Por André Bozzetto Junior
Valdemar
aproximou-se da borda da muralha e olhou para o lado de fora. Lá embaixo havia
uma charrete parada diante do portão. Ele logo reconheceu o homem que segurava
as rédeas da condução. Era Juvenal, seu irmão mais velho.
–
Abram essa coisa! Depressa! – esbravejou Juvenal, impaciente.
Poucos
segundos depois, o pesado e rústico portão de cedro foi aberto e a charrete
adentrou o enorme pátio cercado da propriedade. De dentro do coche, Helena
observava com grande interesse a alta muralha construída com robustas toras de
madeira e que formava um círculo em torno do terreno no qual se encontravam a
casa grande, a residência dos empregados, o estábulo, o chiqueiro, o galinheiro
e o celeiro.
–
Fez tudo que te pedi? Mandou embora as mulheres? – perguntou o ansioso Juvenal,
tão logo desceu da charrete.
–
Sim – respondeu Valdemar. – Rodrigo levou a mãe, as irmãs e também as
empregadas para a fazenda do Coronel Teodoro. Saíram ao amanhecer, então já
devem estar chegando lá.
–
Ótimo! – exclamou o visitante. – E quantos homens ficaram aqui?
–
Além de mim e do José, ficaram mais dois.
–
E os outros peões?
–
Um foi com o Rodrigo levar as mulheres, e os outros dois estão no campo
cuidando do gado.
–
A que distância eles estão?
–
A uns dez quilômetros no sentido leste.
–
Quem bom! Acho que, se ficarem lá, não correm perigo.
Valdemar
se aproximou de Juvenal, colocou a mão sobre seu ombro e falou em tom bastante
singelo:
–
Meu irmão, sabe que eu te respeito muito... Fiz tudo que me pediu assim que recebi
sua mensagem... Mas agora creio que mereço saber o que está acontecendo.
–
Certo, Valdemar, tem razão. Mas antes, será que tu terias um bom vinho para tirar
a poeira da garganta do teu velho irmão?
–
Mas é claro! Tenho no porão alguns garrafões que vieram direto de Caxias do
Sul! Vamos até a casa grande!
–
Muito bem! Mas antes precisamos acomodar Helena. Ela está no coche.
–
Helena?! Mas por que a trouxe?!
–
Prometo que depois te explicarei tudo... – disse Juvenal, com indisfarçável
constrangimento.
Valdemar
consentiu com um aceno de cabeça e em seguida se dirigiu ao rapaz que
conversava com os peões perto do portão.
– José, venha até aqui! Cumprimente seu tio
Juvenal e depois leve a sua prima até a cozinha da casa grande. Faça para ela
um bom chimarrão e prepare algo para comer.
O
jovem cumprimentou o tio de maneira discreta e respeitosa, seguindo logo depois
na direção da charrete para chamar Helena.
Valdemar
ordenou que os peões desatrelassem os cavalos da charrete e levassem-nos ao
estábulo. Em seguida, seguiu com Juvenal na direção da casa grande.
Do
lado de fora da grande muralha de madeira, alguém permanecia oculto em meio à
vegetação, esperando pacientemente pelo por do sol.
*
Cheio
de agitação, Juvenal caminhava em círculos defronte a janela da sala de estar,
bebericando uma taça de vinho. Valdemar estava sentado diante dele,
observando-o com indisfarçável desconfiança.
–
Tudo bem, meu irmão... – disse Juvenal. – Vou te contar tudo, desde o início.
–
Até que enfim, tchê! Estou ansioso para saber que diabo está acontecendo! –
exclamou Valdemar.
–
Pois que seja – consentiu Juvenal – Essa barbaridade toda começou a cerca de um
mês, naquela semana em que fui caçar com os rapazes. Creio que os peões da
minha fazenda estavam entretidos demais com a lida do campo e as empregadas não
foram atenciosas como pedi, pois em uma tarde em que Helena estava
sozinha no pomar, um vivente apareceu não sei de onde e se aproximou dela. Tu
conheces muito bem a Vanda, minha esposa... Sabe que ela não é prendada como se
esperaria. Decerto não preveniu direito a guria para casos como este.
–
Meu irmão! Tu estás querendo dizer que... Que esse sujeito desonrou a minha
sobrinha?!
Juvenal
estava tão constrangido que sequer conseguia olhar no rosto do irmão. Apenas
consentiu com um aceno de cabeça.
