12 de set. de 2023

CRÍTICA DO FILME: DOG SOLDIERS - CÃES DE CAÇA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Imagine que você é o líder de um grupo de seis soldados num exercício de rotina do exército... E que algo sai terrivelmente errado. Você está atrás das linhas inimigas.Seus homens são inexperientes. E você não tem munição de verdade. Isolados na mais deserta e hostil escuridão. Que são iscas numa armadilha montada por forças governamentais. Imagine que o sol começa a dar lugar a uma enorme lua cheia. Que uivos arrepiantes podem ser ouvidos ao longe. Imagine que a sensação de que, a qualquer momento, vocês podem ser atacados por lobos assassinos está cada vez mais latente...

 

            Essa é a sinopse oficial do filme “Dog Soldiers – Cães de Caça”, uma produção inglesa de 2002, dirigida e roteirizada por Neil Marshall. Em um primeiro momento, o espectador mais desavisado pode achar esse resumo pouco atraente, e quem sabe até cometer o erro de julgar a obra desinteressante. Porém, a realidade nos mostra justamente o contrário: “Cães de Caça” não só é um dos melhores filmes de lobisomens concebido após “Um Lobisomem Americano em Londres” como também consiste num dos melhores filmes de terror de sua época. O ponto mais empolgante dessa obra é a surpreendente atuação do elenco (tão bom quanto desconhecido), que confere aos soldados uma condição de desespero e transtorno tão realistas que se torna quase impossível não se deixar envolver. É claro que o diretor tem grande mérito nesse quesito, pois soube criar com muita propriedade um clima sombrio, denso e instável, que deixa o espectador o tempo inteiro em estado de alerta para alguma iminente surpresa.

            Certamente, outro aspecto que contribui para o resultado final desse filme ser tão satisfatório, é o dinamismo do roteiro, que apesar de possuir algumas facetas mais complexas (evidenciadas através dos diálogos), se desenvolve de forma bastante dinâmica, não deixando o pique cair em nenhum momento. Basicamente, o que temos é um grupo de soldados despreparados, mal equipados, assustados e feridos tentando a todo custo se defender do ataque de um grupo de lobisomens em meio a uma floresta distante e isolada. Não vou entrar em detalhes sobre as reviravoltas na trama e as “revelações” de certos personagens para não estragar a surpresa de quem ainda não assistiu. Mas posso assegurar que tudo é mais grave e difícil do que parece ser.

            Como destaque, eu diria que toda a primeira metade do filme é digna de méritos. Desde os súbitos ataques dos lobisomens até a correria desesperada dos soldados em meio a mata, tudo é registrado de forma fantástica. O diretor Neil Marshall conseguiu um excelente resultado ao mesclar cenas de violência extrema e explícita com outras mais sugestivas e indiretas. Inclusive, em alguns momentos a exposição de sangue e vísceras é tamanha, que nos leva a deduzir que a equipe responsável pelos efeitos deve ser fortemente influenciada pela antiga escola splatter italiana, ou pelo menos, grandes fãs de Tom Savini.

            A partir da metade do filme, quando os sobreviventes se trancam em um casarão deserto, os sustos se tornam um pouco menos frequentes, e a história passa a introduzir uma série de informações que ajudam a compreender o real significado da inusitada condição em que o grupo de militares se encontra. Mas como já foi mencionado anteriormente, em nenhum momento o filme se torna monótono, sendo que mesmo os momentos de aparente calmaria são quase sempre apenas uma deixa para pegar o espectador de surpresa antes de uma nova sessão de horror e desespero.

            Mas como nem tudo é perfeito, esse filme também possui alguns aspectos negativos impossíveis de não serem mencionados. Em primeiro lugar, aquele que costuma ser o maior problema de 99% dos filmes recentes de terror: o excesso de situações batidas e repetitivas em meio ao roteiro. Ao assistirem esse filme, certamente os fãs mais antigos irão identificar logo de cara situações que já foram vistas de forma bem semelhante em outros filmes, como “Grito de Horror”, “A Noite dos Mortos-vivos” e até mesmo no recente “Sinais”.

            Em relação a parte técnica do filme, chama a atenção o fato de que os movimentos de câmera e a sucessão de ângulos e enquadramentos se desenvolve de forma muito frenética, sendo que em alguns momentos a velocidade com que as imagens são exibidas e sucedidas é tão grande que fica até difícil distinguir com clareza o que está se passando. Talvez esse recurso tenha sido usado propositadamente pelo diretor com a intenção de desorientar o espectador, aumentando assim a sua condição de desconforto, ou também é possível que ele tenha feito isso simplesmente para não mostrar diretamente os lobisomens, deixando isso mais para o final do filme.

