Por André Bozzetto Junior
Pelas informações
que eu tenho, quem primeiro se deu conta da chegada deles foram as crianças que jogavam futebol no campo localizado na
entrada do antigo parque que anteriormente era conhecido como IBDF. Um dos
garotos me contou que todos ficaram surpresos quando nuvens escuras e sinistras
surgiram do nada, transformando o fim de tarde nublado e ameno em um ambiente
caracterizado por tons enegrecidos e sombrios, semelhantes àqueles que
antecedem as tempestades mais avassaladoras. Em seguida veio o estrondo, tão
descomunal quanto aterrador, que fez a terra tremer de forma muito breve, mas
tão intensa que nenhum dos meninos conseguiu se manter em pé naquele instante.
Tão
logo cessou o terremoto, a maior parte das crianças se levantou e correu
chorando para suas casas, decerto antevendo o horror que estava por vir. Os
dois ou três que permaneceram no local viram a coluna de fumaça de coloração
indefinida que emergiu do meio das árvores, no interior do parque. Foi nesse
mesmo instante que sentiram pela primeira vez o fedor. Sim, esse mesmo fedor
nauseante e insuportável que agora nos obriga a improvisar máscaras amarrando
camisas em nossos próprios rostos para tentar não desmaiar e nem vomitar
perante tamanha repulsa. Eu lembro que estava saindo da barbearia, ainda
atordoado pelo breve tremor de terra, quando todas as pessoas que estavam na
rua começaram a ser fustigadas pelo odor podre e asqueroso que emanava sabe-se
lá de onde. Uma mulher vomitou bem na minha frente; uma senhora idosa caiu ao
chão levando as mãos ao rosto, e muita gente correu para o interior das casas e
lojas, fechando as portas e janelas no intuito de amenizar aquela sensação
horrível que beirava os limites da tolerância. Eu mesmo senti fortes náuseas e
precisei me escorar na porta da barbearia para recuperar o fôlego. “O que é
isso, professor?! De onde vem esse cheiro nojento?!”, perguntou-me um ex-aluno
que ia passando na calçada naquele momento. Respondi que não sabia, mas
intimamente supus que teria algo a ver com aquela fumaça de estranha coloração
que surgia por detrás das casas que ficavam ao redor do parque.
Mas
deixe-me voltar ao relato das crianças. Por algum motivo que não sei explicar,
o terremoto parece não ter assustado a todos na mesma proporção. Digo isso
porque nem ele, nem o fedor alucinante e nem a escuridão repentina foram
capazes de refrear a curiosidade dos meninos que permaneceram no parque, de
forma que eles decidiram andar até o lugar de onde vinha a fumaça para ver do
que se tratava. Márcio, o garoto que me contou essa história, disse que a
fumaça vinha de uma rachadura – na verdade um verdadeiro abismo – que se abriu
em uma parte do parque onde a vegetação é bastante densa. Dessa abertura também
vinha uma série aterradora de ruídos de todas as formas bizarras e imagináveis,
de tal forma que eles logo se convenceram de que estavam diante de uma das
portas do inferno. Foi nesse momento que os meninos valentões decidiram imitar
os companheiros de futebol e correr para suas casas.
Márcio
me contou também que, em dado momento, olhou para trás e avistou uma grande
quantidade de criaturas horrendas e indescritíveis emergindo do abismo. Segundo
ele, essas criaturas se assemelhavam apenas muito vagamente a algo similar à
anatomia humana, e o pavor que essa visão lhe provocou foi tão forte que ainda
a pouco, ao me fazer esse relato, ele caiu no choro de forma compulsiva e
desesperada.
Creio
que neste mesmo instante, eu ainda estava na barbearia, junto com mais um grupo
de quatro ou cinco pessoas que tentava entender o que, de fato, estava
acontecendo. Então começamos a ouvir os barulhos. Eram sons muito altos,
disformes, desconexos e apavorantes, para dizer o mínimo. No meio desses sons
também era possível se ouvir gritos de dor e angústia que vinham das áreas
circundantes ao parque. As pessoas começaram a sair para as ruas, improvisando
máscaras para suportar o fedor, e olhavam com um misto de medo e curiosidade naquela
direção. Logo, alguns indivíduos apareceram dobrando a esquina, duas quadras à
frente, correndo e gritando de forma desesperada. Foi então que todos viram que
havia coisas no encalço deles. Em
função da distância, não pude distinguir muito bem o que era – e naquele
momento até fui grato por isso – mas não foi preciso muito esforço para compreender
que não se tratava de nada que já tivéssemos visto anteriormente andando sobre
a face da Terra.
