4 de mai. de 2021

A NOITE DA VERDADE

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Robério estava exultante. Havia saído de uma jornada de trabalho monótona e cansativa como outra qualquer, e, por ser sexta-feira, decidiu fazer aquela escala tradicional no seu bar favorito antes de retornar para casa. Foi aí que as coisas começaram a melhorar. Uma garota chegou de repente e sentou-se no balcão, ao seu lado. Ela tinha pele clara, cabelos negros, longos e lisos, e usava um vestido vermelho, curto e sensual. Possuía também olhos escuros e atraentes que, sem nenhuma cerimônia, passaram a encarar Robério de forma provocativa. Depois de dez minutos os dois já estavam bebendo e conversando animadamente. Uma hora mais tarde o casal se encontrava entrando na casa da moça de forma afoita, entre beijos calorosos e carícias lascivas.

            – Preciso ir ao banheiro. – disse Robério, enquanto tirava o casaco.

            – É a porta no final do corredor – indicou a moça apontando para a direita, ao mesmo tempo em que descalçava os sapatos. – Vou te esperar no quarto. Venha logo.

            O rapaz seguiu na direção indicada com um sorriso estampado no rosto, acreditando que a sorte havia lhe estendido a mão. Porém, poucos segundos depois, essa sensação de euforia revelou sua face ilusória. Quando chegou à entrada do banheiro, Robério olhou casualmente para a porta localizada no lado esquerdo e, através de uma fresta entreaberta, vislumbrou algo que fez o seu sangue gelar. Aparentemente não era nada de extraordinário, apenas um monte de coisas – algumas parecendo serem muito antigas – espalhadas aleatoriamente pelo chão de um quarto sem mobília nenhuma. Havia peças de roupas, tanto masculinas quanto femininas, de várias cores e modelos diferentes, joias, óculos, maletas, molhos de chaves, bolsas, carteiras, chapéus e calçados, além de alguns objetos de natureza diversa, como discos de vinil, celulares, fitas K7, aparelhos de MP3 e outros artefatos do tipo.

            Robério não sabia o significado daquilo tudo e, ainda que a sua mente se esforçasse em afirmar que não era nada de mais – talvez a garota trabalhasse com antiquários – crescia em seu interior uma terrível sensação de angústia, do tipo que muito raramente se manifesta, mas que quando surge é indicativo que algo de ruim vai acontecer.

            – Eu falei que o banheiro era na porta no final do corredor. – disse a moça, surgindo às costas de Robério de forma tão sorrateira que o susto fez seu coração disparar.

            – O que são todas essas coisas?! – indagou o rapaz, com voz trêmula.

            – Droga, eu pensei que a gente iria transar – suspirou a moça, em tom pesaroso – Porque você precisava xeretar aí?

             O que são todas essas coisas?! – repetiu Robério, quase que totalmente invadido por uma sensação de pavor tão palpável que fazia o suor escorrer pelo seu peito e empapar sua camisa.

            – São souvenirs. – respondeu a garota, de forma impassível.

            – Souvenirs?! Que tipo de souvenirs?!

            – Lembranças dos lobisomens que eu matei. – explicou a moça, dessa vez com um tom de voz estranhamente alterado.

            Robério deu um passo atrás e suas costas se chocaram com a parede do corredor. Além da voz, algo mais parecia diferente na garota.

         – Eu sou um lobisomem que odeia outros lobisomens – continuou a moça, falando de forma pavorosamente gutural – e, quando os mato, gosto de guardar algo para recordação.

            Vendo a moça se transformando em algo inumano diante de seus olhos, Robério cogitou sair correndo ou ao menos gritar por socorro, mas, ao invés disso, o pânico que o dominava só permitiu que pronunciasse uma única frase com voz embargada:

            – Eu não sou um lobisomem!

            – Claro que não! – respondeu a criatura que agora muito pouco lembrava a bela mulher de outrora. – Você é apenas diversão e comida!

              No instante seguinte, o monstro agarrou Robério pelo pescoço, suspendeu-o no ar com extrema facilidade e lhe desferiu uma violenta mordida no ombro esquerdo. Tomado por uma dor absurda, o rapaz gritou, se debateu e esperneou, mas percebeu que seria impossível escapar das garras da besta. Quando as esperanças já lhe abandonavam junto com o sangue que escorria do ferimento, Robério percebeu que a criatura simplesmente o atirou no chão com truculência, fazendo com que fosse parar na divisa entre a porta do corredor e a sala de estar.

            Tentado resistir à dor lancinante que o atordoava, o rapaz observou com surpresa que o monstro passou por ele caminhando lentamente e adentrou na sala movendo sua horrenda cabeça para cima em movimentos circulares, como se estivesse farejando algo.