            Mas de qualquer forma, esses contrapontos não são suficientes para tirar os méritos dessa obra. E por falar nisso, é interessante notar que além de ser um grande filme, “Cães de Caça” também poderia ser visto com destaque por trazer de volta uma antiga tendência: Quando os europeus querem (em especial os ingleses e italianos), eles são capazes de produzir filmes tão bons ou até melhores que os americanos. Somente para citar um exemplo, é interessante lembrar que durante os anos 80 o cinema fantástico produzido nos EUA estava bastante direcionado para os chamados “terror adolescente”, onde não faltavam slashers a lá “Sexta-feira 13” e filmes de vampiros como “Garotos Perdidos”. Em meio a várias produções divertidas e interessantes, surgiam também inúmeras bombas, que mais pareciam comédias do que propriamente filmes de terror. Além do que, franquias de sucesso como “Halloween” e “A Hora do Pesadelo” começavam a ficar desgastadas, com filmes fracos e repetitivos, o que contribuía para a ideia de que, naquela década, o gênero ainda teria muito pouco a oferecer. E então o que foi que os ingleses fizeram? Apareceram em 1988 com “Hellraiser”, um filme extremamente violento, pesado, sádico e até pervertido em alguns aspectos. Todo mundo sabe que esse filme fez grande sucesso, iniciando uma longa franquia e servindo como referência para toda uma nova onda de filmes que surgia, dessa vez voltando a apostar em temáticas mais “sérias”. E isso sem falar nos filmes italianos, especialistas em zumbis e canibais, mas que infelizmente nunca obtiveram o reconhecimento que mereciam.

            Para finalizar esse artigo, fica o pesar por “Cães de Caça” não ter sido exibido nos cinemas brasileiros, pois é bastante provável que com uma boa divulgação ele pudesse ter tido um ótimo desempenho nas bilheterias. Potencial para isso com certeza ele tem.

        Aqui no Brasil, a “Play Arte” lançou “Cães de Caça” diretamente em DVD e VHS. Não deixe de assistir.

 

NOTA: As críticas desta seção foram escritas originalmente no início dos anos 2000 e publicadas em diversos sites e blogs da época.           

 

6 de set. de 2023

CRÍTICA DO FILME: GRITO DE HORROR

 

Por André Bozzetto Jr

 

       Peça para todos os fãs de filmes de lobisomem que encontrar para que elaborem uma lista com os melhores filmes do gênero, e eu seria capaz de apostar que em todas aparecerão três nomes, muito provavelmente nas primeiras posições: “Um Lobisomem Americano em Londres” (1981) de John Landis, “A Hora do Lobisomem” (1985) de Daniel Attias (cuja exibição na TV se deu sob o título de “Bala de Prata”, tradução literal do título original) e “Grito de Horror” (1981) de Joe Dante. Certamente, tal lembrança é mais do que justificável, uma vez que estes filmes formam a “trinca de clássicos” que representa o que de melhor foi produzido dentro do ciclo de filmes de lobisomem da década de 1980. Além disso, todos foram exibidos e reprisados exaustivamente pelo canal de televisão SBT entre o final da década de 1980 e início da de 1990, fazendo com que ficassem bem vivas as lembranças desses filmes na memória de toda uma geração, como representantes de um período em que passavam filmes de terror na TV aberta quase que diariamente. Uma saudosa época que se foi e não volta mais.

       De qualquer forma, enquanto “Um Lobisomem Americano em Londres” marcou época com o brilhantismo de seus efeitos especiais e a empolgante mistura de terror e humor negro e “A Hora do Lobisomem” se destacou pelo envolvente suspense do enredo elaborado pelo ídolo Stephen King, “Grito de Horror” também traz consigo uma série de méritos, entre eles, o fato de ter sido o primeiro exemplar deste ciclo oitentista de filmes tratando das criaturas licantrópicas, e a inovadora abordagem conferida aos lobisomens, que, por um lado, expunham horrenda selvageria e brutalidade, e por outro, emanavam mistério e uma considerável dose de sensualidade.

       O roteiro de “Grito de Horror”, escrito por John Sayles (“Piranha”, “Alligator – O Jacaré Gigante”) e Terence Winkless, consiste em uma adaptação do livro “The Howling”, de Gary Brandner, e começa mostrando uma intrincada operação conjunta entre uma emissora de televisão e a Polícia, no intuito de dar cobertura a uma famosa jornalista chamada Karen White (Dee Wallace Stone) que irá se encontrar com um misterioso serial-killer que se identifica apenas como Eddie (Robert Picardo) e que tem espalhado o pânico pela cidade esquartejando suas vitimas nas noites de lua cheia. O encontro acontece em um sex shop de um bairro barra-pesada, mais especificamente dentro de uma cabine de projeção de filmes pornô. Lá, o maníaco se revela literalmente fascinado pela jornalista, dizendo que ela é “uma mulher especial”, e que por isso merece ver “algo” que ele tem para lhe mostrar. Então Karen vê algo horrendo acontecer em meio à escuridão da cabine, mas antes que ocorra algo ainda pior, uma dupla de policiais invade o local e mata o maníaco a tiros.

