4º Ciclo
Por André Bozzetto Jr
Sabe aquelas noites em que você
tem um sonho tão assustadoramente real que quando acorda está ofegante, com o
coração acelerado e ao mesmo tempo grato por ter despertado? Foi assim que me
senti naquele momento. A experiência mais assustadora que já tinha tido na
vida. Demorei alguns minutos para me situar. A tontura estava bem forte, mas
diminuiu um pouco quando comecei a respirar fundo e tentar me acalmar. Logo me
lembrei de tudo e entendi onde estava.
Na entrada do Parque de Eventos,
tive a impressão de que, além do pessoal de fora, 90% da cidade já estava ali.
Adultos andando com crianças chorando e esperneando para lá e para cá, jovens
bebendo e dando risada, velhos observando tudo com olhos arregalados e
fofocando. Tudo normal.
Estava acontecendo de novo. Mas,
por algum motivo que nunca conseguiria explicar, dessa vez havia recuado um
pouco mais no tempo. Era inútil ficar tentando entender o que estava
acontecendo. No fim, pouca diferença faria. O importante era agir. Calculei que
deveria faltar uns 20 ou talvez 30 minutos até o filme psicótico do Vítor
Venganno começar a ser exibido. Isso me dava uma importante vantagem que não
tinha tido nas outras vezes. Pensei em ir até a sala de controle do palco
principal e quebrar tudo, mas logo desisti da ideia, pois alguém poderia dar um
jeito de acabar exibindo o filme mais tarde, de outra forma. Também não tinha
certeza se os babacas dos irmãos Venganno não poderiam ter alguma outra carta
na manga para fazer o caos iniciar mesmo sem o vídeo. Então, o mais lógico a
fazer era ir direto ao centro da porra toda. Sem perder nem mais um segundo,
saí correndo em direção aos barracões abandonados na parte antiga do parque.
No caminho, procurava não olhar
para ninguém especificamente, para não correr o risco de acabar me distraindo.
Sabia que não adiantaria pedir ajuda a outras pessoas, pois para isso
precisaria tentar convencê-las de tudo que eu dissesse, o que seria, além de
quase impossível, também demorado. Não havia tempo a perder, por isso eu só
corria, trombando e empurrando quem estivesse pela frente.
– Meu Deus! Que grosso! – reclamou
uma guria, quando esbarrei nela.
– Deve estar maconhado! – resmungou uma velha, quando atravessei cambaleando no
meio do grupinho onde ela e outras amigas fofocavam.
Cheguei a me perguntar quem eu
encontraria lá em cima dessa vez. Vítor? Walter? Ambos? Não importava. Eu
quebraria a cara de qualquer um sem pensar duas vezes para impedir que o
pandemônio começasse. Eu poderia até matar aqueles putos se fosse preciso. Pode
apostar que sim.
Não sei se foi por desespero ou
pela esperança de que dessa vez pudesse dar certo, mas quando percebi já tinha
subido o morro e estava diante dos barracões abandonados. Enquanto recuperava o
fôlego, observei que novamente, a paisagem estava diferente. Havia uma cerca no
limite do parque e pendurada nela uma placa escrito “Propriedade Particular –
Entrada Proibida”. Escalei os arames sem maiores dificuldades e pulei para o
outro lado. Notei que o primeiro dos barracões também tinha diferenças. A porta
e as duas janelas da frente tinham sido substituídas por outras mais reforçadas
e estavam bem trancadas. Porém, quando contornei pela direita, vi que a janela
lateral – quase escondida pelas árvores – continuava a mesma. Então, era só
fazer como da vez anterior. Corri e me joguei com o ombro de encontro aos
tampos de madeira. Eles se abriram com um estrondo e mergulhei de cabeça para o lado de dentro.
