30 de out. de 2022

WILLY E O HOMEM-LAGARTO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Era um final de tarde de sábado. Eu estava jogado no sofá, tomando Coca-Cola e comendo biscoito recheado. Lembro de estar irritado porque recém tinha acabado o jogo do campeonato gaúcho entre Inter e Juventude e o Inter tinha perdido. É incrível como o Inter sempre perdia do Juventude naquela época. Para falar a verdade, eu estava mais irritado porque os meus pais tinham ido a um casamento e só iriam voltar muito tarde. Então eu precisava ficar em casa cuidando do meu irmão William – ou Willy, como nós o chamávamos. Isso era péssimo porque eu andava xavecando a Sandrinha e naquela noite ela iria a uma festa na casa da Flávia. Como eu não poderia ir, não tinha como ficar com ela de uma vez por todas, e ainda corria o risco de ter por lá outros otários arrastando a asa para o lado dela.

            Foi por isso que eu não dei a mínima bola quando o meu irmão entrou dizendo que tinha um cara parado na esquina, observando nossa casa. O Willy tinha 11 anos nessa época, e uma imaginação muito fértil. Desde bem novo ele gostava muito de desenhar e andava sempre com lápis e caderno de desenho para lá e para cá. Nossa casa ficava na última rua da cidade, depois da qual tinha só uma área de mata com um lago em seu interior. Willy passava muitas horas por lá, sozinho, fazendo seus desenhos. Volta e meia ele voltava dizendo que tinha visto coisas estranhas. Uma vez foi um fantasma. Em outra, um dinossauro. Na quinta-feira de manhã, quando levantamos para ir à escola, ele me disse que estava acordado durante a noite quando sentiu um leve e rápido tremor de terra, como um “miniterremoto”. Obviamente, mais ninguém na casa percebeu nada. Naquela mesma tarde, ele voltou alvoroçado do bosque, dizendo que havia um “homem-lagarto” zanzando por lá. No meio da noite, começou a gritar e quando fomos ver o motivo do escândalo, ele falou que viu através da janela o homem-lagarto rondando a casa. Meus pais disseram que foi apenas um pesadelo, e que se ele não parasse com essas histórias, seria proibido de assistir filmes e ler quadrinhos de terror. Depois disso ele não falou mais no assunto, mas eu percebi – mesmo sem dar importância – que nos dois últimos dias ele andava diferente, mais calado do que de costume e parecendo preocupado.

            Mas, naquele chatíssimo entardecer eu não queria saber de nada disso. Simplesmente mandei Willy entrar e ir para o banho. Depois eu colocaria uma pizza no forno para jantarmos e, se ele se comportasse, poderia assistir O Exterminador do Futuro 2 na TV junto comigo. Foi somente quando eu estava no cozinha arrumando a mesa para o jantar que vi através da janela alguém lá fora, meio encoberto pela sombra de uma árvore. Ainda não havia anoitecido totalmente e senti um calafrio quando tive a impressão de reconhecer quem era aquele cara parado lá, olhando na minha direção. Era o Julião. Um garoto novo que chegou na escola há poucos meses e rapidamente ganhou fama de encrenqueiro, com especialidade em agredir e humilhar os meninos mais novos. O principal problema é que ele era mais velho e maior do que praticamente todos que estudavam no turno da manhã, pois, por ter reprovado em várias séries, já estava com 17 anos e ainda frequentava o ensino fundamental. Diziam inclusive que ele andava armado com um canivete automático.

            Alguns amigos meus já tinham apanhado do Julião e sido ridicularizados por ele na frente de toda a escola. Ninguém tinha coragem de denunciar, pois sabiam que depois a sua vingança seria ainda pior. Eu sentia um ódio tremendo daquele sujeito, começava a tremer e a suar só de ver ele por perto. Prometi a mim mesmo que, no dia que ele tentasse algo comigo – não importaria o que aconteceria depois – eu iria reagir. Afinal, eu tinha 14 anos, mas já era alto, quase do tamanho dele.

            E esse dia chegou. Certa manhã, no final da aula, Julião pegava alguns garotos aleatoriamente perto do portão de saída e jogava de cabeça dentro dos latões de lixo. E a escola inteira assistindo. Alguns riam, outros olhavam assustados, mas ninguém fazia nada. Eu fui saindo de cabeça baixa, quase chorando de raiva de ver aquilo e, de repente, nossos olhos se encontraram. Ergui a cabeça, meio sem querer, e ele já estava olhando para mim. Então abriu um sorriso debochado e veio na minha direção. Eu fechei o punho e respirei fundo. Acho que o meu corpo inteiro tremia como vara verde. Quando ele botou a mão no meu ombro e começou a falar algo, eu soltei o soco. Acertou bem no meio do nariz. Ele cambaleou, quase caiu e então se agachou, com as mãos no rosto. Houve um segundo de silêncio e, em seguida, toda galera que estava ao redor explodiu em gritos e vibração, como uma torcida comemorando um gol na final do campeonato. Julião me olhou com olhos arregalados, parecendo uma mistura de ódio e surpresa. O sangue escorria do seu nariz. Imediatamente eu saí correndo o mais rápido que já corri na minha vida. Ele tentou me seguir, mas desistiu poucos metros depois. Nas duas semanas seguintes ele simplesmente não apareceu mais na escola, mas muita gente disse que ele prometeu se vingar. Eu fiquei muito popular depois daquilo. Todo mundo queria ser meu amigo e, pela primeira vez, havia várias meninas me dando bola. Porém, eu nunca me esqueci da ameaça do Julião e, naquele início de noite de sábado, ela parecia mais real do que nunca.

