28 de ago. de 2023

CRÍTICA DO FILME: UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES

 

Por André Bozzetto Jr

 

       Em uma época onde os grandes estúdios cinematográficos investem centenas de exorbitantes milhares de dólares em suas produções, os efeitos especiais se mostram cada vez mais modernos e mais apegados aos recursos de computação gráfica, e principalmente, em um período onde a esmagadora maioria dos frequentadores dos cinemas são jovens e adolescentes acostumados às imagens e ritmos frenéticos popularizados através da “geração MTV”, parece cada vez mais difícil um filme atravessar as décadas e ainda ser considerado um clássico referencial, com potencial jamais superado dentro de seu respectivo gênero. Dentro desse seleto grupo de pérolas, certamente se inclui “Um Lobisomem Americano em Londres”, dirigido por John Landis em 1981, e que está completando 25 anos de seu lançamento ainda desfrutando do status de clássico inquestionável, se mantendo atual tanto em termos de recursos técnicos quanto em relação à qualidade de seu enredo.

       Hoje em dia, me parece muito pouco provável que qualquer leitor que curta filmes de lobisomem ainda não tenha assistido a esse filme, ou pelo menos ouvido falar dele. Acredito que poucos filmes tenham uma cena tão marcante, referenciada e cultuada com a cena em que o protagonista se transforma em lobisomem pela primeira vez. Não é à toa que tal cena, realizada com tanto esmero e brilhantismo, acabou sendo fundamental para que o maquiador Rick Baker ganhasse o primeiro de seus sete prêmios “Oscar” concedido pela sempre exigente Academia Norte-americana de Cinema. De qualquer forma, seria extremamente injusto avaliar o filme unicamente pelo mérito dos efeitos especiais, uma vez que essa obra ainda conta com um roteiro que, apesar de simples, se revela bastante envolvente, um trabalho de direção estupendo por parte de Landis (que até então só havia feito sucesso dirigindo comédias como “Os Irmãos Cara-de-pau”), que consegue imprimir ao filme um bom ritmo, mesclando cenas de humor refinadas, passagens repletas de tensão e suspense, e ainda momentos violentos e realmente aterradores.

       Os primeiros vinte minutos do filme já são praticamente um show à parte, que deveria servir como referência para muitos diretores atuais, como exemplo de como se pode criar, em poucos minutos, um clima de suspense e perigo iminente que realmente deixa o espectador tenso e conectado ao que está assistindo.

       O filme começa com os créditos aparecendo em meio a imagens das desoladas e inóspitas paisagens do interior da Inglaterra, ao som de “Blue Moon” interpretada magistralmente por Bobby Vinton. Já está anoitecendo e o céu obscuro não promete nada de bom, quando então vemos uma camionete repleta de ovelhas parar junto a uma encruzilhada. Do meio das ovelhas saem David Kessler (David Naughton) e Jack Goodman (Griffin Dunne), dois amigos norte-americanos que estão passeando pela Europa. O motorista da camionete lhes indica o caminho até o vilarejo mais próximo, e lhes adverte para que “evitem os pântanos e fiquem na estrada”. Os dois seguem caminhando e conversando descontraidamente, hora reclamando do frio, hora motivados com as expectativas da viagem. Já nesse momento se percebe a perfeita química entre os dois jovens atores, que de certa forma quase convence o espectador de que eles são realmente grandes amigos e que se conhecem desde criança. Essa empatia entre o público e os personagens é fundamental para que as cenas posteriores causem o devido impacto a que se propõem.

       As primeiras sombras da noite já encobrem a paisagem quando a dupla chega ao vilarejo e se dirigem para uma espécie de taverna chamada “Cordeiro Massacrado”. Ao entrarem no recinto, os jovens são recebidos com uma frieza quase hostil por parte dos frequentadores do local. A medida em que o ambiente recobra a descontração, Jack fica intrigado ao ver na parede o desenho de um pentagrama iluminado por velas. O rapaz zombeteiramente menciona com David que no filme do “Wolf-Man” aquela é a marca do lobisomem (essa é a primeira de várias citações ao clássico estrelado por Lon Chaney Jr.), portanto o símbolo na parede deve servir para manter os monstros distantes. Mal sabia ele como estava certo.