Me levantei rapidamente e percebi
que o interior também havia mudado. Continuava tendo ferramentas, tábuas e
tralhas diversas amontoadas junto às paredes, mas no centro, ao invés daquela
maluquice improvisada do Walter Venganno havia uma máquina completamente
diferente. Era feita de algum tipo de metal negro – ou pelo menos parecia metal
– e tinha um formato que me lembrou uma locomotiva de um trem antigo, daqueles
tipo “Maria Fumaça”, só que sem rodas ou aberturas. Na verdade, essa descrição
é bem ruim, porque era algo claramente moderno e ultratecnológico, só que não
conseguia pensar em uma comparação melhor. Em uma das laterais da coisa havia
uma grande tela plana onde piscavam centenas de botões coloridos, figuras
geométricas complicadas e símbolos desconhecidos. Ao lado do monitor, segurando
um bloco de anotações nas mãos e me olhando com expressão séria estava um cara.
Só que, para a minha surpresa, não era nenhum dos irmãos Venganno. Era o
Sabidão.
Ele estava com as roupas
encardidas e amassadas e tinha sangue ressecado grudado na testa e ao redor do
nariz. Mas, o que mais me impressionou foi o fato de ele estar preso pelo
tornozelo direito a uma corrente de mais ou menos uns cinco metros de
comprimento, afixada em um presilha de ferro junto ao chão.
– Você chegou mais cedo dessa
vez... – disse o Sabidão, voltando a olhar para as suas anotações, não
parecendo surpreso com a minha presença – Espero que seja um bom sinal.
– Como assim?! O que você está
fazendo aqui?! Que porra está acontecendo?! – questionei, sem entender nada.
– Lá vamos nós. – suspirou ele –
As mesmas perguntas de sempre. Tudo de novo.
Permaneci alguns instantes em
silêncio, tentando processar as novidades. Senti a tontura começando a aumentar
de novo. Devo ter ficado com uma tremenda cara de otário, porque o Sabidão
simplesmente recomeçou a falar, como alguém que está explicando algo a uma
criança, sem muita paciência.
– Vamos lá. Vou dar um resumo da
situação. – disse ele, aparentando estar entediado – Aquele neurótico do Walter
Venganno trouxe essa máquina, não sei de onde. Ele e o irmão maconheiro, o
Vítor, começaram a fazer experimentos e descobriram que essa coisa pode abrir
portais entre diferentes pontos do espaço-tempo e até entre dimensões paralelas
– o que, para fins práticos, dá quase na mesma – só que eles não sabiam usar
direito. É um negócio extremamente complexo e, para falar a verdade, eu ainda
não sei exatamente o que eles teriam feito caso soubessem operar o equipamento
de forma eficiente. O fato é que, num desses testes, eles tiveram acesso a
outro plano da realidade, onde existem seres que eles chamaram de Dillodokers e
– pelo que pude entender – são personificações de sentimentos negativos que
todo mundo sente em alguma medida, o que mostra que há, ainda que de forma
limitada, inconsciente e imperceptível – contato entre essas várias dimensões,
ou pelo menos entre algumas. Só que essas criaturas são, digamos assim,
“negatividade pura” e quanto mais acesso elas tiverem à nossa dimensão, mais
controle podem exercer sobre nossas mentes e isso as fortalece porque elas se
alimentam da nossa energia psíquica. Em contrapartida, a gente fica cada vez
mais louco e, no fim, você sabe como isso termina.
– E aqueles babacas acreditaram
que poderiam controlar esses seres e usá-los para se vingar de todo mundo,
porque os “coitadinhos” sofriam bullying na escola. Bem coisa de filho da puta
mesmo. – disse eu, já sem muita paciência – Mas isso é mais ou menos o que eu
já sabia. Quero ouvir o resto.
– Eles fizeram aquela merda de
filme e deixaram o plano todo organizado para ser posto em prática hoje, já que
a Festa da Mandioca estaria lotada. – continuou o Sabidão – Só que antes disso
eles tiveram uma ideia mais ousada: tentar abrir um portal para que os
Dillodokers atravessassem fisicamente
para esta realidade ao invés de apenas agirem sobre nossas mentes.
– Terror pouco é bobagem. – falei,
sem poupar na ironia.
– Exato. Mas aí, quando eles
fizeram um teste, algo deu errado e, ao invés de materializar algum dos
Dillodokers, foram eles que desapareceram, decerto tragados para alguma outra
dimensão.
– Essa foi boa! – disse eu, sem
conter uma risada.