            Até pensei em ligar para o clube onde estava acontecendo o casamento e pedir para falar com o meu pai. Mas, eu sabia exatamente o que ele iria dizer: que o Julião estava apenas querendo me assustar, que bastava deixar as portas e janelas bem fechadas e não haveria com o que se preocupar. Então foi isso que fiz. Conferi todas as portas e janelas do andar térreo e procurei não pensar mais no assunto, nem ficar olhando lá para fora para ver se o babaca ainda estava por lá.

            A noite foi transcorrendo de forma tranquila. Ainda faltava um pouco para começar o filme e Willy estava no quarto desenhando, enquanto eu estava deitado no sofá ouvindo música no meu walkman. Fazia pouco tempo que eu tinha conseguido a fita K7 do Black Album, do Metallica, e estava curtindo direto. Então, de repente, a energia elétrica se foi e a casa mergulhou na escuridão. Levantei rapidamente e olhei pela janela. Nós não tínhamos vizinhos próximos, mas, para além das árvores na rua de baixo dava para ver as luzes funcionando normalmente. Parecia que só a nossa casa estava às escuras. Naquele momento, Willy desceu correndo as escadas com sua pequena lanterna em mãos.

            – Mano, mano...! – dizia ele, assustado – Eu vi alguém caminhando no pátio lá de trás!

            “Julião”, logo pensei. Então ele realmente vai tentar algo.

            – Calma! – falei – É só um garoto estúpido tentando nos assustar. Vou ligar para o clube e o pai logo vai vir ou mandar alguém.

            – Não... – disse Willy, parecendo cada vez mais apavorado – É o homem-lagarto!

            Nesse instante, houve um estrondo vindo do alto e, em seguida, barulhos de passos lá em cima.

            – Mas o que é isso?! – falei – Tem alguém caminhando no telhado?!

            – Ou talvez tenha entrado por uma janela do andar de cima... – disse Willy, sussurrando – Acho que ele já está aqui dentro.

            Imediatamente corri para a cozinha, meio que batendo nos móveis que tinha pelo caminho. Willy me seguiu. Peguei o telefone e levei à orelha, mas estava mudo. Eu estava sentindo medo de verdade. Medo como nunca tinha sentido até então.

            – O telefone não funciona! – falei, enquanto pegava outra lanterna na gaveta.

            Então Willy deu um grito, me fazendo levar um baita susto. Olhei na direção dele, tentando entender o que estava acontecendo.

            – Tinha alguém espiando para dentro! – disse ele apontando para a janela da cozinha, às minhas costas – Depois correu para os fundos!

            Peguei o meu irmão pelo braço e fui conduzindo ele de volta para a sala.

            – Eu sei onde está guardado o revólver. – falei – Está no quarto do pai e da mãe. Vou lá pegar e, se alguém tentar entrar aqui, eu vou atirar e seja lá o que Deus quiser!

            – Mas, mano... – sussurrou Willy, apontando o dedo para o alto da escada que levava ao segundo andar – Eu disse que o homem-lagarto já está aqui dentro!

            Então eu olhei naquela direção. Havia uma certa claridade – não sei se era a luminosidade da lua entrando pela janela do corredor de cima ou algo diferente – e dava para ver a sombra de alguém se aproximando. Eu não sabia de quem era, ou do que era, porque realmente não parecia a sombra de uma pessoa, mas de alguma outra coisa. Em poucos segundos ela já estaria descendo a escada.

            – Willy, é o seguinte... – disse eu, tentando parecer confiante – Vamos abrir a porta da frente e sair correndo. Vamos correr para a rua de baixo. Se não encontrarmos ninguém no caminho para pedir ajuda, vamos bater na porta do primeiro vizinho que conseguirmos chegar, ok?

            O meu irmão apenas concordou com um movimento de cabeça. Tinha os olhos arregalados e estava pálido de medo.

            Enquanto eu destrancava a porta da sala, pude ouvir os passos daquilo que estava descendo as escadas. Quase me mijei de pavor. Então, abri a porta e saímos correndo. Ou melhor, eu saí, porque Willy deu um grito tão logo foi bloqueado por alguém.

            Quando me virei e apontei a lanterna para o lado da entrada, comecei a tremer ao ver Julião segurando Willy pelo pescoço, enquanto encostava a lâmina de um canivete em seu rosto.

            – Agora nos encontramos de novo, né, seu babaca! – disse Julião – Vou talhar um “J” na cara do seu irmãozinho e então sempre que você olhar pra ele vai sentir vergonha por saber que essa cicatriz é culpa sua! Vergonha pior do que aquela que você me fez passar!

            Mas, antes que aquele demente pudesse cumprir a ameaça, uma coisa surgiu da escuridão através da porta. Era o homem-lagarto! Na verdade, não achei que se parecia tanto assim com um lagarto, mas era assustador e, com certeza, não era humano.