       Depois dessa macabra experiência, Karen fica muito traumatizada, e passa a sofrer com pesadelos e lapsos de memória que a impedem de trabalhar e põe até mesmo sua vida conjugal em uma situação delicada. Desesperada, decide acatar o aconselhamento do Dr George Waggner (Patrick Macnee), um psiquiatra que presta consultoria para a emissora em que trabalha, e parte com o marido Bill (Christopher Stone, que foi marido de Dee na vida real) para uma espécie de clinica terapêutica conhecida como “A Colônia”, localizada em uma afastada área florestal, onde se submeterá ao acompanhamento psiquiátrico do próprio Dr Waggner, proprietário da clínica.

       Paralelamente, Chris (Dennis Dugan) e Terry (Belinda Balaski), um casal de reportes colegas de Karen, desenvolvem uma ampla investigação sobre a trajetória do serial-killer Eddie, e a medida em que fazem surpreendentes e assustadoras descobertas, começam a desconfiar que ele fosse algo mais do que um simples psicopata. Tais desconfianças ficam ainda maiores quando o corpo de Eddie simplesmente desaparece do necrotério onde se encontrava.

       Nesse meio tempo, Karen e Bill são recebidos pelos frequentadores da Colônia e não tardam a perceber que são pessoas tão simpáticas quanto bizarras. As coisas começam a piorar quando Bill é atacado por um estranho animal enquanto andava pelo bosque à noite, ao mesmo tempo em que passa a ser frequentemente assediado por Marsha (Elisabeth Brooks), uma mulher misteriosa e sedutora, apontada pelos demais como ninfomaníaca. Por sua vez, Karen passa a ficar amedrontada com os perturbadores uivos que ouve vindo da mata durante a noite, à medida que passa a estranhar cada vez mais o comportamento das pessoas que a cercam, inclusive o do próprio marido, que agora parece um tanto mudado. E falar mais sobre o roteiro seria estragar as surpresas que a trama reserva para quem for assistir ao filme pela primeira vez.

       O que se pode dizer com convicção é que “Grito de Horror” é um filme ousado e inovador, principalmente quando levado em consideração o ano em que foi produzido. Ousado porque não hesita em enfocar um dos pontos-chave da trama em uma inusitada e controversa cena de sexo. Também chama a atenção ao mostrar, de forma um tanto quanto crua, personagens desprezíveis, movidos apenas por sadismo e crueldade. Dentro desse contexto, também merece destaque o final, extremamente irônico, amargo e pessimista, que fecha perfeitamente com a proposta do filme.

       Em termos de inovações, destaca-se o fato de mostrar os lobisomens com pleno controle sobre o seu poder de metamorfose, podendo se transformar em monstro ou retroceder à forma humana no momento em que bem entendessem. Além disso, o visual adotado para as criaturas nesse filme também foi uma novidade, pois até o final da década de 1970 os lobisomens costumavam ser caracterizados ao estilo clássico imortalizado pela interpretação de Lon Chaney Jr, onde os monstros eram basicamente seres humanos, de roupa e tudo, apenas mais peludos e com presas e garras afiadas. Em “Grito de Horror” os lobisomens possuem uma anatomia bem mais animalesca, fazendo com que sua hibridização se assemelhasse muito mais ao lobo, embora de proporções monstruosas, do que ao homem. Essa tendência passaria a ser seguida na quase totalidade dos filmes de lobisomem produzidos a partir de então.

       E por falar no visual dos lobisomens, impossível não mencionar o surpreendente trabalho de maquiagem e efeitos especiais, tanto dos monstros em si como das cenas de transformações, que ainda nos dias atuais demonstram qualidade e esmero poucas vezes superadas, mesmo passados tantos anos de sua produção. Em relação a isso, existe uma história de bastidores muito comentada, sobre o fato de que o grande maquiador Rick Backer foi contratado para desenvolver os efeitos especiais do filme, mas após poucos meses de trabalho teve que abandonar a produção, pois recebera de John Landis a notícia de que o Estúdio Universal autorizara o desenvolvimento de “Um Lobisomem Americano em Londres”, e Backer já havia empenhado sua palavra com Landis, dizendo que se o projeto fosse autorizado ele estaria dentro. Então, Backer recebeu os créditos apenas pela função de “Consultor de Efeitos Especiais de Maquiagem”, enquanto o encarregado de por a mão na massa ficou sendo Rob Bottin, que a partir de então se consagrou como um dos profissionais mais requisitados da área, tendo posteriormente trabalhado em filmes clássicos e de grande sucesso como “Enigma do Outro Mundo” de John Carpenter, “A Lenda”, “Robocop”, “O Vingador do Futuro”, “Missão: Impossível”, “Clube da Luta”, entre outros.

