9 de jan. de 2023

O RELATOR DA NOITE - ENSAIO Nº 02: SOBRE A ATUALIDADE INFESTADA POR DEMÔNIOS


 

Por O Relator da Noite

 

            No ensaio anterior, abordamos a argumentação de diferentes autores, oriundos de diversas vertentes ocultistas, acerca do entendimento que nos parece mais adequado para tratar daquilo que designamos como “demônios”. Recomendo a leitura daquele texto antes deste, mas, para fins de recapitulação, penso ser útil retomar a noção de que, nos meus escritos, os demônios não são espíritos de pessoas mortas, mas sim formas-pensamento emanadas por consciências que habitaram nosso planeta [ainda que de forma etérica] desde antes do surgimento dos seres humanos encarnados e que, por isso mesmo, não foram compostas por mero substrato psíquico análogo ao que abunda na psicosfera terrestre atual, mas sim por energias primordiais que, como tal, são eternas e intrínsecas àquilo que chamamos de realidade.

            Por serem anteriores à própria humanidade, essas formas-pensamento encontraram caminho para interagir com as pessoas de maneira mais ou menos padronizada através daquilo que costumamos perceber e classificar como emoções. Assim, os demônios se manifestam através das emoções negativas [destrutivas, autodestrutivas, que vão contra à evolução harmônica da natureza, em sentido físico e metafísico]. Para Franz Hartmann, esses seres são as próprias emoções [que, no aspecto benéfico, seriam classificadas como “anjos”]. O mesmo autor frisa que essas criaturas “não são necessariamente entidades racionais conscientes, mas podem manifestar-se por meio de organismos conscientes dotados de razão; não são pessoas, mas personificam-se sempre que encontram expressão em formas individualizadas”, pois “amor e ódio, inveja e beneplácito, luxúria e ganância não são pessoas, mas personificam-se em formas humanas ou animais”, de tal forma que “uma pessoa extremamente maliciosa torna-se a própria encarnação da malícia”.

            Uma vez que as emoções sempre fizeram parte da constituição humana tal como a conhecemos, se deduz que a interação entre pessoas e demônios sempre existiu, ainda que as formas de se interagir e o entendimento acerca delas possam ter variado enormemente ao longo do tempo e de acordo com o momento cultural de diferentes sociedades. Demônios, anjos, elementais, deuses bons ou maus, as designações parecem quase infinitas nos mais variados idiomas, muitas vezes com termos diferentes para classificar as mesmas entidades, ou usando as mesmas expressões para elencar seres completamente diferentes, o que se constitui em um sério problema semântico e ontológico. Contudo, ajustando adequadamente o foco da pesquisa [o que se constitui em uma verdadeira ordália para qualquer estudante sério de Ocultismo em início de caminhada] é possível encontrar as correlações.

            Em Magic: White and Black, Hartmann exemplifica tais correspondências afirmando que “as potências elementares da natureza são numerosas e deram nascimento ao panteão dos gregos e das mitologias orientais”, e continua, afirmando que “o Cristianismo [por exemplo] moderno não destruiu os deuses olímpicos, mas apenas as formas que os representavam, pois estas constituíam representações alegóricas de forças eternas, que não podem ser eliminadas. “As leis da natureza ainda são hoje as mesmas do tempo de Tibério; o Cristianismo só alterou seus símbolos; passou a chamar coisas velhas por novos nomes. Os ídolos pagãos mortos ressuscitaram na forma de santos católicos romanos”. Suponho que Jung diria que estamos falando aqui de “forças arquetípicas do Inconsciente Coletivo”. Dilemas de linguagem, mais uma vez.

            O fato é que os demônios estão por aí desde sempre, atuando sobre nós para além de tempos imemoriais. Os motivos para isso só podemos especular. Talvez seja para nos induzir à ação, corroborar com o aspecto destrutivo [porém, necessário] da natureza, mas que, seja pela nossa imaturidade consciencial ou pelo mau uso de nosso livre-arbítrio, acabam se manifestando como forças desequilibradas ou propriamente maléficas [no sentido de “desarmônicas”].

            Ao mesmo tempo em que instigam nossa faceta emocional, os demônios se retroalimentam da energia psíquica impregnada pelas emoções correspondentes emanadas pelas nossas próprias consciências encarnadas. Esse intercâmbio fluídico que se mantém incessantemente ao longo das eras, tem gerado, no Plano Astral, verdadeiras dimensões energéticas, habitadas não apenas pelos demônios mas também pelos espíritos humanos que, por afinidade, são atraídos para lá depois do desencarne, por se encontrarem no mesmo padrão vibratório. Na Kabbalah essas dimensões costumam ser designadas como Qliphoth e sobre elas Migene González-Wippler afirma na obra Jesus e a Cabala Mística que “ali encontram-se cada sentimento negativo do coração humano, cada vício, cada crime e cada fraqueza personificados num demônio que se torna o algoz dos que se deixam levar por essas imperfeições”, sendo, “portanto, a causa e também o efeito de todos os pensamentos e atos maus”. Em seu livro Qabalah, Qliphoth e Magia Goética, Thomas Karlsson faz uma inferência semelhante ao afirmar que as Qliphoth “são ocupadas por aqueles demônios que representam os vícios humanos encarnados, e torturam àqueles que têm se entregado a tais vícios na vida terrena”.

            Conforme já citado no ensaio anterior, essa visão dos demônios das Qliphoth sendo personificações de vícios e más tendências corriqueiras aos seres humanos os colocam em um paralelo análogo aos Demônios dos Sete Pecados Capitais, dos Vícios personificados e combatidos pela Maçonaria, e uma vasta gama de outras possíveis correspondências. São as emoções negativas manifestadas pelas pessoas cotidianamente, através de uma gradação quase infinita de formas e intensidade, podendo ser desde um reles desconforto subjetivo até um estado de ânimo que descamba para a autodestruição, ou ainda que induz à crueldade, violência e destruição contra terceiros.