            Quando Julião viu a coisa se aproximando, deu um grito de espanto e – acho que agindo na base do instinto – largou Willy no chão e partiu com o canivete para cima da criatura.

            Até hoje eu não me lembro se a coisa estava segurando algum tipo de arma, ou se o raio saiu da sua própria mão. Mas, o fato é que uma luz esbranquiçada atingiu Julião e, imediatamente, ele começou a derreter. Ou melhor: evaporar. Primeiro foi sumindo as roupas e a pele, depois a carne, deixando os ossos expostos e, em seguida, esses também se desfizeram em uma nuvem de pó que esvoaçou, sem sobrar nada. E isso foi muito rápido. Muito mais rápido do que o tempo que estou levando para descrever. Julião foi atingido pelo raio e três segundos depois já não existia mais nenhum vestígio dele.

            Ao ver aquilo, Willy começou a gritar e, desesperado, correu de volta para dentro da casa. Automaticamente, entrei correndo atrás dele.

            Willy subiu as escadas, entrou no seu quarto e se enfiou debaixo da cama, algo que ele costumava fazer quando dava temporal, pois morria de medo. Tranquei a porta do quarto, puxei um armário e escorei para reforçar o bloqueio e depois tentei me enfiar embaixo da cama também, mas não havia espaço.

            Com um estrondo apavorante, o armário voou para longe e a porta foi aberta com a maior facilidade. O homem-lagarto entrou caminhando calmamente. Willy e eu começamos a gritar, acreditando que tinha chegado a nossa vez de virar pó, mas, ao invés disso, a criatura se curvou bem devagar, abriu uma gaveta na cômoda ao lado da cama e retirou de lá um objeto, que me pareceu algum tipo de cilindro prateado. Então, nos ignorando totalmente, a coisa virou as costas e saiu do quarto.

            Deitados no chão, meio iluminados pelos fachos das lanternas, Willy e eu ficamos nos encarando, tremendo e ofegando.

            – O que era aquilo que ele pegou? – perguntei, sentindo a minha voz falhando.

            – Era um pedaço da nave espacial. – disse Willy.

            – O quê?!

            – Eu tentei explicar, mas vocês não queriam ouvir! – insistiu Willy – Aquela noite que deu o miniterremoto, acho que foi quando a nave caiu dentro do lago. No dia seguinte eu pude ver, porque uma parte ficou para fora da água e tinha alguns pedaços boiando. Então, com um galho eu consegui pegar aquela peça e achei que seria legal guardar. Devia ser por isso que o homem-lagarto estava vindo aqui. Ele queria e peça de volta.

            Bem naquele momento começou um ruído estranho e uma vibração que podia ser sentida pela casa inteira. Uma luz esquisita surgiu através das janelas da frente. Willy saiu debaixo da cama e correu até lá para olhar. Eu o segui e cheguei bem a tempo de ver a nave iluminada flutuando por detrás das árvores do bosque, na direção do lago. Mas isso durou poucos segundos, porque, em seguida, ela partiu para cima em linha reta, em uma velocidade absurda, desaparecendo no céu escuro.

            E, a partir dessa noite, para Willy e para mim, a vida, o mundo e até o universo nunca mais foram os mesmos.

 

 


 

2 de out. de 2022

DILLODOKERS - 4º e 5º Ciclos

 

4º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr

 

              Sabe aquelas noites em que você tem um sonho tão assustadoramente real que quando acorda está ofegante, com o coração acelerado e ao mesmo tempo grato por ter despertado? Foi assim que me senti naquele momento. A experiência mais assustadora que já tinha tido na vida. Demorei alguns minutos para me situar. A tontura estava bem forte, mas diminuiu um pouco quando comecei a respirar fundo e tentar me acalmar. Logo me lembrei de tudo e entendi onde estava.

              Na entrada do Parque de Eventos, tive a impressão de que, além do pessoal de fora, 90% da cidade já estava ali. Adultos andando com crianças chorando e esperneando para lá e para cá, jovens bebendo e dando risada, velhos observando tudo com olhos arregalados e fofocando. Tudo normal.

              Estava acontecendo de novo. Mas, por algum motivo que nunca conseguiria explicar, dessa vez havia recuado um pouco mais no tempo. Era inútil ficar tentando entender o que estava acontecendo. No fim, pouca diferença faria. O importante era agir. Calculei que deveria faltar uns 20 ou talvez 30 minutos até o filme psicótico do Vítor Venganno começar a ser exibido. Isso me dava uma importante vantagem que não tinha tido nas outras vezes. Pensei em ir até a sala de controle do palco principal e quebrar tudo, mas logo desisti da ideia, pois alguém poderia dar um jeito de acabar exibindo o filme mais tarde, de outra forma. Também não tinha certeza se os babacas dos irmãos Venganno não poderiam ter alguma outra carta na manga para fazer o caos iniciar mesmo sem o vídeo. Então, o mais lógico a fazer era ir direto ao centro da porra toda. Sem perder nem mais um segundo, saí correndo em direção aos barracões abandonados na parte antiga do parque.

              No caminho, procurava não olhar para ninguém especificamente, para não correr o risco de acabar me distraindo. Sabia que não adiantaria pedir ajuda a outras pessoas, pois para isso precisaria tentar convencê-las de tudo que eu dissesse, o que seria, além de quase impossível, também demorado. Não havia tempo a perder, por isso eu só corria, trombando e empurrando quem estivesse pela frente.