       Também merece destaque o trabalho de direção, a cargo do cultuado Joe Dante (“Piranha”, “Gremlins”, ‘Gremlins 2”) que fez com que o filme mantivesse um ritmo bastante dinâmico, e arquitetou cenas memoráveis como a monstruosa transa ao redor da fogueira, o confronto no consultório da clínica, o incêndio no celeiro repleto de lobisomens e a cena final, no estúdio de TV, que na minha humilde opinião é antológica em se tratando de filmes de horror da década de 1980.

       Em relação ao elenco, além de Dee Wallace Stone, que participou de diversos filmes de horror e suspense, entre eles “Quadrilha de Sádicos” de Wes Craven, “Cujo”, “Criaturas”, “Alligator 2 – A Mutação”, “Popcorn” e o clássico infantojuvenil “E.T. O Extraterrestre” de Steven Spielberg, é válido citar também a participação do saudoso John Carradine, que atuou em mais de trezentos filmes ao longo de sua carreira, sendo que destes mais da metade foram obras de horror de baixo orçamento produzidos por estúdios como a Universal, onde Carradine se destacou interpretando o Conde Drácula em filmes da década de 1940, como “A Casa de Frankenstein” e “A Casa de Drácula”.

       Por fim, também me parece bastante interessante o fato de que em “Grito de Horror” os lobisomens não são vistos como meras máquinas de matar, pois é evidenciado todo um lado metafórico para a relação humanidade/selvageria, enfocando questões como a necessidade de evolução e o controle dos impulsos instintivos. A discussão na reunião no celeiro, próximo ao final do filme, é um bom exemplo dessa abordagem, nos mostrando que os lobisomens, além de despertarem nossos medos e habitarem nossos pesadelos, também podem nos instigar acerca da reflexão sobre a nossa própria existência.

 

NOTA: As críticas desta seção foram escritas originalmente no início dos anos 2000 e publicadas em diversos sites e blogs da época.

28 de ago. de 2023

CRÍTICA DO FILME: UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES

 

Por André Bozzetto Jr

 

       Em uma época onde os grandes estúdios cinematográficos investem centenas de exorbitantes milhares de dólares em suas produções, os efeitos especiais se mostram cada vez mais modernos e mais apegados aos recursos de computação gráfica, e principalmente, em um período onde a esmagadora maioria dos frequentadores dos cinemas são jovens e adolescentes acostumados às imagens e ritmos frenéticos popularizados através da “geração MTV”, parece cada vez mais difícil um filme atravessar as décadas e ainda ser considerado um clássico referencial, com potencial jamais superado dentro de seu respectivo gênero. Dentro desse seleto grupo de pérolas, certamente se inclui “Um Lobisomem Americano em Londres”, dirigido por John Landis em 1981, e que está completando 25 anos de seu lançamento ainda desfrutando do status de clássico inquestionável, se mantendo atual tanto em termos de recursos técnicos quanto em relação à qualidade de seu enredo.

       Hoje em dia, me parece muito pouco provável que qualquer leitor que curta filmes de lobisomem ainda não tenha assistido a esse filme, ou pelo menos ouvido falar dele. Acredito que poucos filmes tenham uma cena tão marcante, referenciada e cultuada com a cena em que o protagonista se transforma em lobisomem pela primeira vez. Não é à toa que tal cena, realizada com tanto esmero e brilhantismo, acabou sendo fundamental para que o maquiador Rick Baker ganhasse o primeiro de seus sete prêmios “Oscar” concedido pela sempre exigente Academia Norte-americana de Cinema. De qualquer forma, seria extremamente injusto avaliar o filme unicamente pelo mérito dos efeitos especiais, uma vez que essa obra ainda conta com um roteiro que, apesar de simples, se revela bastante envolvente, um trabalho de direção estupendo por parte de Landis (que até então só havia feito sucesso dirigindo comédias como “Os Irmãos Cara-de-pau”), que consegue imprimir ao filme um bom ritmo, mesclando cenas de humor refinadas, passagens repletas de tensão e suspense, e ainda momentos violentos e realmente aterradores.

       Os primeiros vinte minutos do filme já são praticamente um show à parte, que deveria servir como referência para muitos diretores atuais, como exemplo de como se pode criar, em poucos minutos, um clima de suspense e perigo iminente que realmente deixa o espectador tenso e conectado ao que está assistindo.