            Então chegamos ao ponto central deste texto: a perturbadora constatação de que aquilo que podemos chamar de “realidade consensual atual” está infestada por demônios em seus mais variados níveis estruturais, como nunca antes esteve na trajetória da humanidade. Os vícios e as maleficentes deformações da conduta cotidiana que incrustam a sociedade contemporânea estão aí para comprovar.

            Sou capaz de supor que alguns leitores estejam inicialmente propensos a discordar dessa afirmação. Talvez estejam pensando em todos os horrores que já marcaram a trajetória humana até aqui e deduzam que muitos momentos do passado foram mais do que propícios para que os demônios assolassem a humanidade com toda sorte de más emoções e que dela extraíssem energia psíquica negativa mais do que suficiente para se nutrir e perpetuar sua ação. É possível que estejam lembrando que logo ali atrás, no “breve século XX” tivemos duas guerras mundiais, Guerra Fria, epidemias, cataclismos de grande envergadura e ditaduras cruéis e assassinas nos quatro cantos do planeta. E se recuarmos um pouco mais? E as brutalidades do Imperialismo? E os genocídios da “Era dos Descobrimentos”? E a Inquisição? E as Cruzadas? E as contendas feudais, as disputas regionais, os conflitos tribais...? E a mácula [por milênios onipresente nas mais diversas sociedades] da escravidão? Sem dúvida, em todos esses contextos a realidade há de ter sido mais do que propícia à infestação demoníaca. Contudo, precisamos fazer algumas ponderações.

        Primeiramente, devemos observar que, em qualquer um dos momentos históricos citados acima à guisa de exemplo, a população mundial era bem menor do que a atual. Além disso, esses foram contextos que provocaram milhares [ou mesmo milhões] de mortes no seu decorrer. A consequência disso podemos ilustrar de forma análoga a um vírus causador de uma grande epidemia. Se todos os infectados morrem, o micro-organismo fica sem hospedeiros para se propagar, ainda que essa imobilidade possa ser apenas temporária. Semelhantemente, quanto menos população houver em um determinado lugar, menos veículos para manifestação um demônio vai ter e, consequentemente, menos energia para se nutrir. Em Magic: White and Black, Franz Hartmann argumenta que uma força anímica [como, por exemplo, o demônio da Inveja] perderia sua capacidade de interagir no mundo físico pela ausência de hospedeiros, caso todas as pessoas do planeta morressem, mas ele não deixaria de existir. Apenas ficaria latente, restrito ao Plano Astral, até que surgisse algum outro tipo de ser material que fosse receptivo à sua atuação.

            A conclusão desse raciocínio não é difícil de inferir. Graças a desdobramentos como o avanço da Medicina, a maior disponibilidade de alimentos, as melhoras nas condições de saneamento básico e higiene, entre outros fatores [que infelizmente não abrangem todas as áreas do globo] tivemos um acelerado crescimento populacional nas últimas décadas [a ponto de preocupar alguns teóricos] e, neste início de 2023, já somos mais de 8 bilhões de terráqueos. Ou seja, nunca houve tanta disponibilidade de veículos para a manifestação demoníaca como agora. Mas, será que as condições são propícias? No meu entendimento, está muito claro que sim. Com mais indivíduos para contaminar e, consequentemente, mais energia psíquica deletéria para se nutrir [ainda que, inicialmente, sua concentração possa estar em áreas restritas], mais o demônio se fortalece no Plano Astral, maior fica a Qliphah a qual ele pertence e, assim, se expande seu poder de atuação.

            Aqui no Plano Físico o aspecto dual daquilo que chamamos de “evolução” também faz a sua parte. Refletindo rapidamente sobre os dispositivos tecnológicos [peguemos apenas os telefones celulares e a internet, por exemplo], é muito claro até para crianças [que muitas vezes se tornam vítimas do lado maléfico desse contexto] que eles tornaram a nossa vida muito mais fácil e eficiente em inumeráveis âmbitos, que vão desde a atuação profissional ao mero entretenimento. Contudo, alguém poderia negar que a realidade conectada e esses dispositivos também facilitou enormemente a difusão de conteúdos que instigam a cobiça, a vaidade, a luxúria, o consumismo, a inveja, o ódio e tantos outros elementos que são ao mesmo tempo as armas e a matéria-prima constituinte dos demônios? É claro que celulares e computadores são apenas ferramentas, e as pessoas determinaram se eles vão desempenhar funções úteis ou inúteis, seguras ou perigosas, benéficas ou maléficas. Mas, no atual estado de consciência da maioria da população, quais opções você acredita que são predominantes? Olhe ao redor e tire suas conclusões. Tenho certeza que não será difícil.

            Vamos agora tratar de um exemplo fácil e, por isso mesmo, preocupante. O consumo excessivo de bebidas alcoólicas e seus desdobramentos. Vejamos o que Franz Hartmann escreveu sobre o assunto já em 1886, ano em que Magic: White and Black foi publicado: “É inquestionável que não existe no mundo paixão mais diabólica e perniciosa aos interesses verdadeiros da humanidade e à felicidade individual do que o alcoolismo. [...] Além de causar uma longa lista de enfermidades nos órgãos internos e conduzir à morte prematura, são a causa majoritária dos crimes cometidos nos países civilizados. Para aqueles que encaram o homem como um ser racional, parece incompreensível que nações ditas civilizadas ajudem a sustentar um mal que abarrota suas penitenciárias, hospitais, sanatórios, hospícios e sepulturas”. Não pesquisei dados sobre o consumo de álcool na Europa do final do século XIX [nem sei se existem], mas seria capaz de apostar que aumentou enormemente de lá até os dias atuais.