            Um segundo depois a janela à esquerda da sala explodiu em milhares de estilhaços quando através dela saltou outro lobisomem que aterrissou violentamente sobre o corpo do primeiro. Robério teve a impressão que desmaiaria de susto, mas, como isso não se consumou, ele pode observar as duas bestas se engalfinhando em uma luta mortal onde, em meio a sangrentas patadas e mordidas, rolavam pela sala inteira, derrubando e quebrando tudo que houvesse pela frente.

         Ainda que o monstro que atacara Robério resistisse ensandecidamente, era visível que a criatura recém-chegada levava vantagem, pois, graças ao ataque surpresa, conseguiu desferir de imediato uma devastadora mordida na garganta do oponente, o que ia progressivamente minando suas forças na medida em que o sangue fluía do ferimento.

            Depois de instantes que pareceram ao rapaz muito mais longos do que realmente foram, seus olhos vislumbraram o corpo nu e sem vida da garota estendido em uma poça do seu próprio sangue. Quase ao mesmo tempo, o monstro vitorioso iniciou uma bizarra metamorfose que o converteu à forma humana. Era um homem de meia idade, baixo, magro e de cabelos castanhos. Porém, o que realmente chamava a atenção em sua aparência era a profusão de cicatrizes espalhadas por todo o corpo – as piores no pescoço e nos ombros – e as anomalias que ele ostentava, como a ausência da orelha esquerda e uma deformidade na perna direita, que o fazia caminhar mancando.

            – Foi muito difícil te encontrar, mas dessa vez acabei com a sua raça, puta desgraçada! – exclamou o homem, sem dar atenção a Robério. – Você não foi a primeira a tentar me matar, mas roubar o meu trabalho de uma vida inteira, isso jamais!

            O sujeito caminhou com certa dificuldade até o interior do corredor que levava aos outros aposentos da casa. Nesse meio tempo, Robério se escorou na parede e tentou se levantar. Teve a impressão de que conseguiria, mas, como o indivíduo retornou logo em seguida, julgou mais conveniente ficar sentado, imóvel e em silêncio.

            O homem reapareceu na sala carregando uma maleta de couro antiga e surrada. Ergueu do chão uma cadeira e sentou-se com o objeto no colo. Havia um enorme sorriso de satisfação no seu rosto.

            – Essa puta achou que tinha me matado e ainda roubou a única coisa valiosa que eu tenho! – disse o desconhecido, se dirigindo pela primeira vez a Robério. – Ela devia ter se certificado da minha morte. Esse foi seu erro.

            O rapaz ficou surpreso com o tom de voz amistoso daquele indivíduo, e mais ainda quando ele abriu a pasta e começou a retirar de lá uma série de fotografias.

            – Veja – disse o homem, apontando na direção de Robério uma antiga foto em preto e branco onde se via um garotinho sorridente – Esse é o meu filho, Sílvio, a única coisa boa que fiz na vida.

            Em seguida, outras fotos foram sendo mostradas ao rapaz. A maioria era do mesmo menino, que devia ter uns três ou quatro anos de idade. Havia algumas em que o sujeito aparecia segurando a criança no colo e Robério reparou que nos retratos ele aparentava ter exatamente a mesma idade atual, mas sem as cicatrizes e ainda com as orelhas intactas.

            – Ele morreu no ano passado, aos oitenta e quatro anos – disse o desconhecido, com lágrimas nos olhos – Me deu três netos e dois bisnetos, até agora.

            Como Robério apenas ouvia, sem nada responder, o homem prosseguiu com seu relato.

            – Eu fui atacado por um lobisomem pouco depois que as últimas dessas fotos foram feitas. Sílvio cresceu e viveu toda a sua vida pensando que eu havia morrido em uma caçada.

            – E você nunca tentou... – balbuciou Robério, tentando levar a conversa adiante, na expectativa de que a sorte voltasse a lhe sorrir e ele pudesse sair vivo dali.

          – Me reaproximar dele?! – completou o sujeito. – Claro que não! Eu logo entendi no que havia me transformado. Se eu não sumisse só iria desgraçar a vida de todos que amava. Mas eu sempre o acompanhei de longe. Chorei por não poder abraçá-lo nos momentos de dificuldade, vibrei com suas vitórias, sofri por não participar da sua vida, por não desempenhar o meu papel de pai nos bons e maus momentos. Mas, foi melhor assim. Ele teve uma vida boa e plena, foi um homem honrado e me deu muito orgulho. Lembrar disso me deixa feliz.

            O desconhecido fechou a maleta e levantou-se bruscamente da cadeira, fazendo Robério se encolher instintivamente contra a parede.

