25 de mar. de 2021

CIDADE FANTASMA

 

 

Por Renato Rosatti

 

                Caminhando entre as ruínas de uma pequena cidade no início desse século, o jovem Anderson Souza, de 25 anos de idade, observava ao seu redor uma brutal devastação, muitos corpos estraçalhados ou carbonizados em meio à destroços e um odor fétido de morte emanando dos cadáveres podres que foram massacrados. Ele estava ali, dois dias após a carnificina, observando a destruição total de uma cidade que não mais existia. A pequena vila no Estado de Goiás, interior central do Brasil, estava agora inexplicavelmente morta. O jovem parecia hipnotizado ao visualizar os escombros a sua volta, pensando estar vivendo um terrível pesadelo, onde a morte reinava soberana e satisfeita com sua vitória. Mas tudo era real. E nem o forte cheiro desagradável de putrefação proveniente da decomposição da carne parecia afetá-lo.

                Aquela era a sua cidade, mas ele não sabia o que havia acontecido. Estava ausente há duas semanas, acampado nas montanhas muito longe dali, descansando e pescando solitariamente. Ao retornar, encontrou tudo aniquilado e esmagado de maneira impiedosa.

                “Seria uma guerra?”, pensou. “Provavelmente não, pois não existem armas tão poderosas capazes de tamanha destruição”, concluiu.

                Os destroços não pareciam terem sido causados pelas armas convencionais que Anderson conhecia.

                Retomou a caminhada, agindo instintivamente, pisoteando escombros e restos de cadáveres que um dia foram seus amigos. Em certo ponto, ouviu um gemido agonizante próximo e localizou um homem ainda consciente entre as ruínas. Correu em sua direção e o pegou nos braços. O pobre homem não tinha uma das pernas e o sangue lhe cobria todo o corpo. Estava morrendo há dois longos dias. Delirando, balbuciou algumas palavras utilizando suas últimas forças:

                - Cuidado! Eles podem voltar!

                Mais alguns instantes se passaram e o homem morreu.

                O rapaz prosseguiu a jornada pensando nas palavras finais de agonia de um homem à espera da morte. “O que será que ele queria dizer com Eles podem voltar!?”

                Após caminhar por cerca de meia hora na cidade fantasma, o jovem repentinamente avistou no céu um estranho objeto de formato discoide repleto de luzes sobrevoando à baixa altitude a pequena vila, algo nunca visto antes. Depois apareceram muitos outros iguais, rompendo o silêncio da morte com o ruído de motores em funcionamento. O rapaz fugiu em desespero, sem entender nada, correndo por sua vida, tomado de medo e pavor.

                Ao olhar novamente para o céu, seu espanto não tinha dimensões após avistar uma gigantesca espaçonave exatamente sobre sua cabeça. O imenso disco pairava acima da pequena cidade destruída, não muito longe do solo. Ele então viu que as primeiras naves entravam e saíam dessa outra enorme.

                Agora Anderson, mergulhado em agonia, pensou estar totalmente insano perante o que via a sua volta.

                Eram seres alienígenas que preparavam um novo ataque. Suas intenções não pacíficas consistiam numa invasão em massa do planeta, destruindo tudo que encontravam. Seus objetivos eram dizimar toda forma de vida inteligente e se apossar do planeta para torná-lo seu mundo.

                Sem tempo para reagir, o jovem foi atingido por uma arma desconhecida disparada por um dos objetos menores. O tiro certeiro explodiu sua cabeça, espalhando pedaços de seu cérebro num raio de alguns metros e derrubando seu corpo inerte ao chão, mergulhando numa imensa poça de sangue e miolos.

                Eles voltaram...

 

  

 

 

23 de mar. de 2021

A ESCADA ATRÁS DA PORTA

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            De novo a imagem daquela estranha porta. Ela não é fixada em parede alguma, e de seu interior parece emanar um luz esbranquiçada. Adão não consegue visualizar direito o que há por detrás dela. Seria uma escada?

          De repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se abrem lentamente. Adão vê o copo vazio e a garrafa também. Havia adormecido sobre a mesa e agora está de ressaca, mais uma vez. A queimação no estômago é horrível. Talvez comer algo ajude a passar o mal-estar.

          Contudo, na geladeira só há líquidos. Todos eles alcoólicos. Decide pegar a vara de pesca e descer até o rio. A ideia de fisgar um peixe para comer já ganha ares de necessidade. Meio cambaleante, se põe a percorrer e curta distância que separa sua cabana do curso d’água.

          Enquanto desce o barranco, avista por entre as árvores algo estranho bem junto à margem. Uma sensação desconfortável e inquietante começa a oprimir o seu peito, dando a impressão de que alguma coisa esquisita está prestes a acontecer. Ele continua se aproximando com desconfiança, agarrando-se na vegetação ao redor. Quando finalmente chega à borda do declive, o que avista lhe causa um espanto tão grande que chega a cambalear para trás, soltando a vara de pesca e caindo sentado na terra úmida. O que está estendido nas rochas diante de si é um cadáver, e, como se tal descoberta não fosse suficientemente assustadora, o pavor lhe toma por completo ao constatar que se trata do seu próprio corpo ali desfalecido.

          Ele faz menção de levantar para sair correndo, mas, nesse momento, visualiza ao lado do cadáver um menino magro, de olhos grandes e verdes, que parece ter surgido do nada. A criança não faz movimento algum, permanece imóvel, observando de forma impassível, mas, mesmo assim, sua presença transmite a Adão um sentimento de pânico tamanho que ele fecha os olhos com força e grita, em desespero.