              – Meu Deus! Que grosso! – reclamou uma guria, quando esbarrei nela.

              – Deve estar maconhado! – resmungou uma velha, quando atravessei cambaleando no meio do grupinho onde ela e outras amigas fofocavam.

              Cheguei a me perguntar quem eu encontraria lá em cima dessa vez. Vítor? Walter? Ambos? Não importava. Eu quebraria a cara de qualquer um sem pensar duas vezes para impedir que o pandemônio começasse. Eu poderia até matar aqueles putos se fosse preciso. Pode apostar que sim.

              Não sei se foi por desespero ou pela esperança de que dessa vez pudesse dar certo, mas quando percebi já tinha subido o morro e estava diante dos barracões abandonados. Enquanto recuperava o fôlego, observei que novamente, a paisagem estava diferente. Havia uma cerca no limite do parque e pendurada nela uma placa escrito “Propriedade Particular – Entrada Proibida”. Escalei os arames sem maiores dificuldades e pulei para o outro lado. Notei que o primeiro dos barracões também tinha diferenças. A porta e as duas janelas da frente tinham sido substituídas por outras mais reforçadas e estavam bem trancadas. Porém, quando contornei pela direita, vi que a janela lateral – quase escondida pelas árvores – continuava a mesma. Então, era só fazer como da vez anterior. Corri e me joguei com o ombro de encontro aos tampos de madeira. Eles se abriram com um estrondo e mergulhei de cabeça  para o lado de dentro.

              Me levantei rapidamente e percebi que o interior também havia mudado. Continuava tendo ferramentas, tábuas e tralhas diversas amontoadas junto às paredes, mas no centro, ao invés daquela maluquice improvisada do Walter Venganno havia uma máquina completamente diferente. Era feita de algum tipo de metal negro – ou pelo menos parecia metal – e tinha um formato que me lembrou uma locomotiva de um trem antigo, daqueles tipo “Maria Fumaça”, só que sem rodas ou aberturas. Na verdade, essa descrição é bem ruim, porque era algo claramente moderno e ultratecnológico, só que não conseguia pensar em uma comparação melhor. Em uma das laterais da coisa havia uma grande tela plana onde piscavam centenas de botões coloridos, figuras geométricas complicadas e símbolos desconhecidos. Ao lado do monitor, segurando um bloco de anotações nas mãos e me olhando com expressão séria estava um cara. Só que, para a minha surpresa, não era nenhum dos irmãos Venganno. Era o Sabidão.

              Ele estava com as roupas encardidas e amassadas e tinha sangue ressecado grudado na testa e ao redor do nariz. Mas, o que mais me impressionou foi o fato de ele estar preso pelo tornozelo direito a uma corrente de mais ou menos uns cinco metros de comprimento, afixada em um presilha de ferro junto ao chão.

              – Você chegou mais cedo dessa vez... – disse o Sabidão, voltando a olhar para as suas anotações, não parecendo surpreso com a minha presença – Espero que seja um bom sinal.

              – Como assim?! O que você está fazendo aqui?! Que porra está acontecendo?! – questionei, sem entender nada.

              – Lá vamos nós. – suspirou ele – As mesmas perguntas de sempre. Tudo de novo.

              Permaneci alguns instantes em silêncio, tentando processar as novidades. Senti a tontura começando a aumentar de novo. Devo ter ficado com uma tremenda cara de otário, porque o Sabidão simplesmente recomeçou a falar, como alguém que está explicando algo a uma criança, sem muita paciência.

              – Vamos lá. Vou dar um resumo da situação. – disse ele, aparentando estar entediado – Aquele neurótico do Walter Venganno trouxe essa máquina, não sei de onde. Ele e o irmão maconheiro, o Vítor, começaram a fazer experimentos e descobriram que essa coisa pode abrir portais entre diferentes pontos do espaço-tempo e até entre dimensões paralelas – o que, para fins práticos, dá quase na mesma – só que eles não sabiam usar direito. É um negócio extremamente complexo e, para falar a verdade, eu ainda não sei exatamente o que eles teriam feito caso soubessem operar o equipamento de forma eficiente. O fato é que, num desses testes, eles tiveram acesso a outro plano da realidade, onde existem seres que eles chamaram de Dillodokers e – pelo que pude entender – são personificações de sentimentos negativos que todo mundo sente em alguma medida, o que mostra que há, ainda que de forma limitada, inconsciente e imperceptível – contato entre essas várias dimensões, ou pelo menos entre algumas. Só que essas criaturas são, digamos assim, “negatividade pura” e quanto mais acesso elas tiverem à nossa dimensão, mais controle podem exercer sobre nossas mentes e isso as fortalece porque elas se alimentam da nossa energia psíquica. Em contrapartida, a gente fica cada vez mais louco e, no fim, você sabe como isso termina.

              – E aqueles babacas acreditaram que poderiam controlar esses seres e usá-los para se vingar de todo mundo, porque os “coitadinhos” sofriam bullying na escola. Bem coisa de filho da puta mesmo. – disse eu, já sem muita paciência – Mas isso é mais ou menos o que eu já sabia. Quero ouvir o resto.