       O filme começa com os créditos aparecendo em meio a imagens das desoladas e inóspitas paisagens do interior da Inglaterra, ao som de “Blue Moon” interpretada magistralmente por Bobby Vinton. Já está anoitecendo e o céu obscuro não promete nada de bom, quando então vemos uma camionete repleta de ovelhas parar junto a uma encruzilhada. Do meio das ovelhas saem David Kessler (David Naughton) e Jack Goodman (Griffin Dunne), dois amigos norte-americanos que estão passeando pela Europa. O motorista da camionete lhes indica o caminho até o vilarejo mais próximo, e lhes adverte para que “evitem os pântanos e fiquem na estrada”. Os dois seguem caminhando e conversando descontraidamente, hora reclamando do frio, hora motivados com as expectativas da viagem. Já nesse momento se percebe a perfeita química entre os dois jovens atores, que de certa forma quase convence o espectador de que eles são realmente grandes amigos e que se conhecem desde criança. Essa empatia entre o público e os personagens é fundamental para que as cenas posteriores causem o devido impacto a que se propõem.

       As primeiras sombras da noite já encobrem a paisagem quando a dupla chega ao vilarejo e se dirigem para uma espécie de taverna chamada “Cordeiro Massacrado”. Ao entrarem no recinto, os jovens são recebidos com uma frieza quase hostil por parte dos frequentadores do local. A medida em que o ambiente recobra a descontração, Jack fica intrigado ao ver na parede o desenho de um pentagrama iluminado por velas. O rapaz zombeteiramente menciona com David que no filme do “Wolf-Man” aquela é a marca do lobisomem (essa é a primeira de várias citações ao clássico estrelado por Lon Chaney Jr.), portanto o símbolo na parede deve servir para manter os monstros distantes. Mal sabia ele como estava certo.

       Sem conseguir resistir a curiosidade, Jack acaba pergunto para que servia o símbolo na parede, e rapidamente ele descobre que não foi uma boa ideia. Todos os clientes da taverna se mostram irritados e praticamente expulsam os dois viajantes dali, mas não sem antes advertirem novamente para que “evitem os pântanos e fiquem na estrada”, acrescentando ainda um tenebroso “cuidado com a lua”. David e Jack partem sem entender muito bem o motivo daquele comportamento estranho, enquanto na taverna as pessoas ficam discutindo: alguns acham que não adiantaria contar a verdade aos forasteiros, pois estes não acreditariam, outros achavam que foi um erro deixa-los partir, e que deveriam ir atrás deles.

       A essa altura a dupla de amigos já está andando a esmo pelos úmidos e nebulosos pântanos que circundam a região. Apenas, quando a lua cheia passa a brilhar no céu, os dois se dão conta de que saíram da estrada e se perderam. Mas é tarde demais: uma fera desconhecida passa a espreitá-los e persegui-los em meio à escuridão, e logo o pior acontece: a terrível criatura surge de surpresa e estraçalha Jack com extrema ferocidade. Apavorado, David foge correndo, mas depois decide voltar para ajudar o amigo, sendo também atacado pela criatura. Quando David está prestes a ser morto pelo monstro, surgem os frequentadores da taverna “Cordeiro Massacrado” e fuzilam a fera. David está muito ferido e acaba perdendo a consciência.

       Essa primeira parte do filme é desenvolvida com grande maestria, valorizando a paisagem local como um elemento a implementar o suspense, abusando dos efeitos sonoros e da subjetividade no momento em que o lobisomem está cercando os viajantes, e não poupando no sangue e na violência no momento em que os jovens são atacados. Uma sequência memorável e que ainda hoje me parece um dos pontos altos do filme.

       Em seguida vemos David acordando em um quarto de hospital em Londres. Lá lhe explicam que ele e Jack foram atacados por um maníaco, que seu amigo acabou sendo morto, e que provavelmente ele também seria caso os moradores locais não tivessem intervindo e baleado o assassino. David tenta argumentar que eles não foram atacados por um maníaco, mas sim uma fera. Porém, acreditando que o jovem estivesse traumatizado pelo acontecido, ninguém lhe dá importância.

       Enquanto se recupera no hospital, David passa a paquerar a enfermeira Alex (Jenny Agutter) ao mesmo tempo em que é atormentado por terríveis pesadelos. Para piorar, recebe a inusitada visitada de seu amigo Jack, agora transformado em um fantasma dilacerado (mais um ótimo trabalho de maquiagem de Backer) que lhe explica que ambos foram atacados por um lobisomem, e que na próxima lua cheia David também se transformará em um. Apavorado, David pensa estar perdendo sua sanidade, mas depois que sai do hospital e vai passar uns dias na casa da enfermeira Alex, as visitas do fantasma de Jack continuam, e quando a lua cheia finalmente chega, todos sabem o que acontece. Temos a mais fantástica cena de transformação já vista em um filme de lobisomem, em um show de maquiagem e feitos especiais jamais superados no gênero, e que deixa no chinelo as transformações nada realistas feitas em CGI em filmes como “Lua Negra”, “Van Helsing” ou “Amaldiçoados”. Pronto, Londres tem uma fera brutal e sanguinária solta nas ruas, pronta para estraçalhar quem cruzar o seu caminho.