–
Jesus Cristo! – exclamou Valdemar, levantando-se da cadeira. – Mas quem é esse vivente
que parece não ter medo de ser castrado?!
–
Parece ser um estrangeiro, um italiano que surgiu por aquelas bandas não se sabe
a troco de quê – disse Juvenal. – Mas isso não é o pior, meu irmão... Para que
tu tenhas ideia da situação, te conto que depois daquela tarde a desgramada da
Helena começou a sair às escondidas todas as noites para se encontrar com
sujeito no meio do mato. Quando os peões descobriram, arrastaram a guria de
volta para casa e preveniram o vivente para que sumisse da região antes que eu
voltasse da caçada.
– Pois deviam ter mandado chumbo nele ali
mesmo!
–
Concordo – disse Juvenal, enchendo sua taça de vinho. – Mas o negócio foi
ficando cada vez pior. Na manhã seguinte essa mesma dupla de peões que tinha
enxotado o estrangeiro apareceu morta na beira do rio. Os dois homens estavam estraçalhados,
como se tivessem sido atacados por uma onça. Uma onça gigante, pelo tamanho do
estrago. Quando eu e fiquei sabendo do ocorrido, dei uma surra na sem-vergonha
da Helena e mantive-a trancada no quarto, dia e noite. Fiquei tão furioso que
cobri de bofetadas também a Vanda, pra ver se ela aprendia a ser uma mãe mais atenciosa.
Na noite seguinte, o tal sujeito apareceu no gramado diante da minha casa! Quando
uma das empregadas me avisou, saí atirando em companhia de um peão e do meu
filho Maurício. Acho que não acertamos nenhum tiro, pois antes de desaparecer
no meio do mato, ele ainda gritou com aquele sotaque irritante que iríamos nos
arrepender muito por impedi-lo de se aproximar da Helena. De lá pra cá ele não
foi mais visto, mas outros dois peões apareceram mortos, além de doze cabeças
de gado.
–
Mas que barbaridade! – exclamou Valdemar – Tu achas que isso é obra do sujeito?
Será que ele também tem alguma coisa com o caso de todas aquelas minhas vacas
que foram despedaçadas há meses atrás?
–
Olha, meu irmão... Vou te dizer o que penso... – sussurrou Juvenal, se aproximando
de Valdemar. – Aquele vivente não parece um sujeito normal! Quando vi os olhos
dele... Pareciam olhos de bicho, não de gente!
–
Eu não entendo o que tu queres dizer!
–
Estou começando a acreditar que o estrangeiro tem parte com o diabo!
–
Parte com o diabo?!
–
Sim! Os antigos diziam que quem fazia pacto com o capeta ficava endemoniado... Meio homem e meio...
Outra coisa. Entende porque pedi pra levar embora as mulheres e segurar contigo
alguns homens armados? Acho que o bicho
ruim vai aparecer, procurando pela Helena... Então a gente enche ele de chumbo!
–
Mas, meu irmão... Tu acreditas mesmo nisso?
–
Valdemar, pense um pouco! Uma onça poderia ter matado três vacas, ou talvez
quatro. Mas somando as minhas e as suas já foram mais de vinte, em poucos meses.
E os quatro homens?! Estavam despedaçados, com as tripas espalhadas pelo chão e
os ossos das pernas roídos! Uma onça não faz isso!
–
Tu não pensaste em ir até o povoado para falar com o padre Rômulo?
–
Padre Rômulo?! – exclamou Juvenal, com espanto. – Meu irmão, quando foi a
última vez que tu foste ao povoado?
–
Bem, foi antes de construirmos a muralha. Acho que faz mais de três meses.
–
Percebe-se! Então, tenho que te dar a infeliz notícia: O padre Rômulo está
desaparecido há várias semanas. Sumiu enquanto atravessava a floresta. Estava indo
à minha casa, depois que eu lhe enviei uma mensagem dizendo que precisava
encontrá-lo com urgência.
Valdemar
permaneceu alguns instantes calado e imóvel, como se pasmado com as informações
que recebera. Em seguida, virou-se e tomou o rumo do interior da residência.
–
Aonde tu vais? – perguntou Juvenal.
–
Pegar a minha espingarda! – respondeu Valdemar, sem olhar para trás.
Juvenal
permaneceu na sala, observando através da janela a escuridão da noite se
apossando dos últimos resquícios do dia que se esvaia em tons avermelhados.