            Para levar o tema adiante, vamos focar no Brasil, por condizer à nossa realidade imediata e pela maior facilidade de acesso a estatísticas. Por falar em estatísticas aproveito para esclarecer que, obviamente, vou citar as fontes dos dados apresentados, mas não irei colar links, tanto por buscar a praticidade quanto visando não poluir o texto. Quem quiser saber mais à respeito, ou confirmar a veracidade das informações, se for o caso, pode consultar os Registros Akáshicos, atualmente mais conhecidos pela sua versão digital sob o nome de “Google”.

            No site da Universidade Federal do Espírito Santo há um texto intitulado “Consumo de álcool no Brasil é superior à média mundial, diz OMS” onde, citando como fonte uma matéria publicada no Jornal Estadão em 2014, menciona que em 1985, o consumo anual per capita de álcool do brasileiro não chegava a 4 litros. Em contrapartida, o Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo publicou no seu portal na internet em 21/02/2022 um artigo com o título “Pandemia eleva consumo de bebida alcoólica no mundo; Brasileiro supera marca mundial” onde apresenta dados recém-divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) dando que atualmente o consumo anual per capita de álcool no Brasil é de 8 litros, enquanto a média mundial é de 6,4 litros. O texto também informa que nas Américas morrem anualmente cerca de 300 mil pessoas por razões ligadas ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

            E não para por aí. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig), e divulgada em diversos veículos midiáticos em dezembro de 2021, mostra que 55% da população brasileira tem o hábito de consumir bebidas alcoólicas, sendo que 17,2% delas declararam aumento do consumo durante a pandemia de Covid-19, associado a quadros de ansiedade graves por conta do isolamento social. De acordo com o levantamento, uma em cada três pessoas no país consome álcool pelo menos uma vez na semana. O consumo abusivo de bebidas alcoólicas foi relatado por 18,8% dos brasileiros ouvidos na pesquisa. O resultado nos mostra que a população tem um consumo importante de álcool, com frequência e numa quantidade significativa a cada ocasião.  Outra manchete alarmante: “Consumo de bebidas alcoólicas cresce 93,9% na quarentena”, publicada no Portal PebMed, referente à matéria que aborda dados da OMS divulgados em fevereiro de 2021. As fontes são muitas e bem fáceis de encontrar.

            Veja só, caro leitor, eu espero que você não tome esta abordagem como mero moralismo gratuito. Eu realmente acredito na lógica do livre-arbítrio e, quer a gente goste disso ou não, a Natureza [o Cosmos, Deus, ou como queira chamar a estrutura causal da realidade] se encarrega de fazer com que cada ação tenha a sua reação proporcional. Só que, quanto mais informações tivermos, [pelo menos em tese] maior será a nossa capacidade de analisar e refletir sobre nossas atitudes e, quiçá, fazermos delas fontes de consequências que nos sejam mais favoráveis. Se você bebe excessivamente e prejudica apenas a si próprio, eu não tenho mais nada a dizer. Apesar de lamentar, entendo que você está exercendo seu livre-arbítrio e o problema é seu. Agora, se depois de encher a cara você prejudica outras pessoas, então o problema não é apenas seu. Esse é o ponto. O problema não é beber, mas sim o que você faz depois de estar bêbado. No Evangelho Apócrifo de Tomé, Jesus diz: “o que entra pela boca não o torna um homem impuro, mas sim o que sai da boca, isto vos tornará impuros”. Poucos versículos depois, o Cristo adverte: “Agora estão bêbados, e só se converterão se abandonarem o seu vinho”. Perceba que a repreensão é contra a embriaguez, o excesso.

            No capítulo destinado às Qliphoth, em A Cabala Mística, Dion Fortune bate muito nessa tecla, de que os excessos nas atitudes humanas é que constituem “o Mal positivo e dinâmico” que fortalece os demônios. Migene González-Wippler reforça esse entendimento em Jesus e a Cabala Mística, ao propor que a influência das Qliphoth e seus respectivos demônios “está diretamente relacionada com excessos de qualquer espécie”, e exemplifica afirmando que “assim, um excesso de amor gera ciúmes e possessividade, um excesso de desejo sexual produz luxúria, um excesso de ambição material dá origem à avareza, até que toda a variedade de qualidades e inspirações humanas é degradada e aviltada”.

            E as consequências desse processo? Algumas são bem diretas e claras, como a violência no trânsito. Um levantamento realizado pelo Laboratório de Toxicologia Forense, da Polícia Civil do Espírito Santo, revelou que 48% das vítimas fatais de acidentes de trânsito no estado em 2020 estavam sob o efeito de drogas, majoritariamente, álcool. Estou citando o exemplo do Espírito Santo porque os dados estão aqui, mais ao alcance da mão, mas, uma rápida pesquisa revela que na maioria dos demais Estados brasileiros as estatísticas são semelhantes ou ainda piores. Poderíamos também falar sobre violência doméstica. Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizado com sete mil famílias em 108 cidades do Brasil, comprova que o álcool funciona como "combustível" da violência doméstica. E a violência impulsionada pela bebida alcoólica persiste, na maioria das vezes, por mais de dez anos. O estudo aponta que a gravidade das agressões é maior quando há ingestão de bebida. O uso de armas e o abuso sexual, tanto ameaça quanto consumação, ocorreram, respectivamente, numa proporção dez e quatro vezes maior, quando comparados aos domicílios nos quais o agressor não estava sob efeito do álcool.