 *

          De repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se abrem lentamente. Adão vê o copo vazio e a garrafa também. Estava de volta sobre a mesa, só que dessa vez, o estranho menino estava sentado diante de si, o encarando. Com o susto, ele cai do banco e o pavor emerge novamente, todo de uma vez.

          Adão corre para dentro de casa e tranca a porta. Ao perceber que a janela está aberta, se dirige para lá com a intenção de trancá-la também. Ele abaixa o tampo de vidro e então dá de cara com os olhos esverdeados do menino observando-o do lado de fora. Sem saber o que fazer, corre para o lado contrário da sala e se agacha junto à parede tomado pelo medo. Nesse instante, uma voz ressoa vinda do canto oposto:

Não precisa ter medo.

          Adão tem a impressão de estar infartando. Olha para o lado, procurando identificar o dono daquela voz misteriosa e vê um homem bem vestido, de aparência séria e jovial.

Quem é você?! Um fantasma?! – pergunta Adão, com voz embargada.

Bem, sou o espírito de alguém que está morto. Então, tecnicamente, sim, sou um fantasma. – responde o homem desconhecido, de forma impassível.

Veio para me levar para o inferno?! – questiona o apavorado Adão, tentando se espremer cada vez mais contra a parede.

Pelo contrário: vim para ajudar a resolver essa confusão de uma vez por todas.

          Tão logo essas palavras são pronunciadas ,o menino surge de um canto escuro da sala e se posiciona ao lado do estranho.

E ele?! – pergunta Adão, com os olhos cheios de lágrimas – Quem é ele?!

Ele é você. – responde o homem, em tom tranquilo.

O quê?! – vocifera Adão.

Ele é você… – repete o desconhecido – Uma versão de você que, por enquanto, ainda não existe no mundo material.

Mas, como assim…?!

Você está morto, Adão. – interrompe o estranho – Morreu há um bom tempo atrás, quando estava indo pescar, bêbado, como de costume. Rolou o barranco e quebrou o pescoço. Porém, por estar com a mente sempre entorpecida pelo álcool e por nunca ter feito qualquer esforço para sair da ignorância, ficou preso neste plano de consciência, revivendo repetidamente, apenas com pequenas alterações, o dia de sua morte.

          Adão permanece em silêncio, como se tentando processar as impactantes informações que acabou de ouvir.

Este menino – continua o desconhecido, apontando para a criança ao seu lado – É uma nova versão de você, idealizada para viver em uma realidade paralela. O fato de ele estar aqui, aparecendo aos seus olhos, é uma tentativa da sua consciência de lhe fazer entender que o foco da sua mente agora deve ser outro.

E você, quem é? – pergunta Adão, como se, ao desviar o rumo da conversa, pudesse diminuir a tremenda angústia que estava sentindo ao ouvir as palavras do estranho.

Eu também sou você. – responde o desconhecido – Sou uma versão de você que viveu e morreu em uma dimensão alternativa. Na verdade, só estou aqui porque é assim que a sua consciência organizou as memórias daquela vida anterior, para lhe ajudar a entender a verdade.

Não estou entendendo é nada! – grita Adão, com voz trêmula – Vocês são reais ou estão apenas na minha mente?!

Nós estamos apenas na sua mente... – afirma o estranho, de forma tranquila – E por isso mesmo é que somos reias. Tudo o que existe de real é o que está na sua consciência.

Isso não faz sentido! – resmunga Adão – Se você é eu, como poderia saber todas essas coisas que está me dizendo? Eu sou um simples pescador!

Quando você viveu a vida a qual eu represento, era um funcionário do Governo, com grande conhecimento em metafísica e ocultismo. O problema é que foram cometidos alguns erros e, como na natureza tudo precisa ser compensado e equilibrado, você voltou nesta existência como um homem simples em um cotidiano trivial, mas com plenas condições de se desenvolver e evoluir. Porém, sua dificuldade em resistir aos vícios lhe colocou no alcoolismo e então tudo foi por água abaixo.

          Finalmente, as coisas pareciam começar a fazer sentido para Adão.

E então… – pergunta ele, de forma um pouco mais serena – O que acontece agora?

          Sua existência atual aqui neste plano consciencial precisa ser descontinuada – explica o estranho – Assim toda a sua energia psíquica vai migrar para o menino. É naquele corpo que a sua mente deve habitar agora. Se não for assim, ele nunca vai existir no mundo normal. Vai ficar aqui, e vocês ficarão assombrando um ao outro, como dois fantasmas.

E como se faz isso? – questiona Adão, já com uma sutil intuição do que estava por vir.

Lembra-se da porta? – indaga o desconhecido – Aquela da escada e da luz estranha, com a qual você ainda “sonha”? O jeito natural de resolver a situação seria você ter entrado nela na primeira vez que a viu, logo depois de ter morrido. Como não fez isso, ficou vagando por esta dimensão intermediária, como uma “alma penada” dos contos de assombração. Agora precisaremos usar um método mais drástico para convencer a sua mente de que a existência desse foco consciencial chegou ao fim.

          Ao proferir essas palavras, o estranho calmamente insere a mão direita no interior do blazer e dali retira uma pistola. Adão arregala os olhos com espanto ao ver o cano da arma apontada para a sua cabeça.

Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. – afirma o estranho, um segundo antes de apertar o gatilho.

 *

          De repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se abrem lentamente. O menino vê diante de si o copo vazio e a jarra de suco também. Não devia ficar até tão tarde lendo histórias em quadrinhos. Se a sua mãe soubesse que pegou no sono na cozinha de novo, certamente lhe daria uma bronca.