Poucos minutos depois, quase no mesmo instante em que Valdemar retornou
trazendo sua espingarda, um dos peões entrou pela porta principal de forma
alvoroçada.
–
Coronel Valdemar! Um vivente surgiu de dentro do mato e está plantado lá na
frente do portão! – disse o ofegante empregado.
Valdemar
e Juvenal se entreolharam afoitos e saíram em direção ao pátio, seguidos pelo
peão. De forma apreensiva, subiram as escadas que levavam até a borda interna
da muralha e se posicionaram ao lado do outro empregado que permanecia lá,
olhando com desconfiança para fora.
–
É ele! É o desgraçado do qual eu estava falando! – gritou Juvenal, tão logo
vislumbrou o homem que se encontrava do lado externo.
Diante
do portão, estava parado um rapaz que em nada se assemelhava aos sujeitos que
estavam do outro lado da grande divisória de madeira. Era loiro, tinha olhos
azuis e vestia roupas aristocráticas, bem diferentes das tradicionais pilchas e
bombachas tão usuais entre os habitantes da região. Também chamava a atenção
uma grande cicatriz que ele ostentava no lado esquerdo da face.
–
Coronel Juvenal! De nada adianta o senhor achar que pode esconder Helena de
mim... – disse o desconhecido, com um sotaque tão carregado que chegava a
dificultar a compreensão de suas palavras. – Nós temos uma ligação muito forte.
Deixe-a vir até mim, para o bem de todos que se encontram detrás desta muralha.
–
Mas que vivente mais lacaio! – gritou Valdemar, engatilhando sua espingarda –
Além de desonrar a minha sobrinha ainda tem coragem de vir até aqui desafiar o
meu irmão e ameaçar a minha gente?!
Nesse
instante, uma súbita gritaria fez com que as atenções se voltassem para o pátio
interno da propriedade. Era Helena que corria na direção do portão, sendo
perseguida pelo atrapalhado José, que tentava contê-la.
–
Ângelo! Ângelo, meu amor! – exclamava a moça. – Abram esse portão e me deixem sair!
Do
lado de fora da muralha, o rapaz começou a rir de forma provocativa tão logo
ouviu a voz da moça chamando pelo seu nome. Possuído pelo ódio, Valdemar não
hesitou, apontou sua espingarda na direção do indesejado visitante e atirou. A
bala atingiu Ângelo no ventre, fazendo-o gritar e curvar-se levando as mãos ao
ferimento, de onde já começava a verter o sangue que manchava de vermelho a sua
camisa branca. Cambaleante, ele correu da forma mais rápida que pode para
dentro da mata.
–
Coronel Valdemar! Deixe-nos ir atrás daquele verme! – exclamou um dos peões.
–
Sim, vão! – ordenou o patrão. – E de preferência tragam o sujeito vivo para que
a gente possa castrá-lo antes de cortar a sua garganta! Ele vai ver o que
acontece com quem se mete com as mulheres da nossa família!
Com
rapidez, os dois empregados desceram as escadas, abriram o pesado portão e
saíram empunhando suas armas no encalço do fugitivo. Segundos depois já haviam
desaparecido em meio à escuridão da mata.
A
dupla de irmãos dirigiu-se então até Helena, que naquele momento chorava de
forma estridente, sendo amparada por José.
–
Sua rapariga desgramada! – gritou Juvenal, atingindo a filha com uma forte
bofetada no rosto. – Será que nunca mais vai parar de me fazer passar
vergonha?!
Com
a violência do golpe, a moça caiu ao chão levando as mãos ao rosto e chorando
de forma ainda mais desesperada.
–
José, pegue a sua prima e leve-a para quarto de visitas. Confira se as janelas
estão bem trancadas e passe a chave na porta! – ordenou Valdemar.
O
rapaz obedeceu a ordem do pai de imediato, ajudando Helena a se levantar e conduzindo-a
para o interior da casa grande. Juvenal observava a cena sem conseguir
disfarçar o grande constrangimento que o afligia.
–
Fique tranquilo, meu irmão! – disse Valdemar, colocando a mão sobre o ombro de
Juvenal. – A Helena é teimosa feita uma égua xucra, mas logo a gente a amansa.
E quanto ao estrangeiro, pode ter certeza que ele é um homem comum, igual a
nós! Com uma bala no bucho ele não vai longe. Logo os peões vão voltar trazendo
ele de arrasto e então veremos o quão macho ele é com um facão no meio dos
bagos!