            Se a situação piorou com a pandemia de COVID-19, é fato que a relação entre álcool e violência em geral não se configura em novidade no Brasil. Ainda em 2005 os pesquisadores Ronaldo Laranjeira, Sérgio Marfiglia Duailibi e Ilana Pinsky da Unidade de Pesquisa em Álcool e outras Drogas (UNIAD) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) publicaram um artigo onde consta que “estatísticas internacionais apontam que em cerca de 15% a 66% de todos os homicídios e agressões sérias, o agressor, vítima, ou ambos tinham ingerido bebidas alcoólicas; da mesma maneira, o consumo de álcool está presente em cerca de 13% a 50% dos casos de estupro e atentados ao pudor. No Brasil, dados do Cebrid apontam que 52% dos casos de violência doméstica estavam ligados ao álcool”. Eu convivi por um bom tempo quase que diariamente com policiais militares e eles me disseram, por diversas vezes, que aqui na nossa cidade, de cada cinco chamadas emergenciais recebidas, quatro eram “casos de Maria da Penha” e que, na quase totalidade das circunstâncias, uma ou ambas as partes envolvidas estavam alcoolizadas. Infelizmente, penso que na maioria das cidades brasileiras a realidade não deva ser muito diferente. 

         

        Acredito que as consequências no Plano Físico estão bem ilustradas. Mas, e no metafísico? Conforme já mencionamos anteriormente neste ensaio e no anterior, quanto mais pessoas vivenciando sentimentos, pensamentos e atitudes negativas, mais energia emanam para nutrir os demônios correspondentes àquelas vibrações. Com isso, essas entidades maléficas se fortalecem e mais difícil fica para o ser humano médio se manter imune às suas influências. São os momentos em que a balança fica desequilibrada e os riscos aumentam. Contudo, ainda mais perturbadora me parece aquela lógica, também já mencionada, de que, por afinidade, pela simples relação causal de que “semelhante atrai semelhante” um indivíduo que venha a desencarnar vivenciando tal realidade, tende a ser tragado pela Qliphah demoníaca afim tão logo adentre ao Plano Astral. Não sei quanto a você, prezado leitor, mas a mim é desconcertante a hipótese de viver consumido pelos vícios na dimensão material e, depois de morto, se tornar escravo de entidades diabólicas, quiçá por qual imensidão de tempo, e sendo sujeitado a sabe-se lá que horrores inerentes às esferas demoníacas. 

        

         Tudo isso é mero exemplo, motivado pelo que me vem à mente cada vez que dirijo pela cidade à noite e vejo bares lotados, gente bebendo nas calçadas, diante de lojas de conveniência e distribuidoras ou recantos escuros de praças e parques – muitas vezes adolescentes e até crianças, com seus repulsivos “kits” compostos por energéticos de quinta categoria e destilados vagabundos. E as outras drogas? Sobre essas nem vamos nos ater, pois seria preciso escrever um livro ao invés de um mero ensaio. Você, que leu até aqui, com certeza entende a lógica disso. Estamos apenas arranhando a superfície do problema. Poderíamos expandir os questionamentos similares sem esforço: o que dizer sobre essa necessidade paranoica de se obter likes e visualizações em redes sociais, muitas vezes para isso ultrapassando qualquer limite do bom-senso? E a epidemia de procedimentos estéticos, que não raramente resultam em consequências irremediáveis? E a “ditadura da magreza”, apontada por inúmeros profissionais da área da saúde como causa direta de graves distúrbios, como depressão, ansiedade, anorexia e bulimia? Os demônios da Vaidade se refestelam. E não podemos deixar de mencionar ainda este ódio, que aparentemente irrompe de uma deformação consciencial pseudopolítica e que hoje infesta a psicosfera como uma praga nauseabunda de radicalismo e intolerância, levanto incautos a colecionarem atritos e desarmonias [que, por vezes, nitidamente beiram a psicopatia] nas relações sociais, profissionais e familiares ao ponto de, não raro, descambar para a violência. Acredito que as chamas de Golachab devem estar crepitando com muita intensidade no Plano Astral. 

        

        E de nada ajuda adentrar ambientes, que aparentariam aos desavisados serem menos propícios à infestação demoníaca, e perceber todo mundo [às vezes famílias inteiras] ignorando a presença uns dos outros por estarem grudados nas telas de seus celulares. Já vi, por diversas vezes, adultos entregando celulares nas mãos de crianças pequenas [algumas, pouco mais do que bebês] simplesmente para que parassem de chorar e lhes deixassem em paz. Eu convivo regularmente com professores, profissionais da área da saúde e simplesmente pais de adolescentes e tenho ouvido o tempo todo que nunca houve tantos de casos de depressão, ansiedade [e outros problemas psiquiátricos] como agora, além de um aumento absurdo no número de suicídios e tentativas de suicídio. Já há estudos confirmando essa triste realidade, tanto no Brasil como em outros países e alguns deles já estão publicados na internet, basta pesquisar. E qual é a queixa que mais acompanha a grande maioria das manifestações de preocupação com jovens e crianças, quase como se fosse um anexo? Isso mesmo, o apego desmedido e abusivo dos celulares [e, por consequência, da internet]. O que há por trás dessas telas? Para alguns, decerto, nada de mais, porém, para outros tantos, deve haver frequentemente a sombra tentadora de algum demônio impregnada entre megabytes de informação, procurando uma oportunidade para transcender a barreira do digital e impregnar a alma humana. 

         

          Para concluir, não devemos nos esquecer do que foi mencionado anteriormente sobre as Qliphoth: o que lhes dá sustentação e alimenta os demônios que nelas habitam são os nossos excessos. O Estoicismo nos diz que os excessos constituem os vícios e os vícios são as doenças da alma. Como nem tudo está perdido, essa vertente filosófica também nos indica o remédio [ou, mais adequadamente, a profilaxia] para esses males: a virtude cardinal da Temperança [alguns preferem termos como “moderação”, “comedimento”, “equilíbrio”, “ponderação”, entre outros]. Se tivéssemos mais em conta esse predicado, tão abordado, sob diferentes formas, em inúmeras correntes místicas, filosóficas e ocultistas em geral, e magistralmente representado na carta XIV dos Arcanos Maiores do Tarot, certamente teríamos muito menos problemas com as forças negativas do Plano Astral. Felizmente, para contrapor estas forças negativas, há também as positivas, comumente chamadas de “anjos” [mas que possuem muitas outras designações] a quem podemos recorrer em nosso auxílio. 

