Por André Bozzetto Junior
Apesar
da noite agradável, com temperatura amena e uma bela lua cheia contribuindo
para o tom idílico e romântico da data comemorativa, Cássio não andava nada
satisfeito. Fazia mais de uma hora que ele estava em companhia de Vanessa, com
o carro estacionado naquele local ermo e deserto, mas nada havia acontecido. No
seu entendimento, estava fazendo tudo certo: já tinha levado a moça ao cinema,
à danceteria, à pizzaria e até já tinha conhecido os pais dela. Naquela semana,
inclusive, lhe comprou um presente de Dia dos Namorados que havia custado
caríssimo. Tão caro que com aquele dinheiro daria para comprar várias e várias
cervejas. Mas nada parecia dobrar a resistência da moça. Quando Cássio
estacionou ali – em uma área popularmente conhecida entre os jovens por ser
propícia a encontros mais íntimos – a
garota pareceu ficar ainda mais resoluta em resistir às investidas do rapaz.
–
Você anda muito chata! – esbravejou Cássio, sentido sua paciência se esgotar.
Um segundo depois, o rapaz já estava do lado de fora do carro, andando em
direção à mata circundante.
–
Aonde você vai?! – perguntou Vanessa, intrigada.
–
Vou mijar! – respondeu o rapaz, com rispidez.
–
Cássio, você está bravo? – inquiriu a moça, em tom manhoso – Eu acho que você
está sendo muito apressado.
“E
você está sendo insuportavelmente teimosa!”, pensou o rapaz, sem coragem de
proferir as palavras.
Cássio
já se preparava para voltar ao carro, tentando idealizar uma última e
desesperada estratégia de persuasão, quando sua atenção voltou-se para algo
estranho vislumbrado quase ao acaso em meio à mata. Era alguma coisa grande e
esbranquiçada, estendida junto às folhas secas debaixo das árvores. Fustigado
pela curiosidade e não sem uma ponta de receio, o rapaz andou lentamente na
direção da coisa.
–
Cássio! Onde você está indo?! – voltou a indagar Vanessa, desta vez
demonstrando uma leve irritação.
Contudo,
o rapaz nada respondeu, pois nem sequer a ouviu. Todas as suas atenções estavam
voltadas para o pálido cadáver deitado no chão diante de si, completamente nu.
Era um homem, de idade indefinível, e que – a julgar pelas lacerações e pela
quantidade de sangue ressecado que trazia aderido ao corpo – aparentava ter
tido uma morte violenta. A impactante visão fez com que Cássio perdesse a
postura de machão que costumava
emular com tanto afinco, de forma que não tardou para que ele corresse
apavoradamente de volta ao carro.
–
O que aconteceu?! – perguntou Vanessa, assustada com a fisionomia transtornada
do rapaz.
–
Tem um cara morto ali no mato!
–
O quê?!
–
Tem um cara morto ali no mato! – repetiu Cássio, dando partida no veículo e
acelerando fundo.
O
rapaz estava tão assustado que nem cogitou manobrar o carro para retornar à
cidade pelo mesmo caminho que viera. Optou por seguir através de um acesso
paralelo, para onde o veículo já se encontrava direcionado. Ainda nos primeiros
metros do trajeto a namorada enchia-o de perguntas, mas ele não respondia a
nenhuma, impressionado que estava com a cena bizarra que não lhe saía da cabeça,
a imagem de um misterioso cadáver ensanguentado tetricamente iluminado pelo
luar.
A
cena sinistra só esvaneceu-se de sua mente no momento em que foi substituída
por outra não menos inesperada e insólita: uma viatura da polícia militar
estava estacionada na beira do estreito caminho de terra, poucos metros à sua
frente. Vanessa falava e gesticulava freneticamente enquanto Cássio diminuía a
velocidade do carro ao se aproximar, de forma que pode ver perfeitamente o
momento em que um policial desembarcou da viatura e deu dois passos para o meio
da estrada, sinalizando para que estacionassem.
Mal
o carro havia parado e Cássio já baixou o vidro e se dirigiu ao policial de
maneira afobada:
–
Seu Guarda! O senhor apareceu na hora certa! Nós estávamos lá em cima na
clareira quando eu encontrei um cad...
–
Saiam do carro! – interrompeu rispidamente o policial.
–
Sim! Mas acontece que...
–
Saiam do carro! – repetiu o policial, em tom ameaçador.
Cássio
e Vanessa entreolharam-se, intrigados. Saíram então do carro em silêncio e
fitaram o semblante do oficial com desconfiança. Ele devia ter sido admitido na
força militar muito recentemente, pois era bastante jovem. Provavelmente tão
jovem quanto o próprio casal de namorados.
–
Virem-se de costas e coloquem as mãos na lateral do carro! – ordenou o policial
– Vou revistá-los!
–
Mas, Seu Guarda! – protestou Cássio – Eu estou tentando lhe dizer que...