– Pois é... – continuou o Sabidão
– E antes que você me pergunte como eu sei de tudo isso, é só olhar para aquela
câmera no tripé ali atrás. Eles filmavam todos os experimentos e o Walter
mantinha diários detalhados com o avanço das pesquisas.
– Muito bem... – concordei,
observando a câmera poucos metros adiante – E como você se envolveu nessa
história?
– Agora a coisa começa a ficar
ainda mais bizarra. – disse ele – Lembra da mãe do Walter e do Vítor?
– Sim. – respondi – Verônica, uma
mulher meio histérica. Fazia escândalos na escola quando acontecia qualquer
coisinha com os filhos.
– Exatamente. – concordou ele –
Pelo visto, nesse caso, a loucura é de família. Mas, o fato é que ela sabia que
os filhos estavam fazendo algo neste local e, quando eles não voltaram para
casa, veio até aqui procurá-los. Obviamente, não os encontrou, mas viu a câmera
ligada e assistiu a filmagem onde os dois desaparecem após acionarem a máquina.
Então me procurou, desesperada, pedindo para eu vir até aqui analisar a
situação e ver se podia trazê-los de volta. Achei a história muito doida, mas
decidi vir, por pura curiosidade. Para o meu espanto, o negócio era real mesmo.
Passei muitas e muitas horas lendo os diários, assistindo as filmagens e
analisando a máquina e, por fim, decidi que seria perigoso demais acionar
novamente uma coisa tão poderosa e sobre a qual se sabia tão pouco. Quando
disse para a Verônica que o melhor era não fazer nada – ou que pelo menos que eu não faria nada – ela surtou, sacou um
revólver da bolsa e falou que só me deixaria ir embora quando trouxesse os
filhos dela de volta. Então me trancou no banheiro lá no fundo e saiu. Voltou
um tempo depois trazendo água, comida e essa corrente. Exigiu que eu me
acorrentasse e ficasse trabalhando em uma forma de fazer a dupla de otários
reaparecer. Como você pode perceber pela minha aparência, sempre que eu tento
fugir acabo me dando mal.
– Que loucura! – eu disse,
sentindo a vertigem piorando mais ainda – E onde ela está agora?
– Foi buscar mais comida, mas logo
vai voltar.
– E o que vamos fazer?! –
perguntei, ansioso.
– Esse é o problema! – respondeu o
Sabidão, exaltado – Nós já fizemos de tudo! Você não percebe, mas nós estamos
presos em algum tipo de looping
temporal, onde essa merda de dia fica se repetindo de novo, de novo e de novo! Teve uma vez onde eu
acabei acionando a máquina, só que quem apareceu não foi nenhum dos babacas dos
irmãos Venganno e sim um dos Dillodokers! Com certeza ele me matou, mas, ao
invés de eu ir para o céu, para o inferno ou algo assim, reapareci aqui e
começou tudo de novo. Mudei a configuração da máquina, acionei novamente e
surgiu um Dillodoker diferente. Morri, e o ciclo reiniciou de novo. Então você
começou a aparecer. Tentou me salvar, mas quando chegamos ao centro do parque,
fomos mortos pela multidão enlouquecida. Outra vez você tentou destruir a
máquina, mas provocou um incêndio e morremos queimados. Tentou também
argumentar com a velha louca, mas ela pirou de vez e atirou em nós dois. Com
pequenas variações, esse dia sempre se repete e a gente sempre se dá mal. E
começa tudo de novo.
A vertigem estava tão forte que
precisei sentar no chão, apoiando a cabeça nas mãos. A sensação de desespero era crescente.
– Sabe o que é mais estranho...? –
continuou o Sabidão – Eu cheguei a acreditar que esse looping temporal pudesse
ter sido criado como uma anomalia no espaço-tempo, quando eu acionei a máquina,
ou talvez ainda antes, durante um dos experimentos dos irmãos Venganno, mas,
agora fico pensando que talvez essa seja a própria natureza da realidade. Uma
espécie de simulacro existencial que se repete, por centenas ou milhares de
vezes até esgotar todas as possibilidades de permanência.
– Daí a gente se fode de vez. –
concluí.
– No nosso caso, é bem provável. –
concordou o Sabidão – Mas, não há outra coisa a fazer além de continuar
tentando mudar algo, até, quem sabe, conseguirmos sair desse ciclo de eterno
retorno. Você já leu Nietzsche?
