Muitos dizem que o Marco é um nerd, mas eu sempre discordei. Para mim, nerd é o cara que manja de cultura pop e sabe muito sobre tecnologia e essas paradas, mas o Marco nunca soube nada sobre isso. Ele sempre foi um viciado em jogos eletrônicos, e nada mais. O cara já tem quase trinta anos e nunca teve uma namorada, nunca praticou esportes e quase nunca sai de casa. E não é por falta de oportunidade, pois, como conheço ele desde criança e sei que no fundo é um cara legal, sempre o convido para sair com a gente, mas nunca topa. Prefere ficar trancado no quarto, jogando. Não me pergunte os nomes, pois nunca fui fã dessas coisas, mas ele adora aqueles jogos de tiro em primeira pessoa, jogos de futebol – o que é estranho, porque ele nunca quis jogar uma pelada conosco na vida real – jogos de estratégia e até poker on-line.
Uma vez a mãe arrumou um emprego para ele no setor de TI de uma empresa, mas logo foi demitido porque ficava jogando no horário de trabalho. Mais ou menos naquela mesma época ele começou a faculdade de Sistemas de Informação, mas reprovou em várias disciplinas por faltas ou por não entregar as atividades e aí acabou abandonando. A partir de então, nunca mais fez nada. Passa o dia em casa, tomando Coca-Cola e comendo biscoito recheado, sustentado pela mãe.
E, por falar na mãe dele, às vezes ela me liga, chora e pede por favor para que eu o convide para sair, o que sempre faço, até com boa vontade, mas sem sucesso. A última vez que tentei foi na sexta-feira. Liguei para ele e disse que estávamos indo passar o final de semana no sítio da família do Carlão, que haveria várias garotas lá e talvez ele se interessasse por alguma – ou, o que seria ainda melhor: alguma se interessasse por ele. Mas, nada feito. Ele estava empolgadíssimo porque um fulano de tal, amigo de não sei quem, que era formado em Engenharia Química, havia desenvolvido uns comprimidos – ilegais, obviamente – que, quando ingeridos, faziam o cara ficar acordado por mais de 80 horas direto e ele ia usar isso para ficar jogando sem parar e “bater todos os recordes”, nas suas próprias palavras. Eu disse que isso já existia, que muitos caminhoneiros usavam e se chamava rebite. Ele discordou, falou que os comprimidos do cara estimulavam uma parte do cérebro que fazia não sei o que, e isso ia ser muito útil nos jogos. E ficava me dizendo: “Você sabe que dá para ganhar muito dinheiro jogando, né? Mas pra isso precisa ser bom pra caralho. Com esses comprimidos ninguém vai pontuar tanto quanto eu. Vou f*der com todos eles!” E para “melhorar” a mãe dele estaria viajando até segunda e não iria atrapalhar em nada. Ele estava vibrante, eufórico, parecia meio louco.
Eu teria deixado para lá, como fiz tantas vezes – até por falta de opção – se ele não tivesse começado a me mandar umas mensagens estranhas durante o final de semana, tipo essa: “Tomei todos.19 hrs sem parar. To moendo. Botando pra fder. So essa dor de barriga do kralho!” Eu respondi dizendo que ele era louco de tomar essas merdas feitas sabe-se lá em que fundo de quintal clandestino, e que parasse de jogar antes que tivesse um treco. Mas, ele não deu a menor bola, logicamente.
E assim continuaram as mensagens. 28 horas... 49 horas... 54 horas... Sempre comemorando a pontuação e reclamando da dor de barriga, além de outras coisas sem sentido e incompreensíveis. A última foi assim: “54 já. Ninguem nessa porra pode com o meu crbro. Ferveu. Milhoes vindo já. So isso na cabeça que não para. Dillodoker já atravessando. Repete repete repete. Tem uma coisa se mexendo dentro da minha barriga da até pra ver por baixo da camisa”.
Fiquei realmente preocupado. Tentei ligar e ele não atendeu. Então liguei para a mãe dele também, mas não completava a ligação. Talvez estivesse no avião ou na estrada, em uma área sem sinal. Estava em dúvida, sem saber o que fazer, quando recebi uma videochamada dele. Quando atendi levei um susto. Ele estava pálido, com olheiras enormes e escuras, com os cabelos suados grudados na testa. E aquele olhar! Havia algo de muito errado naqueles olhos.