–
Cale a boca, seu maconheiro! Vai fazer o que eu digo ou precisarei algemá-lo?!
–
Ora! O que é isso?! – exclamou Vanessa – O senhor não pode nos tratar assim!
–
Fique quieta, sua piranha! Só me dirija a palavra quando eu lhe perguntar
alguma coisa!
Vanessa
deixou escapar um gemido que denotava espanto e indignação. No instante
seguinte já estava se aproximando do militar com o dedo em riste.
–
Escute aqui, Seu Guarda! Você não tem o direito de...
A
moça não conseguiu completar a frase, pois o policial atingiu-a com uma
bofetada no rosto com força suficiente para fazê-la cair sentada na estrada
empoeirada. Indignado, Cássio tentou intervir, mas mal havia se movido e
deparou-se com o cano do revólver do militar apontado para a sua cabeça.
–
Nem pense em bancar o machão, ou estouro a sua cara aqui mesmo! – vociferou o
oficial – Encoste-se no carro! Agora!
Sem
alternativas, o rapaz apoiou as mãos no veículo e o policial passou a
revistá-lo de forma rude. Vanessa permanecia sentada no chão, com as mãos
cobrindo o rosto enquanto soluçava.
–
Vocês estavam fazendo sacanagem lá em
cima, não é mesmo? – provocou o oficial, em tom de deboche – Agora eu vou
revistar essa safada! Garanto que ela adora sentir as mãos fortes de um homem
apalpando seu corpo!
–
Seu Guarda... – disse Cássio, com um fiapo de voz que era quase uma súplica – O
senhor precisa acreditar... Tem um cadáver lá em cima, na clareira.
–
Eu sei! – respondeu o militar, andando lentamente na direção de Vanessa com um
sorriso malicioso nos lábios – Eu estive lá antes de vocês aparecerem.
A
moça, que já estava um tanto assustada, sentiu-se invadida pelo mais opressivo
pavor. Tirou as mãos do rosto e, por estar sentada, fitou diretamente as pernas
do policial que se aproximava. Julgou que sua mente estava vacilando quando se
deu conta que ele estava de pés descalços e com a barra das calças dobradas. A
situação ali estava ainda mais bizarra e assustadora do que lhe pareceu
inicialmente. Algo estava terrivelmente errado.
–
Ora, sua quenguinha! – exclamou o militar, com ironia – Você está com essa cara
por causa dos meus pés?! Mas o que eu posso fazer se o dono dessa farda usava
outro número?! – Vocês viram ele lá em cima na clareira?! Meu Deus! O sujeito
devia calçar 44 ou mais!
Mesmo
sem a completa compreensão da situação, Cássio percebeu que precisava fazer
algo antes tudo ficasse pior. Aquele sujeito não era policial coisa nenhuma!
Procurando
ser o mais rápido possível, o rapaz projetou-se na direção do falso militar e
tentou imobilizá-lo com uma gravata. Porém, o impostou desvencilhou-se com
facilidade e atingiu Cássio com um violento golpe desferido com a coronha do
revólver, fazendo-o cair por terra com a testa sangrando.
–
Seu babaca! – vociferou o falso policial, guardando a arma no coldre – Nem vale
a pena gastar balas com um verme feito você!
Diante
dos olhos atônitos de Vanessa, que gritava estridentemente, o impostor sacou o
cassetete do cinturão, aproximou-se do corpo semiconsciente de Cássio e –
demonstrando frieza e brutalidade – espatifou-lhe o crânio com uma saraivada de
golpes extremamente violentos.
Quando
o vigor das pancadas fez com que o cassetete se partisse, o falso policial
voltou então suas atenções para Vanessa. A moça notou um brilho rubro e inumano
em seu olhar, e com isso passou a gritar de forma ainda mais desesperada.
–
Pare de gritar e poupe suas energias! – disse o impostor, despindo a farda – Cansei
de brincar de policial! Com você a brincadeira será diferente!
Vanessa
percebeu que o corpo do sujeito estava coberto por uma camada de pelos negros e
disformes que pareciam se multiplicar em uma velocidade espantosa. Garras
afiadas afloravam de seus dedos e presas pontiagudas emergiam de sua boca.
–
Levante-se e corra! – ordenou o indivíduo, com voz gutural – Quando eu estiver pronto irei procurá-la! Nesta data tão
especial, você será a minha namoradinha! Ha, ha, ha!
Impulsionada
pelo pânico, Vanessa partiu, correndo da forma mais veloz que suas pernas lhe
permitiam. Em meio à fuga, sua mente abalada trouxe à tona a ideia de que, se
fosse possível voltar no tempo, ela deixaria Cássio tocá-la, despi-la e amá-la
no aconchego do carro estacionado lá no alto da clareira, e isso seria
maravilhoso. Contudo, o uivo horripilante que ecoou às suas costas trouxe-a de
volta à desoladora realidade. A besta estava pronta para a caçada.