       Sem conseguir resistir a curiosidade, Jack acaba pergunto para que servia o símbolo na parede, e rapidamente ele descobre que não foi uma boa ideia. Todos os clientes da taverna se mostram irritados e praticamente expulsam os dois viajantes dali, mas não sem antes advertirem novamente para que “evitem os pântanos e fiquem na estrada”, acrescentando ainda um tenebroso “cuidado com a lua”. David e Jack partem sem entender muito bem o motivo daquele comportamento estranho, enquanto na taverna as pessoas ficam discutindo: alguns acham que não adiantaria contar a verdade aos forasteiros, pois estes não acreditariam, outros achavam que foi um erro deixa-los partir, e que deveriam ir atrás deles.

       A essa altura a dupla de amigos já está andando a esmo pelos úmidos e nebulosos pântanos que circundam a região. Apenas, quando a lua cheia passa a brilhar no céu, os dois se dão conta de que saíram da estrada e se perderam. Mas é tarde demais: uma fera desconhecida passa a espreitá-los e persegui-los em meio à escuridão, e logo o pior acontece: a terrível criatura surge de surpresa e estraçalha Jack com extrema ferocidade. Apavorado, David foge correndo, mas depois decide voltar para ajudar o amigo, sendo também atacado pela criatura. Quando David está prestes a ser morto pelo monstro, surgem os frequentadores da taverna “Cordeiro Massacrado” e fuzilam a fera. David está muito ferido e acaba perdendo a consciência.

       Essa primeira parte do filme é desenvolvida com grande maestria, valorizando a paisagem local como um elemento a implementar o suspense, abusando dos efeitos sonoros e da subjetividade no momento em que o lobisomem está cercando os viajantes, e não poupando no sangue e na violência no momento em que os jovens são atacados. Uma sequência memorável e que ainda hoje me parece um dos pontos altos do filme.

       Em seguida vemos David acordando em um quarto de hospital em Londres. Lá lhe explicam que ele e Jack foram atacados por um maníaco, que seu amigo acabou sendo morto, e que provavelmente ele também seria caso os moradores locais não tivessem intervindo e baleado o assassino. David tenta argumentar que eles não foram atacados por um maníaco, mas sim uma fera. Porém, acreditando que o jovem estivesse traumatizado pelo acontecido, ninguém lhe dá importância.

       Enquanto se recupera no hospital, David passa a paquerar a enfermeira Alex (Jenny Agutter) ao mesmo tempo em que é atormentado por terríveis pesadelos. Para piorar, recebe a inusitada visitada de seu amigo Jack, agora transformado em um fantasma dilacerado (mais um ótimo trabalho de maquiagem de Backer) que lhe explica que ambos foram atacados por um lobisomem, e que na próxima lua cheia David também se transformará em um. Apavorado, David pensa estar perdendo sua sanidade, mas depois que sai do hospital e vai passar uns dias na casa da enfermeira Alex, as visitas do fantasma de Jack continuam, e quando a lua cheia finalmente chega, todos sabem o que acontece. Temos a mais fantástica cena de transformação já vista em um filme de lobisomem, em um show de maquiagem e feitos especiais jamais superados no gênero, e que deixa no chinelo as transformações nada realistas feitas em CGI em filmes como “Lua Negra”, “Van Helsing” ou “Amaldiçoados”. Pronto, Londres tem uma fera brutal e sanguinária solta nas ruas, pronta para estraçalhar quem cruzar o seu caminho.

       Desnecessário dizer que o filme possui mais uma dúzia de cenas memoráveis, que já foram largamente mencionadas e debatidas, como o ataque do lobisomem dentro do cinema, a fantástica sequência de acidentes de trânsito quando o monstro está correndo pelo centro da cidade, e a já clássica cena em que a fera persegue um pobre infeliz pelas galerias desertas do metrô, apenas para lembrar algumas.

