecido, de forma impassível.
– Veio para me levar para o inferno?! – questiona
o apavorado Adão, tentando se espremer cada vez mais contra a parede.
– Pelo contrário: vim para ajudar a resolver
essa confusão de uma vez por todas.
Tão
logo essas palavras são pronunciadas ,o menino surge de um canto escuro da sala
e se posiciona ao lado do estranho.
– E ele?! – pergunta Adão, com os olhos cheios
de lágrimas – Quem é ele?!
– Ele é você. – responde o homem, em tom
tranquilo.
– O quê?! – vocifera Adão.
– Ele é você… – repete o desconhecido – Uma
versão de você que, por enquanto, ainda não existe no mundo material.
– Mas, como assim…?!
– Você está morto, Adão. – interrompe o estranho
– Morreu há um bom tempo atrás, quando estava indo pescar, bêbado, como de
costume. Rolou o barranco e quebrou o pescoço. Porém, por estar com a mente
sempre entorpecida pelo álcool e por nunca ter feito qualquer esforço para sair
da ignorância, ficou preso neste plano de consciência, revivendo repetidamente,
apenas com pequenas alterações, o dia de sua morte.
Adão
permanece em silêncio, como se tentando processar as impactantes informações
que acabou de ouvir.
– Este menino – continua o desconhecido,
apontando para a criança ao seu lado – É uma nova versão de você, idealizada
para viver em uma realidade paralela. O fato de ele estar aqui, aparecendo aos
seus olhos, é uma tentativa da sua consciência de lhe fazer entender que o foco
da sua mente agora deve ser outro.
– E você, quem é? – pergunta Adão, como se, ao
desviar o rumo da conversa, pudesse diminuir a tremenda angústia que estava sentindo
ao ouvir as palavras do estranho.
– Eu também sou você. – responde o desconhecido
– Sou uma versão de você que viveu e morreu em uma dimensão alternativa. Na
verdade, só estou aqui porque é assim que a sua consciência organizou as
memórias daquela vida anterior, para lhe ajudar a entender a verdade.
– Não estou entendendo é nada! – grita Adão, com
voz trêmula – Vocês são reais ou estão apenas na minha mente?!
– Nós estamos apenas na sua mente... – afirma o
estranho, de forma tranquila – E por isso mesmo é que somos reias. Tudo o que
existe de real é o que está na sua consciência.
– Isso não faz sentido! – resmunga Adão – Se
você é eu, como poderia saber todas essas coisas que está me dizendo? Eu sou um
simples pescador!
– Quando você viveu a vida a qual eu represento,
era um funcionário do Governo, com grande conhecimento em metafísica e
ocultismo. O problema é que foram cometidos alguns erros e, como na natureza
tudo precisa ser compensado e equilibrado, você voltou nesta existência como um
homem simples em um cotidiano trivial, mas com plenas condições de se
desenvolver e evoluir. Porém, sua dificuldade em resistir aos vícios lhe
colocou no alcoolismo e então tudo foi por água abaixo.
Finalmente,
as coisas pareciam começar a fazer sentido para Adão.
– E então… – pergunta ele, de forma um pouco
mais serena – O que acontece agora?
Sua existência atual aqui neste plano consciencial precisa ser descontinuada –
explica o estranho – Assim toda a sua energia psíquica vai migrar para o
menino. É naquele corpo que a sua mente deve habitar agora. Se não for assim,
ele nunca vai existir no mundo normal. Vai ficar aqui, e vocês ficarão
assombrando um ao outro, como dois fantasmas.
– E como se faz isso? – questiona Adão, já com
uma sutil intuição do que estava por vir.
– Lembra-se da porta? – indaga o desconhecido –
Aquela da escada e da luz estranha, com a qual você ainda “sonha”? O jeito
natural de resolver a situação seria você ter entrado nela na primeira vez que
a viu, logo depois de ter morrido. Como não fez isso, ficou vagando por esta
dimensão intermediária, como uma “alma penada” dos contos de assombração. Agora
precisaremos usar um método mais drástico para convencer a sua mente de que a
existência desse foco consciencial chegou ao fim.
Ao
proferir essas palavras, o estranho calmamente insere a mão direita no interior
do blazer e dali retira uma pistola. Adão arregala os olhos com espanto ao ver
o cano da arma apontada para a sua cabeça.
– Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. – afirma
o estranho, um segundo antes de apertar o gatilho.
*
De
repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se
abrem lentamente. O menino vê diante de si o copo vazio e a jarra de suco
também. Não devia ficar até tão tarde lendo histórias em quadrinhos. Se a sua
mãe soubesse que pegou no sono na cozinha de novo, certamente lhe daria uma
bronca.