         

        Como este texto já ficou mais extenso do que o previsto, trataremos mais detalhadamente das formas de proteção contra os demônios e a subsequente interação com as energias benéficas do Plano Astral no próximo ensaio. Em breve.            

31 de dez. de 2022

ZINE NOTURNO Nº 02


 Por André Bozzetto Jr

 

No apagar das luzes de 2022, apresentamos a segunda edição do Zine Noturno, uma derivação do blog Relatos Noturnos, que, conforme ressaltamos no editorial de nosso primeiro volume, “visa se constituir em um espaço para a publicação não apenas dos meus próprios contos, mas também de autores já experimentados nas lides literárias – seja pelas vias independentes ou através de editoras profissionais –, bem como de escritores iniciantes que produzam material relevante aos fãs do gênero fantástico”.

Mantendo a intenção de uma publicação por ano, a proposta inicial para este nº 02 era fazer uma edição especial sobre vampiros, contando com contos inéditos de minha autoria, do colaborador Adriano Siqueira – uma das grandes autoridade brasileiras sobre o tema –  e de pelo menos mais dois autores a serem convidados. Porém, não deu tempo. Adriano Siqueira nos deixou de forma súbita e chocante no dia 02 de novembro deste bizarro ano de 2022, vítima de um fulminante câncer de estômago.

Com a tristeza e o desânimo provenientes dessa irreparável perda, o projeto ficou em vias de ser abandonado. Contundo, refletindo melhor, cheguei a conclusão de que, com uma providencial adaptação, a edição poderia ser publicada com conteúdo exclusivamente dedicada ao nosso grande amigo e colaborador, de forma a lhe render uma justa homenagem.

Nesta edição, trazemos três contos antigos e menos conhecidos de Adriano, que integram respectivamente três fases de seu trabalho, que ele mesmo classificava como “Histórias de Vampiros e Romance”, “Contos de Horror” e “Histórias de Aventura e Ficção”. Além desses, dezenas de outros contos e textos diversos podem ser lidos no blog que ele mantinha há vários anos, Contos de Vampiros e Terror (contosdevampiroseterror.blogspot.com). Por fim, incluímos também uma entrevista publicada aqui mesmo no Relatos Noturnos  em junho de 2021, a qual, por diversas vezes, ele me disse que gostou muito, pois contemplava, através das perguntas e respostas, as diversas eras da sua trajetória como escritor de Literatura Fantástica, fanzineiro – com o já cult fanzine Adorável Noite – blogueiro e ativista cultural. 

Que essa humilde publicação contribua, de alguma forma, para a memória do legado dessa grande figura que já está deixando saudades. Obrigado, Adriano, que você tenha uma eterna e “Adorável Noite”!

Para baixar gratuitamente e edição nº 02 do Zine Noturno, clique AQUI.

Boa Leitura!        

 
Adriano Siqueira (1965 - 2022)



29 de dez. de 2022

O RELATOR DA NOITE - ENSAIO Nº 01: SOBRE A REALIDADE DOS DEMÔNIOS

 

 

            Por O Relator da Noite

 

            Primeiro ponto: nada de formalismos por aqui, ok? Metodologia Científica e rigor estilístico em uma série de textos que se propõe a tratar de uma infestação de demônios nos dias atuais me pareceria no mínimo pretensioso, para não dizer patético. E talvez, mesmo assim, essas linhas soem exatamente desse jeito, pretensiosas e patéticas, mas vou deixar isso para você julgar depois da leitura. Outra coisa importante: não interprete nada do que ler aqui como uma tentativa de convencimento ou de expressão da Verdade [será que existe alguma?]. Trata-se apenas da apresentação de alguns pontos e o compartilhamento do meu entendimento sobre os mesmos. Procure emular, durante a leitura, a sensação de estar no boteco da esquina, escutando a conversa de um amigo esquisito e meio maluco e,  assim, provavelmente você estará no estado de consciência adequado para absorver o máximo possível do que estou tentando expor aqui. Então, encha o seu copo e vamos lá.

            Obviamente, precisamos começar definindo o que são os “demônios” mencionados no título deste texto, uma vez que, por si só o termo pode ter um monte de significados diferentes, dependendo do contexto cultural ou do momento histórico a que se refere. Acredito, inclusive, que a questão da linguagem é o maior desafio a quem se propõe a estudar de forma séria e profunda as mais variadas temáticas relacionadas ao Ocultismo. Concordo com Robert Anton Wilson quando este argumenta que as mais variadas Ordens, seitas, doutrinas, filosofias, religiões e até a Ciência estão, na maior parte do tempo, falando dos mesmos assuntos, porém, fazendo uso de métodos e  jargões próprios, o que dificulta o estabelecimento de paralelos, sendo esse problema agravado pela insensatez de cada uma dessas vertentes em ficar despendendo muito tempo e esforço tentando provar que a sua forma de interpretação é mais correta que todas as outras.