       Paralelamente ao enfoque no suspense e no horror, o filme também dá destaque para o humor, que a partir daqui passou a ser um elemento incorporado em quase todos os filmes de terror desenvolvidos ao longo da década de 1980. Mas quando se fala em humor, é preciso que se tenha a noção de que se trata de um humor sutil e ocasional, e não algo forçado e que inevitavelmente descamba para a baixaria, como no caso dos filmes de “horror adolescente” feitos atualmente. Impossível não se divertir com a cena em que David acorda completamente nu dentro da jaula dos lobos no zoológico, e precisa inventar uma série de artimanhas para sair daquela situação constrangedora.

       Também é valido salientar que o sucesso do filme não se deu por acaso, uma vez que ele foi longamente planejado por Landis e Backer. Ao assistir os extras do DVD nacional do filme, ficamos sabendo que Backer começou a elaborar os efeitos especiais do filme cerca de nove meses antes das filmagens terem início, e para isso montou uma equipe com seis ajudantes convocados especialmente para esse fim. Landis, por sua vez, ficou dez anos com o roteiro do filme guardado por falta de verba para realizá-lo. Até que, com o sucesso da comédia “Os Irmãos Cara-de-pau”, a Universal acabou dando um voto de confiança para o diretor, e decidiu bancar o seu tão almejado filme de lobisomem. Decisão mais do que correta.

       Por todos esses fatores apresentados acima, “Um Lobisomem Americano em Londres” será sempre uma referência de destaque quando se falar em filmes de lobisomem, da mesma forma que “A Noite dos Mortos-vivos” será sempre um marco para os filmes de zumbis e “Sexta-feira 13” para os slasher-movies.

       Como curiosidade final, fica também o pesar pelo fato da dupla de atores David Naughton e Griffin Dunne não terem conseguido desenvolver com sucesso suas carreiras. Ambos participaram de uma infinidade de filmes “meia boca” que obtiveram pouca ou quase nenhuma notoriedade. Talvez a única exceção seja o ótimo “Depois das Horas” dirigido pelo cultuado Martin Scorsese e que foi protagonizado por Griffin Dunne.

       Atualmente, Dunne tem se dedicado à função de diretor, dirigindo em sua maioria filmes de drama e comédia, produzidos diretamente para a televisão. Naughton continua atuando, tendo participado de filmes constrangedores como “Abelhas – Ataque Mortal” e “Prisioneiro das Trevas”, e atualmente parece estar voltando aos filmes de lobisomem, já que fará o papel do Xerife Joe Ruben em “Big Bad Wolf”, filme do diretor Lance W. Dreesen, que promete extrema violência e muito gore, e cujo lançamento está programado para o segundo semestre de 2006.

 

NOTA: As críticas desta seção foram escritas originalmente no início dos anos 2000 e publicadas em diversos sites e blogs da época.

23 de jul. de 2023

A CAMINHO DO INFERNO


 

Por André Bozzetto Jr

           

            Nunca fui de ficar pensando sobre sorte, azar, destino, esse tipo de coisa. Simplesmente vivi um dia de cada vez e pronto. Mas, pelo menos naquela noite eu deveria ter desconfiado de que alguma coisa estava errada. O passado devia ter me ensinado uma lição. Começou quando a guria me mandou mensagem depois da meia-noite. Disse que era para eu ir na casa dela, assim, sem mais nem menos. Eu já vinha xavecando ela há tempos, mas o negócio não avançava. Às vezes parecia que ela queria, às vezes não. Daí me mandou mensagem do nada, deixando bem claro que ia rolar. E eu fui, né! Quem não iria? Uma gata daquelas...