              – Eles fizeram aquela merda de filme e deixaram o plano todo organizado para ser posto em prática hoje, já que a Festa da Mandioca estaria lotada. – continuou o Sabidão – Só que antes disso eles tiveram uma ideia mais ousada: tentar abrir um portal para que os Dillodokers atravessassem fisicamente para esta realidade ao invés de apenas agirem sobre nossas mentes.

              – Terror pouco é bobagem. – falei, sem poupar na ironia.

              – Exato. Mas aí, quando eles fizeram um teste, algo deu errado e, ao invés de materializar algum dos Dillodokers, foram eles que desapareceram, decerto tragados para alguma outra dimensão.

              – Essa foi boa! – disse eu, sem conter uma risada.

              – Pois é... – continuou o Sabidão – E antes que você me pergunte como eu sei de tudo isso, é só olhar para aquela câmera no tripé ali atrás. Eles filmavam todos os experimentos e o Walter mantinha diários detalhados com o avanço das pesquisas.

              – Muito bem... – concordei, observando a câmera poucos metros adiante – E como você se envolveu nessa história?

              – Agora a coisa começa a ficar ainda mais bizarra. – disse ele – Lembra da mãe do Walter e do Vítor?

              – Sim. – respondi – Verônica, uma mulher meio histérica. Fazia escândalos na escola quando acontecia qualquer coisinha com os filhos.

              – Exatamente. – concordou ele – Pelo visto, nesse caso, a loucura é de família. Mas, o fato é que ela sabia que os filhos estavam fazendo algo neste local e, quando eles não voltaram para casa, veio até aqui procurá-los. Obviamente, não os encontrou, mas viu a câmera ligada e assistiu a filmagem onde os dois desaparecem após acionarem a máquina. Então me procurou, desesperada, pedindo para eu vir até aqui analisar a situação e ver se podia trazê-los de volta. Achei a história muito doida, mas decidi vir, por pura curiosidade. Para o meu espanto, o negócio era real mesmo. Passei muitas e muitas horas lendo os diários, assistindo as filmagens e analisando a máquina e, por fim, decidi que seria perigoso demais acionar novamente uma coisa tão poderosa e sobre a qual se sabia tão pouco. Quando disse para a Verônica que o melhor era não fazer nada – ou que pelo menos que eu não faria nada – ela surtou, sacou um revólver da bolsa e falou que só me deixaria ir embora quando trouxesse os filhos dela de volta. Então me trancou no banheiro lá no fundo e saiu. Voltou um tempo depois trazendo água, comida e essa corrente. Exigiu que eu me acorrentasse e ficasse trabalhando em uma forma de fazer a dupla de otários reaparecer. Como você pode perceber pela minha aparência, sempre que eu tento fugir acabo me dando mal.

              – Que loucura! – eu disse, sentindo a vertigem piorando mais ainda – E onde ela está agora?

              – Foi buscar mais comida, mas logo vai voltar.

              – E o que vamos fazer?! – perguntei, ansioso.

              – Esse é o problema! – respondeu o Sabidão, exaltado – Nós já fizemos de tudo! Você não percebe, mas nós estamos presos em algum tipo de looping temporal, onde essa merda de dia fica se repetindo de  novo, de novo e de novo! Teve uma vez onde eu acabei acionando a máquina, só que quem apareceu não foi nenhum dos babacas dos irmãos Venganno e sim um dos Dillodokers! Com certeza ele me matou, mas, ao invés de eu ir para o céu, para o inferno ou algo assim, reapareci aqui e começou tudo de novo. Mudei a configuração da máquina, acionei novamente e surgiu um Dillodoker diferente. Morri, e o ciclo reiniciou de novo. Então você começou a aparecer. Tentou me salvar, mas quando chegamos ao centro do parque, fomos mortos pela multidão enlouquecida. Outra vez você tentou destruir a máquina, mas provocou um incêndio e morremos queimados. Tentou também argumentar com a velha louca, mas ela pirou de vez e atirou em nós dois. Com pequenas variações, esse dia sempre se repete e a gente sempre se dá mal. E começa tudo de novo.

              A vertigem estava tão forte que precisei sentar no chão, apoiando a cabeça nas mãos. A sensação de  desespero era crescente.

              – Sabe o que é mais estranho...? – continuou o Sabidão – Eu cheguei a acreditar que esse looping temporal pudesse ter sido criado como uma anomalia no espaço-tempo, quando eu acionei a máquina, ou talvez ainda antes, durante um dos experimentos dos irmãos Venganno, mas, agora fico pensando que talvez essa seja a própria natureza da realidade. Uma espécie de simulacro existencial que se repete, por centenas ou milhares de vezes até esgotar todas as possibilidades de permanência.

              – Daí a gente se fode de vez. – concluí.

              – No nosso caso, é bem provável. – concordou o Sabidão – Mas, não há outra coisa a fazer além de continuar tentando mudar algo, até, quem sabe, conseguirmos sair desse ciclo de eterno retorno. Você já leu Nietzsche?

              – Não. – respondi – Mas já vi um filme com aquele cara dos Caça-fantasmas que tinha um lance parecido com isso que você está falando.

              – É O Feitiço do Tempo, com o Bill Murray. – emendou ele – Não é um filme muito bom, mas a realidade daquele personagem era um paraíso se comparada com a nossa.

              – Isso tudo é loucura. – resmunguei, desanimado.