–
Ainda não estou convencido disso. – murmurou Juvenal, observando o clarão da
lua cheia que começava a raiar por detrás das colinas conferindo um tom suave e
prateado à paisagem dos pampas.
*
No
interior da casa grande, José já havia acomodado Helena no quarto de visitas e
conferido as janelas. Estava prestes a sair e chavear a porta por fora,
conforme a orientação do pai, quando a moça – que até então permanecera calada
e cabisbaixa – apressou-se em sua direção.
–
Primo José, posso te fazer uma pergunta? – indagou Helena, em um tom de voz
suave e delicado.
–
Claro, prima. O que é? – disse o rapaz, de forma encabulada.
Helena
deu mais dois passos na direção de José, encarando-o de forma ostensiva e
posicionou seu rosto a poucos centímetros do dele.
–
Tu já andas te iniciando com as empregadas?
O
rapaz enrubesceu com a pergunta da prima. Sentiu-se muito constrangido com sua
ousadia e petulância ao tocar em um assunto como aquele de forma tão direta.
Mas, ao mesmo tempo sentiu-se também invadido por uma grande excitação. Desde
que Helena chegara ele tinha reparado em como ela havia se tornado uma moça extremamente sensual, onde os olhos verdes e os longos cabelos castanhos
conferiam um realce todo especial à sua beleza. Naquele momento, José estava
convencido de que homem algum ficaria imune aos seus encantos, e com ele não
seria diferente.
–
O que é isso, prima?! Deixe de fazer pergunta besta! – exclamou José, tentando
em vão não deixar transparecer o quanto estava encabulado.
De
forma brusca, Helena apoiou sua mão esquerda no peito do rapaz, empurrando-o
contra a parede, ao mesmo tempo em que introduzia a mão direita entre as suas
pernas. Em seguida, a moça encostou seus lábios de forma lasciva na orelha do
aparvalhado primo e sussurrou:
–
Ah, José, tu não queres fazer da tua prima a tua mulherzinha...?
O
contato da pele macia e o perfume adocicado dos cabelos da moça contribuíram de
forma decisiva para romper a resistência do desconcertado rapaz. No instante
seguinte os dois já estavam sobre a cama, compartilhando da tarefa de arrancar
o vestido o mais rapidamente possível do corpo de Helena.
*
Próximos
ao portão, Valdemar e Juvenal fumavam e caminhavam em círculos, de forma
impaciente e apreensiva.
–
Não entendo porque estão demorando tanto! – exclamou Valdemar. – ferido do
jeito que estava, aquele peralta não poderia ter ido muito longe!
–
Eu te disse, meu irmão! – retrucou Juvenal. – O sujeito não é normal!
Como
se endossando esta última afirmação, naquele exato instante uma série de gritos
angustiantes começou a ressoar do lado de fora da muralha.
–
Coronel Valdemar! Coronel Valdemar, abra o portão, pelo amor de Deus! –
suplicava a voz vinda de fora.
Sem
perder tempo, os irmãos abriram o robusto portão e vislumbraram diante de si a
terrificante visão de um dos peões que se aproximava rastejando, repleto de
lacerações, coberto de sangue e sem parte da perna direita, que havia sido
mutilada na altura do joelho. Faltavam-lhe também alguns dedos de ambas as mãos.
–
Aquele gringo é o tinhoso, Coronel! É o tinhoso! – exclamava o homem, com as
últimas forças que lhe restavam – Se o senhor visse o que ele fez com o Arlindo...!
Que Deus os proteja, porque ele está vindo...! Ele está...
Incapaz
de resistir por mais tempo, o peão exalou seu último sopro de vida e calou-se
para sempre. Apavorados, os irmãos entreolharam-se por uma fração de segundos e
correram para o lado interno da muralha. Estavam tão apressados e concentrados
em trancar o portão que sequer se preocuparam em arrastar o corpo do empregado
para dentro.
*
No
interior da casa grande, o quarto de hóspedes fervilhava de desejos e luxúria.
Com seu corpo quente e suado colado ao de José, Helena não cessava de falar-lhe
ao ouvido todas as excitantes idéias que lhe vinham à mente:
–
Primo... Tu vais fazer comigo tudo aquilo que o Ângelo faz? Tu vais, primo...?
José
não se preocupava em responder, pois estava imerso em um turbilhão de sensações
tão intensas que inebriavam quase que por completo sua racionalidade. Porém,
ele teve a vaga impressão de ter percebido algo diferente no tom de voz da prima. Algo inquietantemente diferente.