            Peguei o carro e encarei a estrada. Aqui preciso dizer que fazia muito tempo – uns quatro anos – que eu evitava de todo jeito transitar naquele trecho de noite. Não era por causa das lendas. Também nunca fui de acreditar em assombração. Mas acontece que eu lembrava do que aconteceu com os meus amigos e ficava nervoso. Me dava tipo uma crise de ansiedade só de pensar que era para eu estar junto na noite em que morreram. Tínhamos combinado que iríamos a um show em Chapecó no sábado de noite. Só que durante a tarde eu estava tirando um cochilo no sofá e tive um sonho muito estranho. Sonhei que já estávamos indo para o show. Betinho, Rodrigo, Barata e eu. No som estava tocando Higway to Hell, do AC/DC, o que já seria de deixar qualquer um com a pulga atrás da orelha. Só que no sonho eu fiquei empolgado com a música e quis me esticar desde o banco de trás para aumentar o volume do rádio. Com isso acabei atrapalhando o Betinho, que estava dirigindo. Ele perdeu o controle do carro – o seu famoso Gol branco rebaixado – e acabamos saindo da estrada e capotando, lá na curva da zona. Quando o carro começou a pegar fogo eu acordei de supetão, molhado de suor, parecendo que ainda ouvia os gritos de desespero dos meus amigos dentro da minha cabeça enquanto eram queimados vivos.

            Senti uma queimação no estômago e um aperto no peito. Disse para mim mesmo que o suor devia ser porque eu estava com febre, mas hoje sei que estava apenas inventando uma desculpa. Eu fiquei apavorado por causa do sonho, isso sim. Liguei para os caras e disse que não iria no show porque estava doente. Passei a noite agitado, quase sem conseguir dormir até que de manhã veio a notícia. Já imagina, né? Os caras se acidentaram na curva da zona e estavam todos mortos. Queimados.

            Eu pirei com aquilo. Contei para todo mundo sobre o sonho. Acho que alguns acreditaram, outros não. Os meus pais pensaram que eu estava ficando meio louco e me levaram em psicólogo e psiquiatra. Comecei a fazer terapia e tomar medicamento, até praticamente me convencer de que estava tudo bem, que o sonho foi apenas uma coincidência, ou talvez nem tivesse ocorrido de verdade. O choque com a notícia da morte dos meus melhores amigos teria me induzido a criar uma memória falsa, algo assim.

            Com o tempo fui me sentindo melhor e passei a evitar pensar sobre aquilo. Só continuava evitando passar pelo local do acidente à noite. Até receber a tal mensagem da guria. Mulher mexe com a cabeça da gente, né? Com a de cima e a de baixo.

            Então, lá fui eu. Era quase uma hora da madrugada e a estrada estava deserta. Até a cidade vizinha, onde a guria morava, era apenas alguns minutos, mas tinha que passar pela curva da zona. Já comecei a ficar ansioso um quilômetro antes do local, mas tentei não dar bola. Quando cheguei no ponto exato, parecia que o meu coração iria saltar pela boca, mas assim que passei começou a aliviar. Mas, só por alguns metros. Começou aquele barulho e eu já deduzi o que era. Tive que parar, porque não tinha outro jeito. E, lá estava: pneu furado. Traseiro, lado esquerdo. Eu já tinha carteira de habilitação há seis anos, dirigia todos os dias, mas nunca tinha furado um pneu antes. E aí, por mais que não queira, começa a vir muitas coisas na cabeça. A mensagem surpreendente da guria, o  pneu furado pela primeira vez, poucos metros à frente do local do acidente, a estrada vazia, com fama de ser assombrada. Sabe quando o medo começa a tomar conta da gente?

            Fui até o porta-malas disposto a trocar o pneu tão rápido quanto um “pit stop” de Fórmula 1. Mas, é claro, o estepe estava completamente vazio. Eu nunca tinha lembrado de calibrar aquela porra desde que comprei o carro, três anos antes. Agora, me lembrando, percebo que não era verdade o que eu falei antes, sobre não acreditar nessas coisas de destino. Provavelmente eu sempre acreditei sim, mas negava, evitava ficar pensando porque tinha medo. Me esforçava para aceitar quando os médicos diziam que o sonho e tudo o mais eram apenas coisa de trauma, confusão da minha mente. Só que, naquela hora, tudo veio à tona e o medo foi virando pânico.

            Fiquei pensando no que fazer. Fechar o carro e ir a pé? Ainda faltava uns cinco quilômetros e a escuridão era quase total. Me trancar no carro e aguardar alguém passar para então pedir ajuda? Ali? Do ladinho do local onde os meu amigos fritaram até a morte? Sem chance. Ir até a zona em busca de socorro? Não ia adiantar. Estranhamente já estava fechada. Até o famoso letreiro vermelho de neon estava desligado. E o celular? Totalmente sem sinal.