“Cara, agora to mal pra caralho!” disse ele, “Não aguento mais! Tá vindo! Tá saindo!”
E então ouvi um som horrível, que parecia um peido junto com algo se rasgando. Ele deu grito, que me fez arrepiar os cabelos da nuca, e pareceu começar a tossir sangue. Houve outro barulho daqueles e algo escuro e melequento espirrou contra a tela. Ele caiu da cadeira e ficou gemendo. Dava para ouvir. Então apareceu alguém, alguma coisa, mas não dava para ver direito o que era, porque a webcam ficou encoberta pela meleca. Comecei a escutar o som das teclas do computador sendo apertadas em grande velocidade e, de repente, a videochamada se encerrou. Tentei chamar de volta, mas sem sucesso.
Apavorado, comecei a falar para o pessoal ao redor que o Marco estava mal e que precisava ir lá para socorrer. Pedi se alguém queria ir junto, mas todo mundo disse que não e ainda me xingaram por “ficar dando bola para aquele gordo escroto”.
Entrei no carro e parti, sozinho mesmo, assustado e ao mesmo tempo com raiva da galera pela falta de apoio. No caminho, tentei ligar várias vezes para o Marco e para a mãe dele, mas ninguém atendia. O trânsito do início da noite de domingo estava ruim e levei mais de uma hora para chegar. Toquei o interfone do apartamento, mas nada de resposta. Quando alguns moradores do edifício abriram a porta do hall para sair, me enfiei para dentro e peguei o elevador.
Toquei a campainha, bati e chamei pelo Marco. Não se ouvia som algum do lado de dentro. Cada vez mais ansioso, não pensei duas vezes e comecei a chutar a porta. Uma, duas, três, quatro vezes, e ela se abriu. O apartamento estava totalmente escuro e um fedor horrível impregnava o ar. Parecia cheiro de merda misturado com alguma outra coisa que não sabia o que era. Fui entrando e chamado pelo Marco, até chegar no quarto dele. Quando escancarei a porta, o fedor veio tão forte que pensei que ia vomitar.
A luz do quarto estava desligada, mas pela luminosidade da tela do computador – melecada com o que parecia ser sangue – pude ver o corpo do Marco caído no chão, ao lado da cadeira. Com toda certeza, estava morto. Mas, isso não era o pior. O que me fez gritar e ter a impressão de que poderia ficar louco de vez, foi perceber que através da sua barriga rasgada e ensanguentada havia saído algo. Uma criatura formada pelo próprio intestino do Marco, mas que, de alguma maneira, tinha desenvolvido olhos, boca e dentes afiados. Para fora do abdômen dilacerado saíam tentáculos de vários comprimentos e espessuras e alguns deles apertavam sem parar os botões do mouse e do teclado do computador, para onde o monstro olhava fixamente, como se acreditasse que ainda estava jogando e não pudesse parar.
Eu cheguei a me mijar de pavor, e gritei tanto que a coisa finalmente pareceu notar a minha presença. Mesmo sem parar de teclar, olhou para mim com aqueles olhos esbugalhados e monstruosos e moveu alguns tentáculos na minha direção. Então saí correndo, tomado pelo desespero. No corredor trombei com algumas pessoas que estavam ali – decerto atraídas pelo barulho do arrombamento e pela minha gritaria – e segui na direção das escadas. Não sei se tropecei ou resvalei nos degraus, mas acabei caindo e desci rolando até bater a cabeça com força. Essa é a última lembrança que tenho antes de apagar.
Acordei aqui, deitado na maca, dentro de uma ambulância. Do lado de fora dá para perceber as luzes coloridas das viaturas da polícia. Escuto dois estrondos que parecem de tiros, vindos lá de cima. Se ouve gritos e choro. Será a voz da mãe do Marco? Pergunto aos paramédicos o que está acontecendo, mas eles não respondem, apenas me olham com expressões perturbadas.
A ambulância parte, com a sirene ligada. Sinto meu corpo tremer só de pensar no horror que ficou para trás, lá em cima, no apartamento escuro e tomado por aquele fedor infernal.