            – Eu não vou matá-lo – disse o sujeito, percebendo o medo do rapaz – Faz muito tempo que só mato quando é extremamente necessário.

            Robério nem teve tempo de sentir-se aliviado, pois o indivíduo logo se encarregou das más notícias.

            – Preciso lhe dizer algo: você foi mordido, portanto, agora é um de nós. Amanhã, quando a lua cheia surgir novamente, você vai se transformar numa coisa horrível como aquela em que eu e a vadia ali nos transformamos – o tom de voz do desconhecido era ao mesmo tempo calmo e pesaroso. – Vai virar um monstro furioso e descontrolado que atacará qualquer um que aparecer na sua frente. Não irá envelhecer e nem morrer, a não ser pela prata ou pelas garras de outro lobisomem, mas terá, na sua consciência, que conviver com o peso de todas as mortes que ocorrerem no seu caminho. E isso, meu rapaz, é a certeza de que um dia sua alma vai arder no inferno. Nenhum sangue pode ser derramado em vão.

            – Você disse que não mata há anos...! – resmungou Robério, sem conter as lágrimas que escorriam por sua face.

         – Se você não for morto e nem enlouquecer, o que acaba acontecendo com a maioria de nós, depois de um bom tempo e fazendo um grande esforço, talvez consiga ter controle sobre a transformação e certa lucidez na forma de fera. Mas, não se iluda, isso não garante nada. É como o alcoólatra que se embebeda para esquecer a sua vida de merda, mas, quando o porre passa, a merda toda continua lá.

            Desolado, Robério levou as mãos ao rosto e começou a chorar convulsivamente. O desconhecido observou a cena por alguns segundos e então tornou a sentar-se.

            – Eu posso lhe dar um presente! – disse o sujeito, com certa empolgação, ao mesmo tempo em que abriu novamente sua maleta e retirou algo de um fundo falso muito bem camuflado – Uma oportunidade que não foi dada a mim...

            Tentando conter as lágrimas, o rapaz olhou para o desconhecido e uma pistola calibre 22 foi oferecida em sua direção. Sem entender exatamente o que aquilo significava, Robério instintivamente pegou a arma com mãos trêmulas.

               – Está carregada com uma bala de prata – disse o indivíduo ao entregar a pistola – Tenho ela há muito tempo, para o caso de alguma emergência. Acredito que ainda funciona.

             – Você... você quer... que eu me suicide?! – balbuciou o rapaz.

            – Se fizer isso agora, estará destruído apenas o seu corpo. Se morrer depois de já ter se transformado e começado a matar, terá condenado também a sua alma.

            O sujeito começou a caminhar na direção da porta de saída, e então se voltou para Robério.

            – Acho bom você decidir-se logo.  Minha audição de lobo já está captando as sirenes da polícia a alguns quarteirões daqui. Devem ter sido os vizinhos.

            Sem acrescentar mais nada, o desconhecido saiu da casa e atravessou rapidamente o amplo pátio que o separava da rua. Não era nada sensato um homem nu e ensanguentado ficar zanzando a pé por aí carregando uma maleta, ainda mais com a polícia se aproximando. Por isso ele decidiu que precisava de um carro.

            Trinta segundos depois, um Gol branco surgiu descendo a rua. O desconhecido enfiou-se na frente do veículo, obrigando o motorista – um homem gordo e baixo, com um bigode volumoso – a frear bruscamente.

            – Preciso do seu carro. Você vai me entregar numa boa ou eu terei que matá-lo? – disse o sujeito, sorrindo em seguida e deixando à mostra enormes presas pontiagudas que, somadas aos seus olhos vermelhos reluzentes, davam um vislumbre do monstro que se ocultava sob a forma humana.

            Soltando um grito abafado, o motorista praticamente se jogou para fora do carro e saiu correndo o mais rapidamente que podia. Quando o desconhecido sentou-se ao volante, escutou o estampido de um tiro vindo do interior da casa de onde saíra.

            – Sábia decisão, garoto, sábia decisão. – murmurou ele, pisando fundo no acelerador.

27 de abr. de 2021

HORA DE LER UM LIVRO DE VAMPIROS

 

 

Por Adriano Siqueira

 

            O segurança da Biblioteca estava segurando uma lanterna e andava pelos corredores verificando as salas quando viu uma mulher procurando livros na estante. Ele cuidadosamente alertou:

            — Senhorita! A biblioteca já fechou. Você não deveria estar aqui nesta escuridão. Por favor você deve se retirar.

            A mulher continuava olhando os livros na estante e ignorou o aviso do segurança. Ele se aproximou mais e novamente tornou a alertar.

            — Você não ouviu o que eu disse? Já estamos fechados. Você não pode permanecer aqui. Por favor saia ou chamo a polícia.