            Se havia alguma outra opção naquele momento, não sei, porque não deu tempo de pensar. Vi faróis se aproximando, na descida. Cheguei a acreditar que era a minha salvação. Alguém iria parar, me ajudar e pronto, tudo resolvido. Só que não. Conforme o carro ia chegando mais perto, comecei a sentir uma sensação estranha. Era como se o ar de repente tivesse ficado mais pesado e aquele sentimento de pavor estivesse de volta com força total. Comecei sentir um cheiro forte de coisa queimada. E então eu ouvi. Highway to Hell tocando a todo volume no interior do veículo. Era um Gol branco e rebaixado que estava estacionando ali, bem ao meu lado. A película preta no para-brisa, as rodas cromadas. Era inconfundível.

                Eu não queria, realmente não queria, mas não consegui evitar. Olhei para dentro do carro e lá estavam Betinho, Rodrigo e Barata. Queimados, descarnados, mutilados, com os ossos à mostra, e ainda assim vivos – mortos-vivos – estendendo o que havia sobrado de seus braços na minha direção e gritando meu nome.

            Depois disso eu só lembro de partes do que aconteceu. Embarquei no meu carro, dei um cavalo de pau no meio da pista e toquei de volta na direção de casa. Fui acelerando tudo que dava, chorando e gritando de pavor. O pneu furado foi se despedaçando pelo caminho, perdendo lascas de borracha até se desmanchar. Daí foi aquela faisqueira da roda esmerilhando no asfalto, fazendo um barulhão infernal.

            Os meus pais e o meu irmão contam que larguei o carro no meio da rua, entrei gritando e me enfiei debaixo da cama. Não me lembro direito dessa parte. Dizem que fiquei três dias e três noites praticamente sem sair do quarto. Precisavam levar a comida e os remédios até lá, porque eu me recusava a sair a não ser para ir rapidamente ao banheiro.

            Com o carro, o estrago foi grande. Do pneu não sobrou nada, nem sequer um pedaço de arame. A roda já era. Entortou, lixou, se foi. O eixo estragou também e deu mais alguns problemas que não estou lembrando. Custou um dinheirão para arrumar tudo. No asfalto na frente de casa ficou um verdadeira canaleta no local onde o metal veio esmerilhando o chão. Tá lá até hoje e segue a se perder de vista.

            É claro que quase ninguém acreditou na minha história. Uns acham que eu estava drogado, outros pensam que eu tive um surto. Já faz um ano que isso aconteceu e agora eu tomo ainda mais comprimidos do que antes. Não saio mais na rua. Tranquei a faculdade e pedi demissão do emprego. Às vezes faço uns bicos, consertado ou formatando computadores para conhecidos, aqui em casa mesmo.

            No fundo não sei ao certo o que pensar sobre tudo isso. Acho que os remédios me deixam um pouco confuso. Em alguns dias tenho certeza que tudo foi real, em outros quase me convenço que poderia ser só coisa da minha cabeça mesmo. Eu liguei para a guria um tempo depois daquela noite e ela me disse que nunca me mandou mensagem nenhuma. E o pior é que nem tenho como conferir, porque perdi o celular no desespero de fugir daquele lugar. Meu irmão e meu pai foram até lá, procuraram, mas não acharam.

            Um dia eu assisti um filme que falava sobre a possível existência de realidades paralelas por onde a nossa consciência poderia transitar, muitas vezes sem que a gente se desse conta. Achei intrigante e fui pesquisar na internet. Até comprei uns livros sobre o assunto. Então li que existem teorias sobre essas múltiplas realidades alternativas, onde diferentes versões de nós mesmos levam vidas que podem ser muito parecidas ou muito diferentes daquela que consideramos “a verdadeira”. Se realmente há casos onde se pode passar de uma para outra, fico me perguntando se não existe uma versão onde eu causei o acidente que levou à morte os meus amigos e, de alguma forma, transferi minha consciência para cá, nessa dimensão onde não fui ao show com eles e, assim, não morri. Há quem acredite que certos lugares são mais propícios a se passar de uma realidade para outra, como se fossem portais dimensionais. Será que aquele trecho da estrada, que já ganhou até apelidos como “Estrada da Morte” e “Rota do Inferno” não é um desses? Será que todas as histórias de assombração sobre aquele lugar não têm ligação com isso? Será que os meus amigos mortos não atravessaram de uma dimensão para a outra com a intenção de me buscar, já que causei a morte deles e “fugi” para outra realidade? Aquele sonho estranho poderia muito bem ter sido isso, um lapso de consciência que me transferiu daquela dimensão para esta.

