Por André Bozzetto Jr
A
melancolia está impressa como uma tatuagem arcaica no entardecer da pequena
cidade. Há lixo espalhado por todos os
lados. Carros batidos, incendiados, abandonados. Nenhum em movimento. Cadáveres
de metal que não transportam mais ninguém. As casas têm as portas e janelas
abertas ou quebradas. Desolação escancarada, para dentro e para fora. No fim da
rua, dois prédios estão pegando fogo. Duas tochas gigantes esperando para
saudar a escuridão vindoura.
Há
mortos na calçada por onde Alan vem passando. Na sarjeta, o corpo de uma mulher
com os pulsos cortados. Ela já fora bonita um dia, mas, com o sangue que
escorreu pelo asfalto foi-se embora também sua beleza. Na velha árvore, balança
o corpo de um idoso enforcado. Humano e vegetal, duas antigas testemunhas de um
mundo que não existe mais. Lá na varanda daquela casa está o corpo de um homem
grande e gordo em uma cadeira de balanço. A têmpora direita está arrebentada e
há um revolver em sua mão. Alan observa a tudo de forma impassível. Em uma
realidade em que a morte se tornou mais presente do que a vida, não há mais
lugar para o espanto e o choque. O funeral do mundo já transpôs a fase do choro
e do ranger de dentes.
Em
sua caminhada, Alan olha através da janela de uma casa. Lá dentro há uma
poltrona de onde pendem os braços ensanguentados de alguém. Está morto,
obviamente, mas a TV continua ligada. Nela se vê a imagem de um jornalista de
terno e gravata segurando uma folha de papel em mãos enquanto lê uma mensagem: “...
manchas vermelhas que podem ou não vir acompanhadas de prurido, febre, que pode
atingir a marca de 39º, derrame ocular severo, dissociações cognitivas
ocasionadas por alterações neurológicas que induzem à alucinação e...”.
Alan volta a
caminhar pela rua imunda. O resto do texto ele sabe de cor.
“Já são dois dias repetindo essa mensagem o
tempo todo. Merda de linguagem técnica. Deviam dizer: ‘você vai desenvolver
feridas nojentas, dor de cabeça, olhos vermelhos e daí vai começar a alucinar
até ficar completamente louco e se matar’. Fim do drama”.
No
seu caminho há um bar com mesas montadas na calçada. Em uma delas está um cara
morto, sentado em uma cadeira escorada na parede. A garganta está dilacerada. Em
sua mão, um pedaço de vidro quebrado e ensanguentado. Há muitas garrafas de
cerveja em cima da mesa. Do outro lado, um cara musculoso, usando camiseta da
seleção brasileira de futebol, fala de forma exasperada com o cadáver diante de
si: “Ninguém sabe a origem?! Que nada! Foram aqueles filhos da puta que
envenenaram o vento!”. Está febril,
alucinando. Alan sabe o que vai acontecer com ele em breve.
Logo adiante, sentado
de pernas cruzadas na calçada, está um garoto, olhando fixamente para uma pedra
que tem em mãos. Ele levanta a cabeça, olhando para Alan. Está suando, com os
olhos vermelhos. “Meu celular ficou sem bateria...”, diz, de forma aborrecida. Medo
e delírio, só que não em Las Vegas. Nada de glamour nestes recônditos
apocalípticos.
Na
amargura de sua jornada, Alan vê diante do pátio de uma casa a desconcertante
cena de uma adolescente despejando o líquido de um galão de gasolina sobre si. Ela
lhe encara com olhos insanos, vermelhos como brasas.“Vou fazer como aquela youtuber explicou...”, diz ela, um segundo
antes de acender o isqueiro e atear fogo em si mesma.
Ainda
que pesaroso, Alan se afasta, deixando a garota em chamas para trás. Diante do
excesso de horror, a sombria impassibilidade se tornou o verniz de sua fachada
decadente. Ele entendia a loucura de cada uma daquelas mentes.
“Eles me enxergam, mas não no mundo real. Me
veem apenas como coadjuvante no mundo de suas próprias ilusões”.
Sob
as nuvens escuras do fúnebre anoitecer, Alan percebe flocos esbranquiçados
caindo do céu. Ele manuseia a substância.
“Neve? Não. São cinzas. Símbolos que vêm do céu. A derrocada de nosso tempo”.
Descobre
a origem do fenômeno ao passar diante do hospital pegando fogo. Diante do
prédio há vários carros batidos e abandonados. Há também cadáveres. Nenhum
sinal de vida.
“O colapso do último socorro. Esperanças
ardendo como a febre”.
Após
mais alguns minutos de soturna caminhada, Alan avista um bosque obscuro, de
árvores grandes a antigas, já no final da cidade.
“Lá está a floresta, nos observando enquanto
a civilização queima. As árvores poderiam rir de nós? Acho que não. Só os
humanos seriam tão mesquinhos”.
Em
gesto quase teatral, ele retira da mochila um calhamaço de papéis. A reflexão
sobre eles tem o efeito de uma unha indelicada que arranha as cicatrizes de
feridas antigas e profundas.
“Foi lá que tive pela primeira vez essa
pretensão de ser escritor. Quase quarenta anos depois e nenhum livro concluído.
Apenas uma coletânea de bobagens pretensiosas e mentiras mal contadas. A sina
de nossos dias”.
Encenando
seu derradeiro drama – ainda que sem qualquer plateia – Alan segue caminhando e
espalhando pelos ares as folhas do manuscrito, que voam detrás de si.
“Mas, como réquiem de uma era, a verdade
finalmente vem bem a calhar”.
Na
entrada do bosque, à meia distância, Alan avista a menina olhando para ele. É
como ele se lembrava: loira, com os longos cabelos presos em duas tranças, uma
de cada lado da cabeça. O vestido imaculado adornando a pureza de seus treze
anos. Ela tem um sorriso nos lábios.