– Não. – respondi – Mas já vi um
filme com aquele cara dos Caça-fantasmas
que tinha um lance parecido com isso que você está falando.
– É O Feitiço do Tempo, com o Bill Murray. – emendou ele – Não é um
filme muito bom, mas a realidade daquele personagem era um paraíso se comparada
com a nossa.
– Isso tudo é loucura. – resmunguei,
desanimado.
– Claro que sim. – disse o Sabidão
– Tem algum detalhe dessa história que não seja totalmente insano? Veja essa
máquina, por exemplo. No começo eu achei que pudesse ser tecnologia alienígena,
mas agora estou mais inclinado a pensar que ela possa ter sido criada por
pessoas como nós, só que do futuro. Será que não foi alguém lá do futuro que
mexeu no passado e acabou criando essas realidades paralelas malucas em que nós
estamos? Acho que a existência, como um todo, é algo muito paradoxal.
– Você também está ficando louco,
cara... – falei, levantando com certa dificuldade – Mas não te culpo, porque eu
também já me sinto doido pra caralho. Me diz uma coisa: você se lembra de uma
dessas realidades alternativas, ou sei lá de que porra você chama isso, que
tenha a ver com pregação religiosa, crucificação, ou merdas desse tipo?
– Não. – disse ele, parecendo
realmente surpreso – Por quê? Me fale mais sobre isso.
Mas, não deu mais tempo de
continuar a conversa. Ouvimos o barulho de um carro se aproximando pela estrada
que vinha do lado contrário ao Parque.
– É a velha louca voltando! –
gritou o Sabidão – O que vamos fazer dessa vez?!
– Vou lhe mostrar o que eu vou
fazer! – respondi, olhando ao redor.
Localizei uma pá escorada na
parede, perto da janela. Fui até lá, meio cambaleante, a peguei e então me
espremi ao lado da porta. Com o dedo entre os lábios, fiz sinal para o Sabidão
não falar nada.
Em seguida, a porta foi aberta e
Verônica entrou carregando sacolas de mercado. Rapidamente, me aproximei pelas
suas costas e, antes que ela pudesse me ver, desferi um golpe com toda força na
parte de trás da sua cabeça. Deu até para ouvir o barulho do crânio se partindo
quando foi atingido pela pá.
Ela desabou de cara no chão e,
segundos depois, já havia uma enorme poça de sangue se formando ao redor da sua
cabeça. Sem perder tempo, larguei a pá, tirei a bolsa que ela trazia pendurada
ao ombro e comecei a revirar lá dentro. Encontrei o pequeno revólver calibre 22
e coloquei na cintura. Em seguida, achei o que estava realmente procurando.
– Veja! – falei, me sentindo
eufórico – Aqui está a chave do seu cadeado. Vou soltá-lo e, enquanto você
coloca fogo nesse lugar maldito, eu vou correr até a sala de controle do palco
principal da Feira. Se for preciso, vou destruir tudo que tiver lá para impedir
que o filme dos Venganno seja exibido. Acho que ainda dá tempo. E depois
pronto, estará tudo resolvido!
Então, enquanto eu soltava as
correntes, o Sabidão começou a falar algo, mas eu simplesmente não dei ouvidos
ao que ele estava dizendo, porque, de repente, toda a minha atenção se voltou a
algo tão macabro que fez com que sentisse o sangue me gelar nas veias.
Ali do lado, o corpo da Verônica
estava se movendo. No começo parecia estar apenas tremelicando, mas logo passou
a se sacudir de forma violenta, até ficar virado de barriga para cima. E não
foi só isso: a barriga dela começou a pulsar e a crescer, segundo a segundo,
como se fosse uma gravidez instantânea.
– Que merda é essa agora?! –
gritei indignado, com a certeza de que algo muito ruim ainda vinha pela frente.
– Deve ter alguma coisa a ver com
aquilo... – disse o Sabidão, com os olhos arregalados, apontando para a parte
de cima da máquina esquisita.