            Feita essa digressão, esclareço que os “demônios” abordados neste ensaio não são espíritos de pessoas mortas, aos moldes do que é apregoado, por exemplo, no Kardecismo, mas sim, formas-pensamento. Contudo, também não são formas-pensamento originadas por seres humanos como nós [embora, ao longo do tempo, tenham sobrevivido se retroalimentando da energia psíquica da humanidade], mas sim por seres que habitaram nosso planeta desde muito antes de qualquer coisa semelhante a um homo sapiens andar sobre a Terra. Essas formas de consciência, de existência essencialmente etérica, atuavam com amplo domínio na matriz astral do nosso mundo, sendo responsáveis diretos pelas emanações de muitos componentes da realidade que, ao longo das eras, viriam a se materializar fisicamente na natureza. Talvez a forma  mais  utilizada para se referir a estes seres em diversas vertentes ocultistas seja como Elementais, mas, particularmente, não gosto dessa designação, porque o senso comum já a perverteu ao ponto de se tornar genérica, utilizada para classificar uma infinidade de entidades [por vezes completamente diferentes umas das outras] que habitam o Plano Astral. Sobre essas consciências primordiais não iremos nos aprofundar neste texto, mas, recomendo fortemente a leitura da série de livros que compõe A Doutrina Secreta, de Blavatsky, além de obras teosóficas de outros autores como Charles Leadbeater e, principalmente, Franz Hartmann. Aproveito para esclarecer que não sou um seguidor da Teosofia, muito embora reconheça, após mais de duas décadas de estudos e pesquisas, que os teosofistas me parecem ser os que chegaram mais longe na abordagem do tema sobre o qual nos debruçamos neste ensaio.

            Blavatsky chama essas inteligências seminais de Pitris e sobre elas afirma que “não são os antepassados (diretos) de pessoas atualmente vivas, mas sim, os antepassados da humanidade atual, uma raça original, ou seja, os “espíritos” de raças humanas que precederam a nossa raça na grande escala da evolução descendente (de muitos milhões de anos)”, ou seja “constituíram uma transição na criação da raça precedente, passando de raças humanas etéricas para a presente linhagem humana material”. Hartmann complementa alegando que “essas forças elementares são os Devas do Oriente, os Elohim da Bíblia, Afrites dos persas, Titãs dos romanos e Egrégores [ou Vigilantes] do Livro de Enoque” e que “são os agentes ativos do cosmos cuja atuação pode beneficiar ou tolher o homem, segundo as condições em que operam”. Aqui começamos a nos aproximar do ponto-chave de nossa reflexão. “Essas forças elementares podem beneficiar ou tolher o homem, segundo as condições em que operam”, afirma Hartmann. Os motivos pelos quais esses seres atuariam sobre nós dão margem para muita especulação, quiçá ocupariam um livro inteiro. Para quem gostaria de se aprofundar, indico a leitura de Magia Aplicada, de Dion Fortune e O Tesouro Arcano, de João Anatalino Rodrigues, obras onde aparece a noção de que toda forma de consciência [encarnada ou desencarnada] que está ou algum dia já esteve ligada à psicosfera da Terra se constitui em um agente ativo, seja de forma consciente ou [na grande maioria das vezes] inconsciente da própria trajetória de desenvolvimento do planeta, atuando na criação [ou destruição?] dos mais variados aspectos da realidade. Como toda consciência deixa marcas indeléveis no Plano Astral, aqueles que habitaram esse mundo antes da humanidade deixaram um substrato energético, forças primais, que, quando canalizadas ou manifestada pelos seres humanos, os induzem à ação, que pode ser construtiva ou destrutiva.

            Em Magic: White and Black, Hartmann cita uma carta a Sinnett onde argumenta que todo pensamento, uma vez na Esfera Astral, torna-se uma entidade ativa ao associar-se, por aglutinação, a um Elemental, ou seja, a uma das forças semi-inteligentes autônomas – criaturas concebidas através da consciência – por um período de tempo curto ou longo, proporcional à intensidade original da ação cerebral que os engendrou. “Destarte, todo bom  pensamento perpetua-se e continua a exercer seu poder benéfico, ao passo que os maus pensamentos subsistem como demônios malévolos”. O autor alemão ainda acrescenta que algumas dessas formas-pensamento possuem consciência própria e são autoconscientes da própria existência, mas em circunstâncias normais não possuem maior inteligência que um animal e não podem, portanto, agir inteligentemente. “Elas seguem o empuxo da atração cega da mesma forma que a limalha de ferro é atraída por um ímã; onde quer que haja condições propícias ao seu desenvolvimento, para aí elas são atraídas”. Contudo, se nessas formas não inteligentes for inculcado o princípio de inteligência que procede do homem, elas tornam-se inteligentes e passam a agir como tal. Assim, todas as emoções que despontam no homem podem combinar-se com forças astrais da natureza, a ponto de criar entidades viventes e ativas. “Esses elementais vivem no reino da alma do homem, e enquanto ele viver, fortalecem-se e engordam, pois vivem do princípio vital dele e nutrem-se dos pensamentos que emite”.

            Na obra Elementargeister, Hartmann complementa afirmando que um pensamento-entidade que habite o Plano Astral, proveniente de uma consciência que pode até mesmo tê-lo emanado em alguma era remota ou algum lugar longínquo pode influir em outra parte do mundo sobre este ou aquele homem predisposto, amadurecer como pensamento em sua mente, e tornar-se operante dentro dele. “Assim surgem igualmente as invenções e são iniciados crimes. Uma ideia trazida à existência é algo vivo, e nem a morte natural, nem a execução daquele do qual ela proveio pode exterminá-la”. Mesmo que seu hospedeiro morra na plano físico, o demônio continua existindo no Plano Astral e, em algum momento, encontrará outro veículo para se manifestar na matéria.