“Lá está ela. Com a beleza preservada pelas
décadas passadas. Nada das máculas do nosso tempo. Livre do peso do agora”.
A menina se
embrenha na floresta escura e Alan a segue.
“O vento está mais forte. Talvez sejam
nossas próprias vozes, ecoando desde o passado”.
Eles
passam por um casal de idosos enforcados um ao lado do outro, no galho de uma
grande árvore.
“Quem morre aqui fica em paz? Prefiro
acreditar que sim. Cheiro de terra molhado ao invés de esgoto. A leveza da
relva ao invés do peso do concreto”.
Logo
adiante, caído abraçado em um galão de agrotóxico, está o corpo de um homem
gordo com roupas de caipira. Alan não destina qualquer atenção ao cadáver. Está
compenetrado em observar a menina andando à sua frente, entre as árvores.
“Ela está me levando ao local exato. Há
lugares que se tornam verdadeiras cápsulas do tempo. Palcos para cenas
marcantes de alguma vida. Tragédias? Por que não?”.
A menina para ao
lado de uma árvore específica. Imóvel, olha para Alan com expressão série.
“Ali está. Estranhamente, cresceu uma acácia
no local”.
Então, Alan sente
sua mente sendo invadida por uma torrente de imagens. Um fluxo contínuo que
jorra de algum lugar do passado e lhe mostra os tons sombrios daquela tarde em
que menina está sentada em um tronco com um garotos ao seu lado. Ele tem a
mesma idade que ela, mas parece mais novo. Ambos estão sorrindo e cochichando,
em clima de romance. É como uma cena de flashback
com a menina e ele, quando jovens. E o problema é justamente esse. Não importa
quantas vezes você assista o mesmo filme, o final é sempre o mesmo.
“Naquela época havia apenas um tronco de
árvore podre aqui...”.
O rosto do garoto está
bem perto da orelha da menina, confidenciando algo.
“... onde abri meu coração...”.
A menina dá uma
gargalhada, empurra o jovem Alan com uma mão e com a outra faz sinal de
negativo, balançando o dedo indicador.
“... e ela me rejeitou!”.
A
menina se distrai, de joelhos, colhendo algumas flores. Ingênua, desconhecedora
do ódio e do ressentimento, não vê quando o garoto se aproxima dela por trás,
com olhar transtornado e um galho de árvore em mãos.
“O fim da inocência. A ascensão de um
coração negro e mau. Que sentimento é esse que macula para sempre toda uma
existência?”.
O
rosto dele está encrespado de fúria quando seus braços baixam, desferindo o
golpe.
“Quando o sangue inocente é derramado, não
há mais chance de redenção. Nunca mais”.
Com
o porrete improvisado e ensanguentado em mãos, o jovem Alan olha para
cima. Começa a chover. O corpo da menina morta jazendo aos seus pés, em meio às
flores que colheu, agora pisoteadas e esmagadas.
“Talvez a chuva fosse a tentativa da
floresta de limpar a mancha que deixei na história de suas eras... ”.
O
garoto cava a terra com as próprias mãos, debaixo de chuva.
“... ou fosse apenas o choro das árvores, em
luto por causa dela”.
Ele
tapa o buraco manualmente.
“Ninguém nunca a encontrou...”.
Em
pé, ele observa a cova recém-concluída. Poças já se formam ao redor, por causa
da chuva.
“... e nem seria possível. Esse era um lugar
que existia só para nós”.
Com
sua mente vacilante e doentia já de volta ao tempo presente, Alan – o fosso
negro de ressentimento e amargura que aquele garoto se tornou – retira da
mochila uma pá de jardinagem.
“Chegou a hora. Enquanto ainda tenho
tempo...”.
Ele
escava aos pés da acácia.
“... de buscar uma apoteose para essa
tragédia dos anos perdidos...”.
A
ossada da menina, com partes decompostas do vestido, aparece em meio à terra.
“... e encontrar você. Pela última vez”.
De
joelhos diante do buraco aberto, Alan – muito suado, trêmulo e com os olhos
sendo progressivamente tingidos por um grotesco tom de vermelho – retira da mochila uma faca de caça.
“Não tenho medo de ir para o inferno”.
Apesar
de trêmula, a mão de Alan não hesita. Ele corta a própria garganta com a grande
faca. O sangue jorra.
“Vivi no inferno até hoje. Ele sempre esteve
dentro de mim”.
Ele
cai no interior da cova.
“Rejeição, desprezo, medo, remorso, solidão,
dor, loucura... Cicatrizes eternas tatuadas na minha alma”.
Recosta
a sua cabeça junto ao crânio descarnado da menina.
“Mas agora sinto que isso está acabando.
Talvez seja tudo uma ilusão, e quando eu reabrir os olhos estaremos de novo
naquele dia, sentados no velho tronco, antes de você descobrir que o mal
existia”.
Coloca
a mão sobre os ossos da clavícula, como se estive tentando abraçar a morta de
forma afetuosa.
“Ou talvez você não
esteja mais lá... talvez eu não te veja nunca mais... talvez a escuridão desse
céu sem estrelas... as sombras dessa floresta secular... me tomem por
completo...”
O
sangue que escorre de sua garganta cortada é abundante. Seus olhos vermelhos já
estão vidrados... se apagando...
“... e eu fique aqui
para sempre... chorando e sangrando... sozinho... no escuro”.
P.S: Uma versão em quadrinhos deste conto foi publicada na clássica
revista CALAFRIO, edição de Nº 76,
com desenhos de João Ferreira. Para quem tiver interesse em adquirir essa ou
outras edições da revista, é possível requisitar diretamente com o editor
Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com