Quando olhei, reparei em algo que
até então não tinha percebido: no topo da máquina estava encaixada a pirâmide
negra, a mesma que eu já tinha visto das outras vezes. Ela estava começando a
vibrar e emitir fachos de luz esbranquiçada.
– Você ligou a porra dessa
máquina?! – perguntei, sentindo o pavor crescer por dentro.
– Claro que não! – respondeu o
Sabidão – Esse negócio está agindo por conta própria. Deve ser algum tipo de ressonância.
– É sempre essa porra de pirâmide
que faz as merdas acontecerem! – resmunguei, já com a intenção de pegar alguma ferramenta
e arrebentar aquele objeto dos infernos.
Só que não deu tempo. O Sabidão me
puxou pelo braço e apontou – tão apavorado que não conseguia falar nada – para
o corpo de Verônica se contorcendo lá no chão. Em poucos segundos, a barriga já
havia crescido tanto a ponto de rasgar as roupas. A pele estava com coloração
azulada, com veias e estrias ressaltadas e pulsantes, deixando claro que, se o
crescimento não parasse logo, iria simplesmente explodir. E então explodiu. Com
um barulho horrível, que eu nem saberia como descrever, a carne se partiu,
fazendo voar sangue e outros tipos de coisas nojentas para todos os lados. Um
cheiro podre absurdo invadiu o barracão e, imediatamente, eu comecei a vomitar.
Isso fez piorar a tontura e cheguei a cair de joelhos. Pensei que iria
desmaiar, mas depois de alguns instantes – não sei quanto – comecei a me
recuperar um pouco.
Quando ergui a cabeça, vi o
Sabidão imóvel, pálido como uma folha de papel, com os olhos arregalados. Olhei
na mesma direção que ele, e novamente achei que ia desmaiar. Naquele exato
instante, duas coisas estavam
rastejando para fora da barriga destroçada de Verônica. Pareciam vermes,
ensanguentados e melecados, só que do tamanho de um gato. As cabeças se
pareciam demais com miniaturas de rostos humanos, mas horrivelmente deformados,
com dentes pontudos e olhos animalescos. E estavam crescendo. Muito
rapidamente.
O Sabidão não falava nada e nem se
movia. Parecia em estado de choque. Eu comecei olhar ao redor, procurando algo
que pudesse usar como arma e detonar aquelas coisas, e só então lembrei do
revólver que havia pego na bolsa da Verônica. Saquei da cintura e apontei na
direção das criaturas, que, naquele momento, já não estavam mais do tamanho de
um gato, e sim de uma pessoa. O corpo de cada um daqueles horrores continuava
lembrando um verme, só que tinham surgido braços finos e com garras, parecidos
com aqueles dos Dillodokers que eu havia visto no vídeo. Como não tinham
pernas, as coisas se moviam rastejando, e parecia que o corpo – feito de algum
tipo de gosma cinza-esbranquiçada – ia mudando de forma conforme se
movimentava. Mas, o pior de tudo eram os rostos deformados, que também pareciam
se mover no meio daquela meleca nojenta. Apesar das bocas cheias de dentes
pontudos e dos enormes olhos esbugalhados como de algum tipo assustador de
peixe esquisito, dava para reconhecer claramente as fisionomias de sujeitos que
um dia já foram humanos. Eram os rostos – bizarros e asquerosos – de Walter e
Vítor Venganno.
Do corpo da Coisa-Vítor brotou uma
espécie de pênis monstruoso e melequento, de mais de meio metro de comprimento
e, com uma daquelas mãos animalescas, ele começou a se masturbar enquanto
gritava com uma voz que parecia um guincho de porco: “Foder! Foder!”
A Coisa-Walter olhou para nós e
sorriu, dizendo com uma voz que parecia o som de um trovão: “Que bom que vocês
estão aqui para testemunhar!” Ouvi um barulho suspeito e olhei para o lado. O
Sabidão havia mijado nas calças.
O Monstro-Vítor começou a andava
na nossa direção, cada vez mais rapidamente. Apertei o gatilho uma, duas,
várias vezes, até descarregar a arma. As balas atravessaram a coisa como se
fosse um bloco de gelatina. No lugar dos tiros, escorreu gosma, parecendo até
que a criatura iria se desmanchar, mas isso durou só alguns instantes, pois
logo aquele corpo melequento se refez, anulando os ferimentos.