       Desnecessário dizer que o filme possui mais uma dúzia de cenas memoráveis, que já foram largamente mencionadas e debatidas, como o ataque do lobisomem dentro do cinema, a fantástica sequência de acidentes de trânsito quando o monstro está correndo pelo centro da cidade, e a já clássica cena em que a fera persegue um pobre infeliz pelas galerias desertas do metrô, apenas para lembrar algumas.

       Paralelamente ao enfoque no suspense e no horror, o filme também dá destaque para o humor, que a partir daqui passou a ser um elemento incorporado em quase todos os filmes de terror desenvolvidos ao longo da década de 1980. Mas quando se fala em humor, é preciso que se tenha a noção de que se trata de um humor sutil e ocasional, e não algo forçado e que inevitavelmente descamba para a baixaria, como no caso dos filmes de “horror adolescente” feitos atualmente. Impossível não se divertir com a cena em que David acorda completamente nu dentro da jaula dos lobos no zoológico, e precisa inventar uma série de artimanhas para sair daquela situação constrangedora.

       Também é valido salientar que o sucesso do filme não se deu por acaso, uma vez que ele foi longamente planejado por Landis e Backer. Ao assistir os extras do DVD nacional do filme, ficamos sabendo que Backer começou a elaborar os efeitos especiais do filme cerca de nove meses antes das filmagens terem início, e para isso montou uma equipe com seis ajudantes convocados especialmente para esse fim. Landis, por sua vez, ficou dez anos com o roteiro do filme guardado por falta de verba para realizá-lo. Até que, com o sucesso da comédia “Os Irmãos Cara-de-pau”, a Universal acabou dando um voto de confiança para o diretor, e decidiu bancar o seu tão almejado filme de lobisomem. Decisão mais do que correta.

       Por todos esses fatores apresentados acima, “Um Lobisomem Americano em Londres” será sempre uma referência de destaque quando se falar em filmes de lobisomem, da mesma forma que “A Noite dos Mortos-vivos” será sempre um marco para os filmes de zumbis e “Sexta-feira 13” para os slasher-movies.

       Como curiosidade final, fica também o pesar pelo fato da dupla de atores David Naughton e Griffin Dunne não terem conseguido desenvolver com sucesso suas carreiras. Ambos participaram de uma infinidade de filmes “meia boca” que obtiveram pouca ou quase nenhuma notoriedade. Talvez a única exceção seja o ótimo “Depois das Horas” dirigido pelo cultuado Martin Scorsese e que foi protagonizado por Griffin Dunne.

       Atualmente, Dunne tem se dedicado à função de diretor, dirigindo em sua maioria filmes de drama e comédia, produzidos diretamente para a televisão. Naughton continua atuando, tendo participado de filmes constrangedores como “Abelhas – Ataque Mortal” e “Prisioneiro das Trevas”, e atualmente parece estar voltando aos filmes de lobisomem, já que fará o papel do Xerife Joe Ruben em “Big Bad Wolf”, filme do diretor Lance W. Dreesen, que promete extrema violência e muito gore, e cujo lançamento está programado para o segundo semestre de 2006.

 

NOTA: As críticas desta seção foram escritas originalmente no início dos anos 2000 e publicadas em diversos sites e blogs da época.

23 de jul. de 2023

A CAMINHO DO INFERNO


 

Por André Bozzetto Jr

           

            Nunca fui de ficar pensando sobre sorte, azar, destino, esse tipo de coisa. Simplesmente vivi um dia de cada vez e pronto. Mas, pelo menos naquela noite eu deveria ter desconfiado de que alguma coisa estava errada. O passado devia ter me ensinado uma lição. Começou quando a guria me mandou mensagem depois da meia-noite. Disse que era para eu ir na casa dela, assim, sem mais nem menos. Eu já vinha xavecando ela há tempos, mas o negócio não avançava. Às vezes parecia que ela queria, às vezes não. Daí me mandou mensagem do nada, deixando bem claro que ia rolar. E eu fui, né! Quem não iria? Uma gata daquelas...