O
instinto de defesa das pessoas então começou a falar mais alto e muitos
correram de volta para dentro de suas casas e lojas e passaram a trancar tudo
de forma apressada. Alguns embarcaram em seus carros e partiram em disparada no
sentindo contrário de onde vinham as criaturas. Outros, na falta de melhores
alternativas, se desataram a fugir a pé, chorando e gritando, em pânico. Por fim,
permaneceu na rua um grupo de não mais do que seis ou sete pessoas – entre as
quais se encontravam o menino Márcio e eu – que simplesmente estavam surpresas
e chocadas demais para reagir de forma coerente diante de tanto pavor. Foi
então que apareceu o velho Michel, gritando e gesticulando de forma frenética:
–
Eu avisei! Eu avisei que eles viriam!
Agora corram, corram inutilmente para tentar salvar suas vidas medíocres, seus
estúpidos!
O
velho Michel era um professor de História que lecionou durante décadas na única
escola estadual da cidade. Há cerca de dez anos atrás, ele realizou o sonho de
conhecer o Oriente Médio, mas voltou de lá completamente insano, desempenhando
o papel de uma espécie de profeta do apocalipse, anunciando a chegada iminente
de demônios abissais. Só falava nisso, dia e noite. Acabou sendo afastado da
escola e aposentado por invalidez. A partir de então, passou a dividir o seu
tempo entre pregações solitárias na praça da cidade e os preparativos para o “início
do fim”. Consternado, percebi que, afinal ele tinha razão. De alguma forma, ele
realmente sabia da verdade.
–
Senhor Michel, nos ajude! – implorei – O que devemos fazer?
–
Eu devia deixá-los serem estuprados e esquartejados pelos demônios... – disse o
velho, com indisfarçável rancor – Mas se eu fizesse isso não estaria usando de forma
adequada o meu conhecimento. Venham, seus idiotas! Vamos para a minha casa!
Depressa, antes que eles cheguem!
Corremos
o mais rapidamente que conseguimos. Além do velho Michel e de mim, mais cinco
pessoas nos acompanharam. Na medida em que nos aproximávamos da casa do ancião
– que ficava apenas há duas quadras de distância – ouvíamos a sinfonia de
horror que ressoava às nossas costas de forma cada vez mais intensa. Agora,
além dos sons aterradores emitidos pelos próprios demônios e dos gritos
agonizantes de suas vítimas, também eram audíveis os barulhos provenientes das
portas e paredes das casas e prédios sendo arrombadas e mandadas ao chão. Mas
havia também um outro som. Eram risadas. Gargalhadas, na verdade. Sim, várias
gargalhadas humanas, que soavam aos meus ouvidos de forma tão surpreendente
quando insana. Intrigado, não resisti e olhei para trás, e o que vi fez com que
cada molécula do meu corpo gelasse de espanto.
Completamente
nus, homens e mulheres – velhos, em sua maioria – corriam pela rua saltitando e
movendo os braços de forma frenética, como se estivessem saudando os demônios
recém chegados. “Até que enfim! Até que enfim chegou o dia!” gritavam alguns
deles. Os demônios, por sua vez, agarravam esses insanos indivíduos e os
destroçavam de forma brutal, bizarra e espalhafatosa, fazendo o sangue jorrar e
os pedaços dos corpos mutilados voarem pelos ares.
Os
demônios! Ah, os demônios! Nem que eu ficasse aqui durante horas conseguiria
descrevê-los! Limito-me a dizer que eram muitos, certamente milhares, e que
possuíam as mais diversas formas e tamanhos, mas todos igualmente horrendos e
repulsivos.