Apavorado, comecei a dar alguns
passos para trás e puxei o Sabidão comigo, mas ele não se movia, parecia
pregado no chão. Sem pensar duas vezes, dei dois tapas fortes no rosto dele e o
sacudi com força.
– Acorda, cara! Reage! Senão essas
coisas vão nos matar!
Isso pareceu ter tido algum feito,
pois ele até recuperou um pouco da cor e recuou comigo até o fundo do barracão.
Escoradas na parede, estavam mais algumas ferramentas que poderíamos utilizar
como armas improvisadas. Peguei uma enxada e entreguei um ancinho nas mãos do
Sabidão.
A Coisa-Vítor estava novamente
próxima de nós. Erguemos as ferramentas para nos defender, mesmo sabendo que,
provavelmente, teria pouco efeito. Então, o Monstro-Walter se aproximou de
repente, agarrou a Criatura-Vítor e, com uma força impressionante, a arremessou
para o lado, fazendo com que caísse há vários metros de distância, com um som
gosmento.
– Meu irmão é refém de impulsos
reprimidos... – disse o Monstro-Walter, com sua voz cavernosa – Ele não entende
que poderá se satisfazer à vontade depois. Agora temos algo mais importante a
fazer, para que a nossa apoteose seja completa. E vocês devem testemunhar!
Devem cumprir o seu papel de representar a faceta medíocre e mesquinha da
humanidade perante o triunfo de uma mente superior!
A Coisa-Walter rastejou até a
máquina e, rapidamente, começou a acionar diversos botões no painel eletrônico
com suas mãos asquerosas.
– Naquela dimensão onde os
Venganno foram parar... – cochichou o Sabidão, parecendo pelo menos
parcialmente recuperado – Eles devem ter tido suas mentes absorvidas pelos
Dillodokers. Agora eles vão usar isso para trazer as outras criaturas para a
nossa realidade.
Então a Coisa-Vítor se aproximou
mais uma vez, rastejando em círculos, agitando os braços para o alto e
retorcendo seu rosto monstruoso, como se estivesse chorando. “Foder! Comer!
Beber! Fumar!”, gritava a coisa com sua voz de porco, como se fosse uma criança
mimada fazendo birra.
Claramente enfurecido, o
Monstro-Walter se afastou da máquina e partiu para cima daquilo que um dia
havia sido seu irmão, dizendo: “Eu sabia que você não tinha maturidade
suficiente para isso!” e o atingiu com um golpe que arrancou metade do seu
rosto fora.
A Criatura-Vítor urrou de dor e
raiva enquanto a gosma escura escorria de sua cabeça e imediatamente revidou,
arrancando o braço direito da Coisa-Walter. Os dois monstros começaram a se
atacar, arrancando pedaços um do outro de forma brutal, mas, poucos segundos
depois de uma parte de seus corpos gosmentos ser mutilada, a meleca voltava a
se solidificar, moldando o corpo novamente.
Enquanto as duas coisas brigavam,
fazendo voar gosma fedorenta para todos os lados, fiz sinal para o Sabidão me
seguir. Poderíamos aproveitar a confusão para tentar fugir, embora não houvesse
muita esperança de que lá fora a situação ficaria melhor. Porém, quando tentei
passar pelo centro do barracão, o Monstro-Walter percebeu minha movimentação,
me agarrou pelo braço e me arremessou de encontro à parede do fundo. Eu voei
por alguns metros, bati contra as tábuas e deslizei até o chão sentindo tanta
dor que tive certeza de ter quebrado duas ou três costelas. O Sabidão correu na
minha direção.
Enquanto tentava levantar com a
ajuda do Sabidão, percebi que a Coisa-Walter havia levado vantagem na luta
contra o irmão. Os pedaços da Criatura-Vítor estavam espalhados pelo chão, mas
a gosma se movia e ia lentamente se juntando de novo. Com certeza todo o corpo
iria se reconstituir mais uma vez, mas, antes disso, o Monstro-Walter abriu uma
pequena caixa de madeira que havia sobre a mesa e retirou algo de dentro.