            Peguei o carro e encarei a estrada. Aqui preciso dizer que fazia muito tempo – uns quatro anos – que eu evitava de todo jeito transitar naquele trecho de noite. Não era por causa das lendas. Também nunca fui de acreditar em assombração. Mas acontece que eu lembrava do que aconteceu com os meus amigos e ficava nervoso. Me dava tipo uma crise de ansiedade só de pensar que era para eu estar junto na noite em que morreram. Tínhamos combinado que iríamos a um show em Chapecó no sábado de noite. Só que durante a tarde eu estava tirando um cochilo no sofá e tive um sonho muito estranho. Sonhei que já estávamos indo para o show. Betinho, Rodrigo, Barata e eu. No som estava tocando Higway to Hell, do AC/DC, o que já seria de deixar qualquer um com a pulga atrás da orelha. Só que no sonho eu fiquei empolgado com a música e quis me esticar desde o banco de trás para aumentar o volume do rádio. Com isso acabei atrapalhando o Betinho, que estava dirigindo. Ele perdeu o controle do carro – o seu famoso Gol branco rebaixado – e acabamos saindo da estrada e capotando, lá na curva da zona. Quando o carro começou a pegar fogo eu acordei de supetão, molhado de suor, parecendo que ainda ouvia os gritos de desespero dos meus amigos dentro da minha cabeça enquanto eram queimados vivos.

            Senti uma queimação no estômago e um aperto no peito. Disse para mim mesmo que o suor devia ser porque eu estava com febre, mas hoje sei que estava apenas inventando uma desculpa. Eu fiquei apavorado por causa do sonho, isso sim. Liguei para os caras e disse que não iria no show porque estava doente. Passei a noite agitado, quase sem conseguir dormir até que de manhã veio a notícia. Já imagina, né? Os caras se acidentaram na curva da zona e estavam todos mortos. Queimados.

            Eu pirei com aquilo. Contei para todo mundo sobre o sonho. Acho que alguns acreditaram, outros não. Os meus pais pensaram que eu estava ficando meio louco e me levaram em psicólogo e psiquiatra. Comecei a fazer terapia e tomar medicamento, até praticamente me convencer de que estava tudo bem, que o sonho foi apenas uma coincidência, ou talvez nem tivesse ocorrido de verdade. O choque com a notícia da morte dos meus melhores amigos teria me induzido a criar uma memória falsa, algo assim.

            Com o tempo fui me sentindo melhor e passei a evitar pensar sobre aquilo. Só continuava evitando passar pelo local do acidente à noite. Até receber a tal mensagem da guria. Mulher mexe com a cabeça da gente, né? Com a de cima e a de baixo.

            Então, lá fui eu. Era quase uma hora da madrugada e a estrada estava deserta. Até a cidade vizinha, onde a guria morava, era apenas alguns minutos, mas tinha que passar pela curva da zona. Já comecei a ficar ansioso um quilômetro antes do local, mas tentei não dar bola. Quando cheguei no ponto exato, parecia que o meu coração iria saltar pela boca, mas assim que passei começou a aliviar. Mas, só por alguns metros. Começou aquele barulho e eu já deduzi o que era. Tive que parar, porque não tinha outro jeito. E, lá estava: pneu furado. Traseiro, lado esquerdo. Eu já tinha carteira de habilitação há seis anos, dirigia todos os dias, mas nunca tinha furado um pneu antes. E aí, por mais que não queira, começa a vir muitas coisas na cabeça. A mensagem surpreendente da guria, o  pneu furado pela primeira vez, poucos metros à frente do local do acidente, a estrada vazia, com fama de ser assombrada. Sabe quando o medo começa a tomar conta da gente?

            Fui até o porta-malas disposto a trocar o pneu tão rápido quanto um “pit stop” de Fórmula 1. Mas, é claro, o estepe estava completamente vazio. Eu nunca tinha lembrado de calibrar aquela porra desde que comprei o carro, três anos antes. Agora, me lembrando, percebo que não era verdade o que eu falei antes, sobre não acreditar nessas coisas de destino. Provavelmente eu sempre acreditei sim, mas negava, evitava ficar pensando porque tinha medo. Me esforçava para aceitar quando os médicos diziam que o sonho e tudo o mais eram apenas coisa de trauma, confusão da minha mente. Só que, naquela hora, tudo veio à tona e o medo foi virando pânico.

            Fiquei pensando no que fazer. Fechar o carro e ir a pé? Ainda faltava uns cinco quilômetros e a escuridão era quase total. Me trancar no carro e aguardar alguém passar para então pedir ajuda? Ali? Do ladinho do local onde os meu amigos fritaram até a morte? Sem chance. Ir até a zona em busca de socorro? Não ia adiantar. Estranhamente já estava fechada. Até o famoso letreiro vermelho de neon estava desligado. E o celular? Totalmente sem sinal.