            Ela olhou para o segurança e com alguns livros na mão disse calmamente:

            — Eu só estou escolhendo alguns livros para ler. Nada de mais. Continue o seu trabalho. Logo vou partir.

            — Você não pode levar nada daqui a esta hora. Deixe os livros aonde estão e saia agora mesmo.

            — Sinto muito, mas eu quero levar estes livros. Depois eu devolvo. Prometo.

            — Olha. Eu não posso deixar você fazer isso. Os livros aqui devem ter uma autorização para sair deste local. Sua promessa não é o suficiente. Por que não vem mais cedo e assim você pode pegar o seus livros.

            — Mas eu só posso visitar a biblioteca de dia. Eu só quero ler. Por que vocês humanos são tão egoístas e não deixam a biblioteca aberta 24 hs? Acham que só os humanos podem visitar as bibliotecas? Nós também temos o direito de entrar nos locais públicos. Vocês é que deveriam abrir as portas para todos. São raras as bibliotecas que abrem à noite. Eu vou levar estes livros. E minguem vai me impedir.

            A mulher levanta o segurança com apenas uma mão e o joga para longe.

            — Vocês humanos tem muito o que aprender. Nós sempre conseguimos o que queremos. Somos eternos.

            — Como pode ter tanta força? Q-quem é você?

            — Eu só digo meu nome para quem vai morrer.

            — Você é louca. Eu vou perdir ajuda.

            A mulher corre até o segurança e o levanta. coloca a mão no seu pescoço, se aproxima e concluí.

            — Você já tomou muito o meu tempo. Isso me deixou com fome.

            — O que está fazendo? Seus dentes... Não se aproxime.

            — Queria saber o meu nome... Eu sou Ramanga. E você é meu jantar.

            — Nãooo! Argh!

            A vampira pega seus livros e saí calmamente da biblioteca.

 

19 de abr. de 2021

OS DESEJOS PROIBIDOS

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Valdemar aproximou-se da borda da muralha e olhou para o lado de fora. Lá embaixo havia uma charrete parada diante do portão. Ele logo reconheceu o homem que segurava as rédeas da condução. Era Juvenal, seu irmão mais velho.

            – Abram essa coisa! Depressa! – esbravejou Juvenal, impaciente.

            Poucos segundos depois, o pesado e rústico portão de cedro foi aberto e a charrete adentrou o enorme pátio cercado da propriedade. De dentro do coche, Helena observava com grande interesse a alta muralha construída com robustas toras de madeira e que formava um círculo em torno do terreno no qual se encontravam a casa grande, a residência dos empregados, o estábulo, o chiqueiro, o galinheiro e o celeiro.

            – Fez tudo que te pedi? Mandou embora as mulheres? – perguntou o ansioso Juvenal, tão logo desceu da charrete.

            – Sim – respondeu Valdemar. – Rodrigo levou a mãe, as irmãs e também as empregadas para a fazenda do Coronel Teodoro. Saíram ao amanhecer, então já devem estar chegando lá.

            – Ótimo! – exclamou o visitante. – E quantos homens ficaram aqui?

            – Além de mim e do José, ficaram mais dois.

            – E os outros peões?

            – Um foi com o Rodrigo levar as mulheres, e os outros dois estão no campo cuidando do gado.

            – A que distância eles estão?

            – A uns dez quilômetros no sentido leste.

            – Quem bom! Acho que, se ficarem lá, não correm perigo.

            Valdemar se aproximou de Juvenal, colocou a mão sobre seu ombro e falou em tom bastante singelo:

            – Meu irmão, sabe que eu te respeito muito... Fiz tudo que me pediu assim que recebi sua mensagem... Mas agora creio que mereço saber o que está acontecendo.

            – Certo, Valdemar, tem razão. Mas antes, será que tu terias um bom vinho para tirar a poeira da garganta do teu velho irmão?

            – Mas é claro! Tenho no porão alguns garrafões que vieram direto de Caxias do Sul! Vamos até a casa grande!

            – Muito bem! Mas antes precisamos acomodar Helena. Ela está no coche.

            – Helena?! Mas por que a trouxe?!

            – Prometo que depois te explicarei tudo... – disse Juvenal, com indisfarçável constrangimento.

            Valdemar consentiu com um aceno de cabeça e em seguida se dirigiu ao rapaz que conversava com os peões perto do portão.

             – José, venha até aqui! Cumprimente seu tio Juvenal e depois leve a sua prima até a cozinha da casa grande. Faça para ela um bom chimarrão e prepare algo para comer.

            O jovem cumprimentou o tio de maneira discreta e respeitosa, seguindo logo depois na direção da charrete para chamar Helena.