              – Claro que sim. – disse o Sabidão – Tem algum detalhe dessa história que não seja totalmente insano? Veja essa máquina, por exemplo. No começo eu achei que pudesse ser tecnologia alienígena, mas agora estou mais inclinado a pensar que ela possa ter sido criada por pessoas como nós, só que do futuro. Será que não foi alguém lá do futuro que mexeu no passado e acabou criando essas realidades paralelas malucas em que nós estamos? Acho que a existência, como um todo, é algo muito paradoxal.

              – Você também está ficando louco, cara... – falei, levantando com certa dificuldade – Mas não te culpo, porque eu também já me sinto doido pra caralho. Me diz uma coisa: você se lembra de uma dessas realidades alternativas, ou sei lá de que porra você chama isso, que tenha a ver com pregação religiosa, crucificação, ou merdas desse tipo?

              – Não. – disse ele, parecendo realmente surpreso – Por quê? Me fale mais sobre isso.

              Mas, não deu mais tempo de continuar a conversa. Ouvimos o barulho de um carro se aproximando pela estrada que vinha do lado contrário ao Parque.

              – É a velha louca voltando! – gritou o Sabidão – O que vamos fazer dessa vez?!

              – Vou lhe mostrar o que eu vou fazer! – respondi, olhando ao redor.

              Localizei uma pá escorada na parede, perto da janela. Fui até lá, meio cambaleante, a peguei e então me espremi ao lado da porta. Com o dedo entre os lábios, fiz sinal para o Sabidão não falar nada.

              Em seguida, a porta foi aberta e Verônica entrou carregando sacolas de mercado. Rapidamente, me aproximei pelas suas costas e, antes que ela pudesse me ver, desferi um golpe com toda força na parte de trás da sua cabeça. Deu até para ouvir o barulho do crânio se partindo quando foi atingido pela pá.

              Ela desabou de cara no chão e, segundos depois, já havia uma enorme poça de sangue se formando ao redor da sua cabeça. Sem perder tempo, larguei a pá, tirei a bolsa que ela trazia pendurada ao ombro e comecei a revirar lá dentro. Encontrei o pequeno revólver calibre 22 e coloquei na cintura. Em seguida, achei o que estava realmente procurando.

              – Veja! – falei, me sentindo eufórico – Aqui está a chave do seu cadeado. Vou soltá-lo e, enquanto você coloca fogo nesse lugar maldito, eu vou correr até a sala de controle do palco principal da Feira. Se for preciso, vou destruir tudo que tiver lá para impedir que o filme dos Venganno seja exibido. Acho que ainda dá tempo. E depois pronto, estará tudo resolvido!

              Então, enquanto eu soltava as correntes, o Sabidão começou a falar algo, mas eu simplesmente não dei ouvidos ao que ele estava dizendo, porque, de repente, toda a minha atenção se voltou a algo tão macabro que fez com que sentisse o sangue me gelar nas veias.

              Ali do lado, o corpo da Verônica estava se movendo. No começo parecia estar apenas tremelicando, mas logo passou a se sacudir de forma violenta, até ficar virado de barriga para cima. E não foi só isso: a barriga dela começou a pulsar e a crescer, segundo a segundo, como se fosse uma gravidez instantânea.

              – Que merda é essa agora?! – gritei indignado, com a certeza de que algo muito ruim ainda vinha pela frente.

              – Deve ter alguma coisa a ver com aquilo... – disse o Sabidão, com os olhos arregalados, apontando para a parte de cima da máquina esquisita.

              Quando olhei, reparei em algo que até então não tinha percebido: no topo da máquina estava encaixada a pirâmide negra, a mesma que eu já tinha visto das outras vezes. Ela estava começando a vibrar e emitir fachos de luz esbranquiçada.

              – Você ligou a porra dessa máquina?! – perguntei, sentindo o pavor crescer por dentro.

              – Claro que não! – respondeu o Sabidão – Esse negócio está agindo por conta própria. Deve ser algum tipo de ressonância.

              – É sempre essa porra de pirâmide que faz as merdas acontecerem! – resmunguei, já com a intenção de pegar alguma ferramenta e arrebentar aquele objeto dos infernos.

              Só que não deu tempo. O Sabidão me puxou pelo braço e apontou – tão apavorado que não conseguia falar nada – para o corpo de Verônica se contorcendo lá no chão. Em poucos segundos, a barriga já havia crescido tanto a ponto de rasgar as roupas. A pele estava com coloração azulada, com veias e estrias ressaltadas e pulsantes, deixando claro que, se o crescimento não parasse logo, iria simplesmente explodir. E então explodiu. Com um barulho horrível, que eu nem saberia como descrever, a carne se partiu, fazendo voar sangue e outros tipos de coisas nojentas para todos os lados. Um cheiro podre absurdo invadiu o barracão e, imediatamente, eu comecei a vomitar. Isso fez piorar a tontura e cheguei a cair de joelhos. Pensei que iria desmaiar, mas depois de alguns instantes – não sei quanto – comecei a me recuperar um pouco.