Rastejou até os restos do irmão, que se retorciam pelo piso, recitou algumas
palavras em um idioma desconhecido e jogou sobre eles um punhado de cristais
pretos, que me pareceram idênticos aos do colar que Vítor usava na primeira vez
que o encontrei. Assim, os pedaços da Coisa-Vítor derreteram de vez em uma poça
de gosma, que logo começou a evaporar até sumir totalmente, não deixando nenhum
vestígio sequer no assoalho.
– É uma pena que sua mente fosse
frágil demais para suportar a pressão. – resmungou a Criatura-Walter, antes de
voltar a manusear o painel da máquina.
Sentindo muita dor, consegui ficar
em pé, mas não sabia mais o que fazer.
Pretendia perguntar se o Sabidão tinha alguma ideia, mas uma série de
gargalhadas chamou nossa atenção.
O Monstro-Walter ria satisfeito
enquanto a máquina começava a emitir um facho de luz que alternava entre o esbranquiçado
e o azulado. Logo aquela luminosidade se concentrou formando uma esfera de uns
dois metros de diâmetro e, em meio a um som perturbador, as coisas começaram a surgir através dela.
Eram várias. Foram saindo da esfera de luz, uma depois da outra. A aparência de
cada uma variava. Tinha as que lembravam insetos gigantes, algumas se
assemelhavam a lesmas, outras eram bizarras demais até para tentar descrever,
mas todas pareciam feitas de gosma e eram igualmente horríveis.
As primeiras criaturas que
chegaram arrebentaram a parede da frente do barracão e desceram pela estrada,
em direção à parte central do parque. A maioria das outras seguiu na mesma
direção, mas algumas ficaram para trás e, lentamente, começaram a avançar em
direção ao Sabidão e a mim.
– Bem-vindos ao meu Aeon! – gritou a Coisa-Walter, para
em seguida emendar uma pavorosa gargalhada que se prolongava e se prolongava,
parecendo que iria durar para sempre.
As criaturas foram nos cercando e
não havia para onde correr. Atrás de nós, apenas a janela que dava para o
barranco íngreme, um verdadeiro precipício de dezenas de metros de altura,
revestido pela mata escura. Uma das coisas esticou um braço melequento, agarrou
o Sabidão pelo pescoço e o ergueu no ar.
– Ainda não foi dessa vez,
Sandro... – conseguiu resmungar ele, com o pouco fôlego que lhe restava,
parecendo triste e conformado ao mesmo tempo.
Eu não seria o próximo. Qualquer
coisa era melhor do que cair nas garras daqueles vermes nojentos. “Que se
foda!”, gritei, um instante antes de atravessar correndo – mesmo com muita dor
nas costelas – os dois ou três metros que me separavam da janela e me atirar
através dela. Enquanto despencava lá para baixo, ouvia as gargalhadas do
Monstro-Walter ficando cada vez mais distantes. O chão, lá no fundo do
barranco, se aproximava muito depressa, mas, quando cheguei até ele, ao invés
de sentir a dor de me esborrachar de encontro às pedras e raízes das árvores,
tive a sensação de passar direto, mergulhando na escuridão vazia do infinito.
5º Ciclo
Acordei com a minha vó gritando no
corredor: “Sandro? Sandrinho! Você não vai na Feira? Já passa das quatro horas
da tarde, menino!”
Quando abri os olhos senti um tipo
de tontura e uma leve dor de cabeça.
Pulei para fora da cama, com o
coração disparado. Tudo parecia absolutamente normal na penumbra do meu quarto.
Teria sido tudo um pesadelo? Um pesadelo fodidamente realista e assustador, mas
apenas isso? Poderia ter sido efeito colateral do remédio experimental? Seria
uma reação adversa por ter tomado um monte de cerveja, embora os médicos e a
bula recomendassem expressamente que não fizesse isso? Algum tipo de
premonição? Ou apenas o início de um novo ciclo, que recuou um pouco mais no
tempo?
Abri a janela e olhei para fora. A
tarde estava nublada e ao longe, mais ou menos na direção do Parque de Eventos,
havia algumas nuvens escuras que lembravam vagamente o formato de uma espiral,
dando ao céu uma aparência estranha e sinistra...
Fim...?
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