            Valdemar ordenou que os peões desatrelassem os cavalos da charrete e levassem-nos ao estábulo. Em seguida, seguiu com Juvenal na direção da casa grande.

            Do lado de fora da grande muralha de madeira, alguém permanecia oculto em meio à vegetação, esperando pacientemente pelo por do sol.

 *

            Cheio de agitação, Juvenal caminhava em círculos defronte a janela da sala de estar, bebericando uma taça de vinho. Valdemar estava sentado diante dele, observando-o com indisfarçável desconfiança.

            – Tudo bem, meu irmão... – disse Juvenal. – Vou te contar tudo, desde o início.

            – Até que enfim, tchê! Estou ansioso para saber que diabo está acontecendo! – exclamou Valdemar.

            – Pois que seja – consentiu Juvenal – Essa barbaridade toda começou a cerca de um mês, naquela semana em que fui caçar com os rapazes. Creio que os peões da minha fazenda estavam entretidos demais com a lida do campo e as empregadas não foram atenciosas como pedi, pois em uma tarde em que Helena estava sozinha no pomar, um vivente apareceu não sei de onde e se aproximou dela. Tu conheces muito bem a Vanda, minha esposa... Sabe que ela não é prendada como se esperaria. Decerto não preveniu direito a guria para casos como este.

            – Meu irmão! Tu estás querendo dizer que... Que esse sujeito desonrou a minha sobrinha?!

            Juvenal estava tão constrangido que sequer conseguia olhar no rosto do irmão. Apenas consentiu com um aceno de cabeça.

            – Jesus Cristo! – exclamou Valdemar, levantando-se da cadeira. – Mas quem é esse vivente que parece não ter medo de ser castrado?!

            – Parece ser um estrangeiro, um italiano que surgiu por aquelas bandas não se sabe a troco de quê – disse Juvenal. – Mas isso não é o pior, meu irmão... Para que tu tenhas ideia da situação, te conto que depois daquela tarde a desgramada da Helena começou a sair às escondidas todas as noites para se encontrar com sujeito no meio do mato. Quando os peões descobriram, arrastaram a guria de volta para casa e preveniram o vivente para que sumisse da região antes que eu voltasse da caçada.

             – Pois deviam ter mandado chumbo nele ali mesmo!

            – Concordo – disse Juvenal, enchendo sua taça de vinho. – Mas o negócio foi ficando cada vez pior. Na manhã seguinte essa mesma dupla de peões que tinha enxotado o estrangeiro apareceu morta na beira do rio. Os dois homens estavam estraçalhados, como se tivessem sido atacados por uma onça. Uma onça gigante, pelo tamanho do estrago. Quando eu e fiquei sabendo do ocorrido, dei uma surra na sem-vergonha da Helena e mantive-a trancada no quarto, dia e noite. Fiquei tão furioso que cobri de bofetadas também a Vanda, pra ver se ela aprendia a ser uma mãe mais atenciosa. Na noite seguinte, o tal sujeito apareceu no gramado diante da minha casa! Quando uma das empregadas me avisou, saí atirando em companhia de um peão e do meu filho Maurício. Acho que não acertamos nenhum tiro, pois antes de desaparecer no meio do mato, ele ainda gritou com aquele sotaque irritante que iríamos nos arrepender muito por impedi-lo de se aproximar da Helena. De lá pra cá ele não foi mais visto, mas outros dois peões apareceram mortos, além de doze cabeças de gado.

            – Mas que barbaridade! – exclamou Valdemar – Tu achas que isso é obra do sujeito? Será que ele também tem alguma coisa com o caso de todas aquelas minhas vacas que foram despedaçadas há meses atrás?

            – Olha, meu irmão... Vou te dizer o que penso... – sussurrou Juvenal, se aproximando de Valdemar. – Aquele vivente não parece um sujeito normal! Quando vi os olhos dele... Pareciam olhos de bicho, não de gente!

            – Eu não entendo o que tu queres dizer!

            – Estou começando a acreditar que o estrangeiro tem parte com o diabo!

            – Parte com o diabo?!

            – Sim! Os antigos diziam que quem fazia pacto com o capeta ficava endemoniado... Meio homem e meio... Outra coisa. Entende porque pedi pra levar embora as mulheres e segurar contigo alguns homens armados?  Acho que o bicho ruim vai aparecer, procurando pela Helena... Então a gente enche ele de chumbo!

            – Mas, meu irmão... Tu acreditas mesmo nisso?

            – Valdemar, pense um pouco! Uma onça poderia ter matado três vacas, ou talvez quatro. Mas somando as minhas e as suas já foram mais de vinte, em poucos meses. E os quatro homens?! Estavam despedaçados, com as tripas espalhadas pelo chão e os ossos das pernas roídos! Uma onça não faz isso!