              Quando ergui a cabeça, vi o Sabidão imóvel, pálido como uma folha de papel, com os olhos arregalados. Olhei na mesma direção que ele, e novamente achei que ia desmaiar. Naquele exato instante, duas coisas estavam rastejando para fora da barriga destroçada de Verônica. Pareciam vermes, ensanguentados e melecados, só que do tamanho de um gato. As cabeças se pareciam demais com miniaturas de rostos humanos, mas horrivelmente deformados, com dentes pontudos e olhos animalescos. E estavam crescendo. Muito rapidamente.

              O Sabidão não falava nada e nem se movia. Parecia em estado de choque. Eu comecei olhar ao redor, procurando algo que pudesse usar como arma e detonar aquelas coisas, e só então lembrei do revólver que havia pego na bolsa da Verônica. Saquei da cintura e apontei na direção das criaturas, que, naquele momento, já não estavam mais do tamanho de um gato, e sim de uma pessoa. O corpo de cada um daqueles horrores continuava lembrando um verme, só que tinham surgido braços finos e com garras, parecidos com aqueles dos Dillodokers que eu havia visto no vídeo. Como não tinham pernas, as coisas se moviam rastejando, e parecia que o corpo – feito de algum tipo de gosma cinza-esbranquiçada – ia mudando de forma conforme se movimentava. Mas, o pior de tudo eram os rostos deformados, que também pareciam se mover no meio daquela meleca nojenta. Apesar das bocas cheias de dentes pontudos e dos enormes olhos esbugalhados como de algum tipo assustador de peixe esquisito, dava para reconhecer claramente as fisionomias de sujeitos que um dia já foram humanos. Eram os rostos – bizarros e asquerosos – de Walter e Vítor Venganno.

              Do corpo da Coisa-Vítor brotou uma espécie de pênis monstruoso e melequento, de mais de meio metro de comprimento e, com uma daquelas mãos animalescas, ele começou a se masturbar enquanto gritava com uma voz que parecia um guincho de porco: “Foder! Foder!”

              A Coisa-Walter olhou para nós e sorriu, dizendo com uma voz que parecia o som de um trovão: “Que bom que vocês estão aqui para testemunhar!” Ouvi um barulho suspeito e olhei para o lado. O Sabidão havia mijado nas calças.

              O Monstro-Vítor começou a andava na nossa direção, cada vez mais rapidamente. Apertei o gatilho uma, duas, várias vezes, até descarregar a arma. As balas atravessaram a coisa como se fosse um bloco de gelatina. No lugar dos tiros, escorreu gosma, parecendo até que a criatura iria se desmanchar, mas isso durou só alguns instantes, pois logo aquele corpo melequento se refez, anulando os ferimentos.

              Apavorado, comecei a dar alguns passos para trás e puxei o Sabidão comigo, mas ele não se movia, parecia pregado no chão. Sem pensar duas vezes, dei dois tapas fortes no rosto dele e o sacudi com força.

              – Acorda, cara! Reage! Senão essas coisas vão nos matar!

              Isso pareceu ter tido algum feito, pois ele até recuperou um pouco da cor e recuou comigo até o fundo do barracão. Escoradas na parede, estavam mais algumas ferramentas que poderíamos utilizar como armas improvisadas. Peguei uma enxada e entreguei um ancinho nas mãos do Sabidão.

              A Coisa-Vítor estava novamente próxima de nós. Erguemos as ferramentas para nos defender, mesmo sabendo que, provavelmente, teria pouco efeito. Então, o Monstro-Walter se aproximou de repente, agarrou a Criatura-Vítor e, com uma força impressionante, a arremessou para o lado, fazendo com que caísse há vários metros de distância, com um som gosmento.

              – Meu irmão é refém de impulsos reprimidos... – disse o Monstro-Walter, com sua voz cavernosa – Ele não entende que poderá se satisfazer à vontade depois. Agora temos algo mais importante a fazer, para que a nossa apoteose seja completa. E vocês devem testemunhar! Devem cumprir o seu papel de representar a faceta medíocre e mesquinha da humanidade perante o triunfo de uma mente superior!

              A Coisa-Walter rastejou até a máquina e, rapidamente, começou a acionar diversos botões no painel eletrônico com suas mãos asquerosas.

              – Naquela dimensão onde os Venganno foram parar... – cochichou o Sabidão, parecendo pelo menos parcialmente recuperado – Eles devem ter tido suas mentes absorvidas pelos Dillodokers. Agora eles vão usar isso para trazer as outras criaturas para a nossa realidade.

              Então a Coisa-Vítor se aproximou mais uma vez, rastejando em círculos, agitando os braços para o alto e retorcendo seu rosto monstruoso, como se estivesse chorando. “Foder! Comer! Beber! Fumar!”, gritava a coisa com sua voz de porco, como se fosse uma criança mimada fazendo birra.

              Claramente enfurecido, o Monstro-Walter se afastou da máquina e partiu para cima daquilo que um dia havia sido seu irmão, dizendo: “Eu sabia que você não tinha maturidade suficiente para isso!” e o atingiu com um golpe que arrancou metade do seu rosto fora.

              A Criatura-Vítor urrou de dor e raiva enquanto a gosma escura escorria de sua cabeça e imediatamente revidou, arrancando o braço direito da Coisa-Walter. Os dois monstros começaram a se atacar, arrancando pedaços um do outro de forma brutal, mas, poucos segundos depois de uma parte de seus corpos gosmentos ser mutilada, a meleca voltava a se solidificar, moldando o corpo novamente.