–
Tu vais me morder, primo? Vais me morder do jeito que o Ângelo me morde...?
Essa
última frase soou tão grave e áspera aos ouvidos de José que ele chegou a ter
um sobressalto. Abriu os olhos e, de forma impulsiva, segurou Helena pelos
ombros e afastou-a do seu corpo. Foi somente nesse momento que ele prestou
atenção nas cicatrizes de mordidas que ela possuía na base do pescoço, no seio
esquerdo, na barriga e na parte interna das coxas. Mas isso ainda não era o
mais assustador. Sob a tênue luz do luar que entrava através dos vidros da
janela, o perplexo rapaz viu a prima se converter em algo inumano e horrendo,
que em nada se assemelhava com a moça sedutora e deslumbrante com quem ele
havia se deitado alguns minutos antes.
O
monstro que antes fora Helena saiu de cima da cama, que começava a ceder sob o
seu peso, e emitiu um urro ameaçador na direção de José. Naquele momento o
rapaz já estava com lágrimas nos olhos e, mesmo estando nu, se precipitou para
o corredor na intenção de chegar até o seu próprio quarto, onde costumava
deixar uma de suas armas. Porém, não conseguiu dar mais do que três ou quatro
passos antes que o lobisomem o alcançasse e dilacerasse sua garganta com uma
única e vigorosa mordida, que fez com que seu sangue espirrasse de encontro às
paredes e manchasse de vermelho os antigos retratos de família que ali se
encontravam emoldurados.
*
Do
lado de fora da casa grande, Juvenal e Valdemar não ouviram nem os urros do
monstro e nem o grito de agonia de José, pois estavam entretidos demais com os
barulhos não menos sinistros que vinham do outro lado do portão.
–
Virgem Santíssima! Aquela coisa já está ali fora! – exclamou Juvenal, cheio de
horror.
–
Seja lá o que for, pelos barulhos deve estar comendo o corpo do peão! –
assentiu Valdemar, igualmente terrificado.
–
Precisamos de mais armas! Rápido, tchê!
–
Sim! Vamos até a casa grande chamar o José e pegar uma espingarda pra ti também!
Os
dois homens correram na direção da casa principal. Quando estavam a pouco mais
de dois metros de seu objetivo, a porta da frente da residência veio abaixo e
através dela surgiu o lobisomem. Os irmãos ficaram pasmos e sem ação diante da
terrificante visão.
–
Cristo! O que é isso?! Como é possível?! – exclamou Valdemar, um segundo antes
de o monstro atingi-lo com uma patada que lhe arrancou a espingarda das mãos e
em seguida com outra tão violenta que dilacerou seu rosto de tal forma que os
ossos da face ficaram descarnados e expostos.
Ao
vislumbrar o corpo do irmão tombar sem vida, Juvenal ansiou sair correndo, mas
não passou disso, um inútil anseio. O lobisomem agarrou-o pelo pescoço,
suspendendo-o no ar e depois o arremessou à distância, fazendo-o estatelar-se
no chão. Antes que o atordoado homem pudesse se levantar, a besta fechou suas
garras poderosas em torno do seu tornozelo direito e saiu arrastando-o na
direção do portão da propriedade que, naquele instante, já começava a ceder sob
as pancadas da criatura que o golpeava com violência pelo lado de fora.
Sem
largar a perna de Juvenal, que gritava em desespero, o lobisomem que o segurava
ajudou a atacar o portão, de forma que dentro de poucos instantes a robusta
estrutura não resistiu às avarias e tombou sob o impacto dos golpes. O luar
iluminou então o tétrico momento em que os dois monstros ficaram frente a frente,
entreolharam-se com afeição e depois voltaram suas atenções para o apavorado
homem que ali se encontrava, a mercê de sua fúria voraz.
A
partir de então as bucólicas paisagens noturnas dos pampas gaúchos foram
invadidas por uma bizarra e intensa sinfonia de gritos e uivos que ecoaram para
além das árvores seculares e campos de pastos verdejantes, chegaram até as
propriedades vizinhas e ajudaram a alimentar os boatos sobre pessoas que se
transformavam em lobisomens e vagavam por entre as sombras atacando incautos
nas noites de lua cheia.
* Conto publicado originalmente no livro Amor Lobo - Crônicas de Amor, Sangue e Lobisomens, de 2013.