            – Tu não pensaste em ir até o povoado para falar com o padre Rômulo?

            – Padre Rômulo?! – exclamou Juvenal, com espanto. – Meu irmão, quando foi a última vez que tu foste ao povoado?

            – Bem, foi antes de construirmos a muralha. Acho que faz mais de três meses.

            – Percebe-se! Então, tenho que te dar a infeliz notícia: O padre Rômulo está desaparecido há várias semanas. Sumiu enquanto atravessava a floresta. Estava indo à minha casa, depois que eu lhe enviei uma mensagem dizendo que precisava encontrá-lo com urgência.

            Valdemar permaneceu alguns instantes calado e imóvel, como se pasmado com as informações que recebera. Em seguida, virou-se e tomou o rumo do interior da residência.

            – Aonde tu vais? – perguntou Juvenal.

            – Pegar a minha espingarda! – respondeu Valdemar, sem olhar para trás.

            Juvenal permaneceu na sala, observando através da janela a escuridão da noite se apossando dos últimos resquícios do dia que se esvaia em tons avermelhados. Poucos minutos depois, quase no mesmo instante em que Valdemar retornou trazendo sua espingarda, um dos peões entrou pela porta principal de forma alvoroçada.

            – Coronel Valdemar! Um vivente surgiu de dentro do mato e está plantado lá na frente do portão! – disse o ofegante empregado.

            Valdemar e Juvenal se entreolharam afoitos e saíram em direção ao pátio, seguidos pelo peão. De forma apreensiva, subiram as escadas que levavam até a borda interna da muralha e se posicionaram ao lado do outro empregado que permanecia lá, olhando com desconfiança para fora.

            – É ele! É o desgraçado do qual eu estava falando! – gritou Juvenal, tão logo vislumbrou o homem que se encontrava do lado externo.

            Diante do portão, estava parado um rapaz que em nada se assemelhava aos sujeitos que estavam do outro lado da grande divisória de madeira. Era loiro, tinha olhos azuis e vestia roupas aristocráticas, bem diferentes das tradicionais pilchas e bombachas tão usuais entre os habitantes da região. Também chamava a atenção uma grande cicatriz que ele ostentava no lado esquerdo da face.

            – Coronel Juvenal! De nada adianta o senhor achar que pode esconder Helena de mim... – disse o desconhecido, com um sotaque tão carregado que chegava a dificultar a compreensão de suas palavras. – Nós temos uma ligação muito forte. Deixe-a vir até mim, para o bem de todos que se encontram detrás desta muralha.

            – Mas que vivente mais lacaio! – gritou Valdemar, engatilhando sua espingarda – Além de desonrar a minha sobrinha ainda tem coragem de vir até aqui desafiar o meu irmão e ameaçar a minha gente?!

            Nesse instante, uma súbita gritaria fez com que as atenções se voltassem para o pátio interno da propriedade. Era Helena que corria na direção do portão, sendo perseguida pelo atrapalhado José, que tentava contê-la.

            – Ângelo! Ângelo, meu amor! – exclamava a moça. – Abram esse portão e me deixem sair!

            Do lado de fora da muralha, o rapaz começou a rir de forma provocativa tão logo ouviu a voz da moça chamando pelo seu nome. Possuído pelo ódio, Valdemar não hesitou, apontou sua espingarda na direção do indesejado visitante e atirou. A bala atingiu Ângelo no ventre, fazendo-o gritar e curvar-se levando as mãos ao ferimento, de onde já começava a verter o sangue que manchava de vermelho a sua camisa branca. Cambaleante, ele correu da forma mais rápida que pode para dentro da mata.

            – Coronel Valdemar! Deixe-nos ir atrás daquele verme! – exclamou um dos peões.

            – Sim, vão! – ordenou o patrão. – E de preferência tragam o sujeito vivo para que a gente possa castrá-lo antes de cortar a sua garganta! Ele vai ver o que acontece com quem se mete com as mulheres da nossa família!

            Com rapidez, os dois empregados desceram as escadas, abriram o pesado portão e saíram empunhando suas armas no encalço do fugitivo. Segundos depois já haviam desaparecido em meio à escuridão da mata.

            A dupla de irmãos dirigiu-se então até Helena, que naquele momento chorava de forma estridente, sendo amparada por José.

            – Sua rapariga desgramada! – gritou Juvenal, atingindo a filha com uma forte bofetada no rosto. – Será que nunca mais vai parar de me fazer passar vergonha?!

            Com a violência do golpe, a moça caiu ao chão levando as mãos ao rosto e chorando de forma ainda mais desesperada.

            – José, pegue a sua prima e leve-a para quarto de visitas. Confira se as janelas estão bem trancadas e passe a chave na porta! – ordenou Valdemar.