              Enquanto as duas coisas brigavam, fazendo voar gosma fedorenta para todos os lados, fiz sinal para o Sabidão me seguir. Poderíamos aproveitar a confusão para tentar fugir, embora não houvesse muita esperança de que lá fora a situação ficaria melhor. Porém, quando tentei passar pelo centro do barracão, o Monstro-Walter percebeu minha movimentação, me agarrou pelo braço e me arremessou de encontro à parede do fundo. Eu voei por alguns metros, bati contra as tábuas e deslizei até o chão sentindo tanta dor que tive certeza de ter quebrado duas ou três costelas. O Sabidão correu na minha direção.

              Enquanto tentava levantar com a ajuda do Sabidão, percebi que a Coisa-Walter havia levado vantagem na luta contra o irmão. Os pedaços da Criatura-Vítor estavam espalhados pelo chão, mas a gosma se movia e ia lentamente se juntando de novo. Com certeza todo o corpo iria se reconstituir mais uma vez, mas, antes disso, o Monstro-Walter abriu uma pequena caixa de madeira que havia sobre a mesa e retirou algo de dentro. Rastejou até os restos do irmão, que se retorciam pelo piso, recitou algumas palavras em um idioma desconhecido e jogou sobre eles um punhado de cristais pretos, que me pareceram idênticos aos do colar que Vítor usava na primeira vez que o encontrei. Assim, os pedaços da Coisa-Vítor derreteram de vez em uma poça de gosma, que logo começou a evaporar até sumir totalmente, não deixando nenhum vestígio sequer no assoalho.

              – É uma pena que sua mente fosse frágil demais para suportar a pressão. – resmungou a Criatura-Walter, antes de voltar a manusear o painel da máquina.

              Sentindo muita dor, consegui ficar em pé, mas não sabia  mais o que fazer. Pretendia perguntar se o Sabidão tinha alguma ideia, mas uma série de gargalhadas chamou nossa atenção.

              O Monstro-Walter ria satisfeito enquanto a máquina começava a emitir um facho de luz que alternava entre o esbranquiçado e o azulado. Logo aquela luminosidade se concentrou formando uma esfera de uns dois metros de diâmetro e, em meio a um som perturbador, as coisas começaram a surgir através dela. Eram várias. Foram saindo da esfera de luz, uma depois da outra. A aparência de cada uma variava. Tinha as que lembravam insetos gigantes, algumas se assemelhavam a lesmas, outras eram bizarras demais até para tentar descrever, mas todas pareciam feitas de gosma e eram igualmente horríveis.

              As primeiras criaturas que chegaram arrebentaram a parede da frente do barracão e desceram pela estrada, em direção à parte central do parque. A maioria das outras seguiu na mesma direção, mas algumas ficaram para trás e, lentamente, começaram a avançar em direção ao Sabidão e a mim.

              – Bem-vindos ao meu Aeon! – gritou a Coisa-Walter, para em seguida emendar uma pavorosa gargalhada que se prolongava e se prolongava, parecendo que iria durar para sempre.

              As criaturas foram nos cercando e não havia para onde correr. Atrás de nós, apenas a janela que dava para o barranco íngreme, um verdadeiro precipício de dezenas de metros de altura, revestido pela mata escura. Uma das coisas esticou um braço melequento, agarrou o Sabidão pelo pescoço e o ergueu no ar.

              – Ainda não foi dessa vez, Sandro... – conseguiu resmungar ele, com o pouco fôlego que lhe restava, parecendo triste e conformado ao mesmo tempo.

              Eu não seria o próximo. Qualquer coisa era melhor do que cair nas garras daqueles vermes nojentos. “Que se foda!”, gritei, um instante antes de atravessar correndo – mesmo com muita dor nas costelas – os dois ou três metros que me separavam da janela e me atirar através dela. Enquanto despencava lá para baixo, ouvia as gargalhadas do Monstro-Walter ficando cada vez mais distantes. O chão, lá no fundo do barranco, se aproximava muito depressa, mas, quando cheguei até ele, ao invés de sentir a dor de me esborrachar de encontro às pedras e raízes das árvores, tive a sensação de passar direto, mergulhando na escuridão vazia do infinito.

 

 



 

 

 

5º Ciclo

 

              Acordei com a minha vó gritando no corredor: “Sandro? Sandrinho! Você não vai na Feira? Já passa das quatro horas da tarde, menino!”

              Quando abri os olhos senti um tipo de tontura e uma leve dor de cabeça.

              Pulei para fora da cama, com o coração disparado. Tudo parecia absolutamente normal na penumbra do meu quarto. Teria sido tudo um pesadelo? Um pesadelo fodidamente realista e assustador, mas apenas isso? Poderia ter sido efeito colateral do remédio experimental? Seria uma reação adversa por ter tomado um monte de cerveja, embora os médicos e a bula recomendassem expressamente que não fizesse isso? Algum tipo de premonição? Ou apenas o início de um novo ciclo, que recuou um pouco mais no tempo?

              Abri a janela e olhei para fora. A tarde estava nublada e ao longe, mais ou menos na direção do Parque de Eventos, havia algumas nuvens escuras que lembravam vagamente o formato de uma espiral, dando ao céu uma aparência estranha e sinistra...       

 

 

Fim...?

 

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