            Acredito que agora já temos uma noção mais clara sobre o tipo de demônios dos quais estamos falando aqui. São formas-pensamento muito mais poderosas [talvez infinitamente mais poderosas] do que aquelas criadas cotidianamente, consciente ou  inconscientemente, por pessoas como eu ou você, pois nós manipulamos o substrato moldável da substância astral formada pela coletividade da energia psíquica emanada ad infinitum pelos seres humanos ao longo das eras, enquanto que os demônios aos que nos referimos são formas-pensamento negativas emanadas por consciências primordiais, mas antigas do que a humanidade tal como conhecemos, e tendo por matéria-prima a própria substância basilar, a energia seminal que compõe a essência daquilo que chamamos de realidade. E caso esteja se perguntando de onde tudo isso provém, eu só posso dizer que acredito ser diretamente do Ato Criador [quiçá se desdobrando em inumeráveis níveis descendentes] que você pode chamar de Big Bang, Fiat Lux, “Deus” [de acordo com o seu cabedal de crenças] ou como preferir – perceba o problema da linguagem novamente – pois, para mim, sempre será algo incognoscível.

            Os motivos pelos quais as consciências primordiais emanaram essas formas-pensamento demoníacas é algo sobre o qual só podemos especular, e quase todas as tradições místicas e religiosas fizeram isso ao longo do tempo, através de infindáveis mitos, lendas, alegorias ou proposições filosóficas. Se atendo ao viés mais pragmático, o que me parece inquestionável é que, em maior ou menor intensidade, esses demônios têm feito parte da vida de todos os seres humanos que um dia já nasceram neste planeta. E como os demônios interagem conosco? A resposta sempre me pareceu tão simples  quanto impactante: os demônios atuam sobre as nossas emoções. Para Franz Hartmamm, eles são as emoções [negativas], conforme ilustra em Elementargeister, afirmando que os demônios “buscam possuir os corpos dos tolos e idiotas e se o conseguirem, neles permanecem até que sejam expulsos por uma vontade reta e firme”, acrescentando que “a explicação para tal fenômeno é a de que eles próprios são formas de desejos e de ideias”. Na visão do autor, esses seres “passeiam dentro de nós, fazem surgir este ou aquele afeto, causam toda sorte de paixões, dominam nossa razão, influem em nossos desejos e pensamentos”. Em seu entendimento, os demônios são “forças anímicas” que podem ser conhecidos pelo homem comum através da auto-observação, pois “sua própria natureza é como uma espécie de hospedaria, na qual esses seres entram e saem”. E conclui afirmando que “todo desejo, toda paixão tem sua causa em um espírito que o possui ou exerce influência sobre ele”, ou  “em outras palavras, os seus próprios sentimentos de desejo são resultados de uma forma de atuação, trazida à vida dentro dele mesmo, despertada por impressões externas, plasmada através de sua imaginação em efígies que lhe vêm à mente”.

            Em Magic: White and Black, Hartmann explica que essas formas-pensamento são tão poderosas que podem não apenas serem sentidas, como também serem vistas por aqueles dotados de visão astral, de tal maneira que “têm sido descritas em formato de serpentes, tigres, porcos e lobos famintos” mas que “frequentemente apresentam-se como bestas com cabeças humanas ou homens com membros animais” e, em síntese, “suas formas variam ao infinito pois existe uma enorme variedade de combinações entre luxúria, avareza, ganância, amor sensual, ambição, covardia, medo, terror, ódio, orgulho, vaidade, presunção, estupidez, volúpia, egoísmo, ciúme, inveja, arrogância, hipocrisia, astúcia, sofisma, imbecilidade, superstição, etc. O autor complementa que “cada uma dessas forças corresponde a um desejo animal [me parece que “instinto” seria um termo mais adequado aqui], e se permitirmos que cresçam, tomam a forma do ser que corresponde à sua natureza”. Seriam as tais “efígies moldadas pela mente” citadas anteriormente, o que explicaria porque um mesmo demônio pode se  manifestar de formas variadas para diferentes indivíduos, uma vez que a aparência seria apenas uma roupagem para a força se manifestar, constituída do próprio substrato mental de cada um. Quando estes seres são perpetuados pela tradição com uma roupagem específica ou até mesmo cultuados de forma grupal, acabam por constituir poderosíssimas egrégoras.

            Hartmann frisa que esses seres “não são necessariamente entidades racionais conscientes, mas podem manifestar-se por meio de organismos conscientes dotados de razão; não são pessoas, mas personificam-se sempre que encontram expressão em formas individualizadas”, pois “amor e ódio, inveja e beneplácito, luxúria e ganância não são pessoas, mas personificam-se em formas humanas ou animais”, de tal forma que “uma pessoa extremamente maliciosa torna-se a própria encarnação da malícia”.

            Se observarmos sob essa ótica, dos demônios como forças negativas primordiais que se manifestam nas pessoas através das emoções, instigando e ao mesmo tempo se retroalimentando da energia psíquica emanada por padrões específicos de sentimentos e pensamentos humanos – de tal forma que escraviza o indivíduo e fortalece o demônio – então não é difícil traçar paralelos [com maior ou menor grau de precisão, dependendo do caso e do enfoque adotado] entre o que é apregoado nas mais diversas vertentes ocultistas, místicas ou religiosas. São os demônios das Qliphoth na Kabbalah, os diversos Mâdan na Teosofia, os Ajogun no Candomblé e em outros cultos de raiz yorubá, os Demônios dos Sete Pecados Capitais no Catolicismo, a personificação dos Vícios combatidos na Maçonaria [Jubelas, Jubelos e Jubelum], o entendimento acerca dos Arcontes em algumas seitas gnósticas, e, mais recentemente, os Dillodokers, além de inúmeras outras denominações adotadas pelas mais diversas sociedades em diferentes realidades culturais ao longo do tempo.