            O rapaz obedeceu a ordem do pai de imediato, ajudando Helena a se levantar e conduzindo-a para o interior da casa grande. Juvenal observava a cena sem conseguir disfarçar o grande constrangimento que o afligia.

            – Fique tranquilo, meu irmão! – disse Valdemar, colocando a mão sobre o ombro de Juvenal. – A Helena é teimosa feita uma égua xucra, mas logo a gente a amansa. E quanto ao estrangeiro, pode ter certeza que ele é um homem comum, igual a nós! Com uma bala no bucho ele não vai longe. Logo os peões vão voltar trazendo ele de arrasto e então veremos o quão macho ele é com um facão no meio dos bagos!

            – Ainda não estou convencido disso. – murmurou Juvenal, observando o clarão da lua cheia que começava a raiar por detrás das colinas conferindo um tom suave e prateado à paisagem dos pampas.

 *

            No interior da casa grande, José já havia acomodado Helena no quarto de visitas e conferido as janelas. Estava prestes a sair e chavear a porta por fora, conforme a orientação do pai, quando a moça – que até então permanecera calada e cabisbaixa – apressou-se em sua direção.

            – Primo José, posso te fazer uma pergunta? – indagou Helena, em um tom de voz suave e delicado.

            – Claro, prima. O que é? – disse o rapaz, de forma encabulada.

            Helena deu mais dois passos na direção de José, encarando-o de forma ostensiva e posicionou seu rosto a poucos centímetros do dele.

            – Tu já andas te iniciando com as empregadas?

            O rapaz enrubesceu com a pergunta da prima. Sentiu-se muito constrangido com sua ousadia e petulância ao tocar em um assunto como aquele de forma tão direta. Mas, ao mesmo tempo sentiu-se também invadido por uma grande excitação. Desde que Helena chegara ele tinha reparado em como ela havia se tornado uma moça extremamente sensual, onde os olhos verdes e os longos cabelos castanhos conferiam um realce todo especial à sua beleza. Naquele momento, José estava convencido de que homem algum ficaria imune aos seus encantos, e com ele não seria diferente.

            – O que é isso, prima?! Deixe de fazer pergunta besta! – exclamou José, tentando em vão não deixar transparecer o quanto estava encabulado.

            De forma brusca, Helena apoiou sua mão esquerda no peito do rapaz, empurrando-o contra a parede, ao mesmo tempo em que introduzia a mão direita entre as suas pernas. Em seguida, a moça encostou seus lábios de forma lasciva na orelha do aparvalhado primo e sussurrou:

            – Ah, José, tu não queres fazer da tua prima a tua mulherzinha...?

            O contato da pele macia e o perfume adocicado dos cabelos da moça contribuíram de forma decisiva para romper a resistência do desconcertado rapaz. No instante seguinte os dois já estavam sobre a cama, compartilhando da tarefa de arrancar o vestido o mais rapidamente possível do corpo de Helena.

 *

            Próximos ao portão, Valdemar e Juvenal fumavam e caminhavam em círculos, de forma impaciente e apreensiva.

            – Não entendo porque estão demorando tanto! – exclamou Valdemar. – ferido do jeito que estava, aquele peralta não poderia ter ido muito longe!

            – Eu te disse, meu irmão! – retrucou Juvenal. – O sujeito não é normal!

            Como se endossando esta última afirmação, naquele exato instante uma série de gritos angustiantes começou a ressoar do lado de fora da muralha.

            – Coronel Valdemar! Coronel Valdemar, abra o portão, pelo amor de Deus! – suplicava a voz vinda de fora.

            Sem perder tempo, os irmãos abriram o robusto portão e vislumbraram diante de si a terrificante visão de um dos peões que se aproximava rastejando, repleto de lacerações, coberto de sangue e sem parte da perna direita, que havia sido mutilada na altura do joelho. Faltavam-lhe também alguns dedos de ambas as mãos.

            – Aquele gringo é o tinhoso, Coronel! É o tinhoso! – exclamava o homem, com as últimas forças que lhe restavam – Se o senhor visse o que ele fez com o Arlindo...! Que Deus os proteja, porque ele está vindo...! Ele está...

            Incapaz de resistir por mais tempo, o peão exalou seu último sopro de vida e calou-se para sempre. Apavorados, os irmãos entreolharam-se por uma fração de segundos e correram para o lado interno da muralha. Estavam tão apressados e concentrados em trancar o portão que sequer se preocuparam em arrastar o corpo do empregado para dentro.