            Se havia alguma outra opção naquele momento, não sei, porque não deu tempo de pensar. Vi faróis se aproximando, na descida. Cheguei a acreditar que era a minha salvação. Alguém iria parar, me ajudar e pronto, tudo resolvido. Só que não. Conforme o carro ia chegando mais perto, comecei a sentir uma sensação estranha. Era como se o ar de repente tivesse ficado mais pesado e aquele sentimento de pavor estivesse de volta com força total. Comecei sentir um cheiro forte de coisa queimada. E então eu ouvi. Highway to Hell tocando a todo volume no interior do veículo. Era um Gol branco e rebaixado que estava estacionando ali, bem ao meu lado. A película preta no para-brisa, as rodas cromadas. Era inconfundível.

                Eu não queria, realmente não queria, mas não consegui evitar. Olhei para dentro do carro e lá estavam Betinho, Rodrigo e Barata. Queimados, descarnados, mutilados, com os ossos à mostra, e ainda assim vivos – mortos-vivos – estendendo o que havia sobrado de seus braços na minha direção e gritando meu nome.

            Depois disso eu só lembro de partes do que aconteceu. Embarquei no meu carro, dei um cavalo de pau no meio da pista e toquei de volta na direção de casa. Fui acelerando tudo que dava, chorando e gritando de pavor. O pneu furado foi se despedaçando pelo caminho, perdendo lascas de borracha até se desmanchar. Daí foi aquela faisqueira da roda esmerilhando no asfalto, fazendo um barulhão infernal.

            Os meus pais e o meu irmão contam que larguei o carro no meio da rua, entrei gritando e me enfiei debaixo da cama. Não me lembro direito dessa parte. Dizem que fiquei três dias e três noites praticamente sem sair do quarto. Precisavam levar a comida e os remédios até lá, porque eu me recusava a sair a não ser para ir rapidamente ao banheiro.

            Com o carro, o estrago foi grande. Do pneu não sobrou nada, nem sequer um pedaço de arame. A roda já era. Entortou, lixou, se foi. O eixo estragou também e deu mais alguns problemas que não estou lembrando. Custou um dinheirão para arrumar tudo. No asfalto na frente de casa ficou um verdadeira canaleta no local onde o metal veio esmerilhando o chão. Tá lá até hoje e segue a se perder de vista.

            É claro que quase ninguém acreditou na minha história. Uns acham que eu estava drogado, outros pensam que eu tive um surto. Já faz um ano que isso aconteceu e agora eu tomo ainda mais comprimidos do que antes. Não saio mais na rua. Tranquei a faculdade e pedi demissão do emprego. Às vezes faço uns bicos, consertado ou formatando computadores para conhecidos, aqui em casa mesmo.

            No fundo não sei ao certo o que pensar sobre tudo isso. Acho que os remédios me deixam um pouco confuso. Em alguns dias tenho certeza que tudo foi real, em outros quase me convenço que poderia ser só coisa da minha cabeça mesmo. Eu liguei para a guria um tempo depois daquela noite e ela me disse que nunca me mandou mensagem nenhuma. E o pior é que nem tenho como conferir, porque perdi o celular no desespero de fugir daquele lugar. Meu irmão e meu pai foram até lá, procuraram, mas não acharam.

            Um dia eu assisti um filme que falava sobre a possível existência de realidades paralelas por onde a nossa consciência poderia transitar, muitas vezes sem que a gente se desse conta. Achei intrigante e fui pesquisar na internet. Até comprei uns livros sobre o assunto. Então li que existem teorias sobre essas múltiplas realidades alternativas, onde diferentes versões de nós mesmos levam vidas que podem ser muito parecidas ou muito diferentes daquela que consideramos “a verdadeira”. Se realmente há casos onde se pode passar de uma para outra, fico me perguntando se não existe uma versão onde eu causei o acidente que levou à morte os meus amigos e, de alguma forma, transferi minha consciência para cá, nessa dimensão onde não fui ao show com eles e, assim, não morri. Há quem acredite que certos lugares são mais propícios a se passar de uma realidade para outra, como se fossem portais dimensionais. Será que aquele trecho da estrada, que já ganhou até apelidos como “Estrada da Morte” e “Rota do Inferno” não é um desses? Será que todas as histórias de assombração sobre aquele lugar não têm ligação com isso? Será que os meus amigos mortos não atravessaram de uma dimensão para a outra com a intenção de me buscar, já que causei a morte deles e “fugi” para outra realidade? Aquele sonho estranho poderia muito bem ter sido isso, um lapso de consciência que me transferiu daquela dimensão para esta.

         Não sei se algum dia vou encontrar a resposta. Não sei se em algum momento vou conseguir lidar melhor com isso tudo. Terei uma vida normal novamente? No momento acho difícil. Assim que anoitece tomo meu remédio para dormir e vou para a cama, com muito medo de acordar no meio da madrugada ouvindo Highway to Hell e vendo meus amigos mortos me chamando para partir com eles a caminho do inferno.