            Algum leitor pode estar se perguntando: dentro dessa mesma perspectiva em que tanto falamos dos demônios, não teríamos algo a dizer também sobre os anjos? O nosso entendimento vai ao encontro de tudo o que já foi exposto até aqui. Os anjos têm uma existência tão real quanto a dos demônios e sua natureza é análoga a deles, mas, obviamente, com a vital diferença de que os seres angelicais atuam através das emoções positivas, instigando nos homens, por assim dizer, sua propensão a agir em prol da harmonia e da evolução. Se os demônios podem ser entendidos como as forças destrutivas da realidade [prefiro usar o termo “realidade” ao invés de “natureza”, pois essa última expressão poderia passar ao leitor desavisado a impressão de algo que se refere aos elementos ecológicos, puramente físicos, enquanto, na nossa interpretação, há uma abrangência tanto física quanto metafísica] então os anjos são as forças construtivas.

            Para fins práticos, me parece que Allan Kardec estava certo ao afirmar que a melhor forma de afastar a influências dos espíritos obsessores é atraindo a presença dos espíritos benévolos. Pragmaticamente, o que vale para os espíritos dos mortos vale também para os anjos e demônios. No trato com esses habitantes do Plano Astral, é muito fácil perceber que nossos pensamentos fazem com que eles nos notem, nossos sentimentos os atraem e nossas atitudes os tornam nossos aliados ou algozes, dependendo do caso. Na interação com esses seres metafísicos, o uso de rituais e atos  magísticos é perfeitamente funcional, posso assegurar por experiência própria, contudo, o contato com as forças de outros planos da existência ocorrem até mesmo em meio a situações do cotidiano, ainda que a grande maioria das pessoas não se dê conta disso.

            Pela mais pura afinidade [semelhante atrai semelhante], nossos padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes definem se teremos anjos ou demônios atuando em nossas vidas. Por ser algo tão simples, é também tão perigoso. Acredito que nunca foi tão fácil como nos dias atuais encontrar desculpas para virar as costas à “porta estreita que conduz à vida [harmoniosa]” e se atirar através da “porta larga que conduz à perdição” [Mateus 7: 13-14]. Mantendo a exemplificação dos Evangelhos, existe uma passagem que ilustra perfeitamente essa lógica de que, para se manter longe da influência dos demônios, a conduta adequada é o melhor caminho. Em Mateus 17, Jesus é chamado para expulsar um demônio que possuía o corpo de um jovem e que os apóstolos não conseguiam exorcizar. Depois de livrar o rapaz do referido ser, Jesus explicou aos seus discípulos que “essa casta de demônios só se expulsa pela oração e  pelo jejum”. Não precisamos nos ater aqui sobre o quanto pode haver de simbólico ou  alegórico nessa passagem. Acredito que o ensinamento está bastante claro, até ao leitor mais desavisado. E, veja bem, quando leio as palavras de Jesus nos Evangelhos, eu não as tomo como moralismo. Não acredito na possibilidade de perfeição nesse plano da realidade em que habitamos e não me vejo em condições de pregar nada a ninguém. Lembre-se, estou apenas compartilhando o meu ponto de vista sobre o assunto. Posso dizer com segurança que nunca roubei e nunca matei, mas com o resto dos “pecados” mencionados na Bíblia, já devo ter me debatido com todos em algum momento da vida, e com alguns ainda me debato cotidianamente. O que me vêm à mente aqui é um entendimento aos moldes daquela máxima do Estoicismo, onde se afirma que “viver bem é viver de acordo com a natureza”. Ora, a natureza, em seus aspectos físicos segue uma lógica causal inexorável. Corte uma árvore e você terá menos sombra e, provavelmente, mais calor; Se alimente mal e seu corpo começará a perder desempenho. Não faça sexo e você não deixará descendentes. Causalidade pura. No aspecto metafísico, a lógica é exatamente a mesma. Quer gostemos disso ou não, nossos pensamentos, sentimentos e atitudes atrairão energias [e consequências] correspondentes, sejam elas positivas ou negativas.

            Sei que muitas pessoas acreditam que tudo que é muito simples tende a não funcionar, mas atente para o fato de que simples não significa necessariamente fácil. É claro que os métodos mais elaborados são eficazes. Frequento regularmente um terreiro de Umbanda e posso afirmar que os “descarregos” realizados lá funcionam maravilhosamente bem. O que acontece algumas vezes é que a pessoa chega ao terreiro com um “encosto” [que pode ser um espírito desencarnado ou um demônio envolto em suas respectivas energias negativas] e então ela passa pelo descarrego e essas forças maléficas são removidas, saindo dali com seu campo áurico purificado. Contudo, se ela não modifica os padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes que atraíram o ser negativo anteriormente, é só uma questão de tempo até ela atrair outro semelhante. É como Jesus explica em Mateus 12: 43-45, citando o caso de um demônio que foi expulso de um homem a quem possuía mas que, tempos depois, ao perceber a porta aberta e convidativa, retornou trazendo consigo outros sete demônios ainda piores do que ele.

            Eu gostaria de falar mais sobre a nossa relação com os demônios da atualidade, pois nesse momento onde a desesperança, o hedonismo autodestrutivo e a intolerância deixam marcas tão profundas na sociedade contemporânea, o tema me parece pertinente. Porém, vou fazer isso em um próximo texto, pois este já está muito longo e nós sabemos que o brasileiro médio não é afeito à leitura e, da mesma forma, pesquisas recentes têm mostrado que, quanto mais extenso for um texto, menos leitores ele vai ter.

 

PS: Para quem pode estar se perguntando se eu sou cristão, o que eu posso responder é que tenho grande interesse principalmente pelo aspecto gnóstico dos ensinamentos de Jesus, pois acredito que suas palavras nos deixaram um bom roteiro de como ter pelo menos uma vida minimamente digna neste plano da existência e para, quem sabe, depois do desencarne, não precisar mais voltar para esta realidade que é um autêntico “Carandiru Espiritual”, conforme a expressão utilizada por um dos meus professores.