 *

            No interior da casa grande, o quarto de hóspedes fervilhava de desejos e luxúria. Com seu corpo quente e suado colado ao de José, Helena não cessava de falar-lhe ao ouvido todas as excitantes idéias que lhe vinham à mente:

            – Primo... Tu vais fazer comigo tudo aquilo que o Ângelo faz? Tu vais, primo...?

            José não se preocupava em responder, pois estava imerso em um turbilhão de sensações tão intensas que inebriavam quase que por completo sua racionalidade. Porém, ele teve a vaga impressão de ter percebido algo diferente no tom de voz da prima. Algo inquietantemente diferente.

            – Tu vais me morder, primo? Vais me morder do jeito que o Ângelo me morde...?

            Essa última frase soou tão grave e áspera aos ouvidos de José que ele chegou a ter um sobressalto. Abriu os olhos e, de forma impulsiva, segurou Helena pelos ombros e afastou-a do seu corpo. Foi somente nesse momento que ele prestou atenção nas cicatrizes de mordidas que ela possuía na base do pescoço, no seio esquerdo, na barriga e na parte interna das coxas. Mas isso ainda não era o mais assustador. Sob a tênue luz do luar que entrava através dos vidros da janela, o perplexo rapaz viu a prima se converter em algo inumano e horrendo, que em nada se assemelhava com a moça sedutora e deslumbrante com quem ele havia se deitado alguns minutos antes.

            O monstro que antes fora Helena saiu de cima da cama, que começava a ceder sob o seu peso, e emitiu um urro ameaçador na direção de José. Naquele momento o rapaz já estava com lágrimas nos olhos e, mesmo estando nu, se precipitou para o corredor na intenção de chegar até o seu próprio quarto, onde costumava deixar uma de suas armas. Porém, não conseguiu dar mais do que três ou quatro passos antes que o lobisomem o alcançasse e dilacerasse sua garganta com uma única e vigorosa mordida, que fez com que seu sangue espirrasse de encontro às paredes e manchasse de vermelho os antigos retratos de família que ali se encontravam emoldurados.

 *

            Do lado de fora da casa grande, Juvenal e Valdemar não ouviram nem os urros do monstro e nem o grito de agonia de José, pois estavam entretidos demais com os barulhos não menos sinistros que vinham do outro lado do portão.

            – Virgem Santíssima! Aquela coisa já está ali fora! – exclamou Juvenal, cheio de horror.

            – Seja lá o que for, pelos barulhos deve estar comendo o corpo do peão! – assentiu Valdemar, igualmente terrificado.

            – Precisamos de mais armas! Rápido, tchê!

            – Sim! Vamos até a casa grande chamar o José e pegar uma espingarda pra ti também!

            Os dois homens correram na direção da casa principal. Quando estavam a pouco mais de dois metros de seu objetivo, a porta da frente da residência veio abaixo e através dela surgiu o lobisomem. Os irmãos ficaram pasmos e sem ação diante da terrificante visão.

            – Cristo! O que é isso?! Como é possível?! – exclamou Valdemar, um segundo antes de o monstro atingi-lo com uma patada que lhe arrancou a espingarda das mãos e em seguida com outra tão violenta que dilacerou seu rosto de tal forma que os ossos da face ficaram descarnados e expostos.

            Ao vislumbrar o corpo do irmão tombar sem vida, Juvenal ansiou sair correndo, mas não passou disso, um inútil anseio. O lobisomem agarrou-o pelo pescoço, suspendendo-o no ar e depois o arremessou à distância, fazendo-o estatelar-se no chão. Antes que o atordoado homem pudesse se levantar, a besta fechou suas garras poderosas em torno do seu tornozelo direito e saiu arrastando-o na direção do portão da propriedade que, naquele instante, já começava a ceder sob as pancadas da criatura que o golpeava com violência pelo lado de fora.

            Sem largar a perna de Juvenal, que gritava em desespero, o lobisomem que o segurava ajudou a atacar o portão, de forma que dentro de poucos instantes a robusta estrutura não resistiu às avarias e tombou sob o impacto dos golpes. O luar iluminou então o tétrico momento em que os dois monstros ficaram frente a frente, entreolharam-se com afeição e depois voltaram suas atenções para o apavorado homem que ali se encontrava, a mercê de sua fúria voraz.

            A partir de então as bucólicas paisagens noturnas dos pampas gaúchos foram invadidas por uma bizarra e intensa sinfonia de gritos e uivos que ecoaram para além das árvores seculares e campos de pastos verdejantes, chegaram até as propriedades vizinhas e ajudaram a alimentar os boatos sobre pessoas que se transformavam em lobisomens e vagavam por entre as sombras atacando incautos nas noites de lua cheia.

 

* Conto publicado originalmente no livro Amor Lobo - Crônicas de Amor, Sangue e Lobisomens, de 2013.