Chegamos
então na residência do velho Michel. Uma casa que já fora sólida e bela no
passado, mas que agora era a imagem do desleixo e da decadência. Quando
entramos, fui tomado pela surpresa ao ver que cada centímetro de cada parede
estava completamente recoberto por símbolos e escrituras que me pareceram
similares a hieróglifos, embora me fossem de origem desconhecida. Ao perceber
minha admiração, o velho Michel falou:
–
Esses símbolos têm a função de nos proteger! Os demônios não poderão entrar
aqui!
Em
seguida, o ancião acenou para que o acompanhássemos através de uma escada
interna que levava ao porão. Ele ligou o interruptor e, com a claridade,
pudemos ver que o espaço estava abarrotado de todo o tipo de coisas.
–
Há muitos suprimentos aqui! – disse o velho Michel – poderemos resistir por
bastante tempo sem precisar sair!
Com
um gesto teatral, o ex-professor puxou um lençol que cobria uma mesa e revelou
o arsenal que ali se encontrava, cuidadosamente organizado. Eram punhais,
facões, revólveres, rifles e espingardas. Armas aparentemente normais, mas
recobertas por símbolos similares àqueles que haviam nas paredes, pintados com
tinta branca.
–
Armamentos comuns não surtiriam efeito contra os demônios... – disse o velho
Michel – mas, graças a estes símbolos sagrados, poderemos utilizar essas
“belezinhas” aqui para detonar alguns daqueles bastardos quando for preciso!
–
Ótimo! E o que você sugere?! – exclamou o padeiro, de forma tão irritada quanto
irônica – Que a gente saia para a rua atirando naquelas coisas?!
–
Oh, não! – respondeu o ancião – Além de não termos munição suficiente para
todos, isso também não resolveria nosso problema, uma vez que esses seres que
estão lá fora são apenas os batedores, aqueles que vêm para abrir caminho. O verdadeiro demônio anda não apareceu.
–
Como assim?! – indaguei perplexamente – Quer dizer que ainda há algo pior do isso?!
–
Sim! – afirmou o velho – Tudo isso é a preparação para a chegada de Ilonomanok, o demônio gigante profanador
de mentes, devorador de corpos e estuprador de almas! Este mundo agora pertence
a ele!
–
Meu Deus! E o que vamos fazer?! – questionou Roberto, um vendedor de carros
usados que também nos acompanhou até a casa do ex-professor.
–
Vamos fazer a única coisa que nos resta: tentar permanecer vivos pelo máximo de
tempo possível... – respondeu o senhor Michel, de forma sombria.
Consternados
pelas palavras do velho, todos se calaram. Porém, apenas por alguns breves
instantes. A barulheira perturbadora e angustiante que vinha do lado de fora da
casa nos fez compreender que seria melhor conversarmos sobre qualquer assunto
do que nos dedicarmos a ouvir a sinfonia infernal que se desenrolava na rua.
Foi nesse momento que eu pedi para o menino Márcio me contar o que ele sabia
sobre o início da história. Eu também pretendia perguntar para o velho Michel
como foi que ele ficou a par da iminente ocorrência desse acontecimento
hediondo, mas não foi possível, pois um novo terremoto tomou de assalto a
atenção de todos. Na verdade, não foi um terremoto, mas sim uma sucessão de
tremores de terra de intensidade mediana, intercalados por alguns poucos
segundos de intervalo entre eles. Esses tremores eram tão regulares e
cadenciados que logo me passaram a impressão de serem... passos! Sim, passos de algo gigantesco, imenso, pesando centenas de
toneladas.
Na
medida em que os tremores se tornavam mais intensos e mais próximos, o fedor
que impregnava o ar de maneira hostil se tornava ainda mais exacerbado, de
forma que não foi difícil deduzir que aquele aroma pestilento era exalado da
própria coisa que se aproximava. Na
rua, os gritos de terror também aumentavam de intensidade.
–
Estão ouvindo?! É Ilonomanok... –
disse o velho Michel – Ele já caminha entre nós...
* Conto publicado originalmente em 2010, na antologia intitulada 2012, editada pela Ravens House Brasil.