         Não sei se algum dia vou encontrar a resposta. Não sei se em algum momento vou conseguir lidar melhor com isso tudo. Terei uma vida normal novamente? No momento acho difícil. Assim que anoitece tomo meu remédio para dormir e vou para a cama, com muito medo de acordar no meio da madrugada ouvindo Highway to Hell e vendo meus amigos mortos me chamando para partir com eles a caminho do inferno.

3 de jul. de 2023

O ESTRANHO FUGITIVO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Esse tipo de fugitivo é dos mais estranhos, porque sua fuga começa quando não há ninguém lhe perseguindo. Na verdade, ele gostaria que houvesse. Ser perseguido, ser notado, ser almejado – por mais paradoxal que seja – é estar vivo e, às vezes, ele se sente morto.

            O estranho fugitivo não foge de algum lugar ou indivíduo específico, mas sim da realidade. Ele olha ao redor e o que vê lhe parece hostil, não porque lhe ameaça, mas porque o ignora. A sensação de não pertencimento o instiga a partir. Ele não sabe ao certo para onde. A escuridão das dúvidas lhe oprime e o medo do escuro reverbera o medo do desconhecido. Fugir para um lugar novo não parece seguro. E se o novo for pior do que o antigo? E se lá ele se sentir ainda mais vazio, mais frio, mais sozinho, mais perdido? Não, definitivamente, as incertezas do futuro não são atraentes para esse perfil de fugitivo. Mas, se o presente lhe hostiliza e o futuro lhe amedronta, para onde mais ele pode fugir? Então, nesse paradoxo, se desvela a sua mais marcante característica: o estranho fugitivo é aquele que quer fugir para o passado.

            Mas, é claro, o passado que ele almeja é um passado idealizado, um recorte composto somente pelos momentos bons – alguns notadamente reais, outros consciente ou inconscientemente exagerados e superestimados, e outros ainda que existem apenas em sua mente.

            Na encruzilhada em que o fugitivo se encontra há várias rotas de fuga, mas todas são efêmeras, porque no passado não há permanência. Tal qual a areia de uma ampulheta, escorre sempre de forma inexorável. Seu destino é desvanecer.

            Ouvir recorrentemente as músicas que serviram de trilha sonora aos grandes momentos, rever os filmes clássicos que marcaram época, jogar os velhos videogames que sedimentaram a diversão de toda uma geração. Rememorações prazerosas, porém fugazes. Miragens fadadas a desaparecer na aridez de um deserto interior onde já não brilha mais sol nenhum. Tudo que era, tudo que houve, já não está mais lá. Não há mais troca de discos de vinil e fitas K7. As locadoras de vídeo morreram melancólicas e vazias, com não mais do que alguns poucos nostálgicos para chorar suas memórias em meio a fitas VHS empoeiradas e DVDs riscados. Jogos de 8 e 16 bits? Todos humilhados e trucidados pelas armas modernas de guerreiros moldados em gráficos realistas, de telas de PC e consoles de última geração, altamente treinados por horas infindáveis de partidas on-line. Para contar a História dessa fase idílica perdida, não há mais sítios arqueológicos lá fora. Os resquícios, as fontes históricas jazem agora em HDs, “nuvens on-line” e streamings. O passado virou pó e o futuro é virtual. Para o presente sobrou só um buraco, escuro, triste e vazio.

            Mas essas são as rotas secundárias, obscuras, lembradas por poucos e frequentadas por quase ninguém. A grande freeway que conduz ao “Eldorado” litorâneo do passado é acessada in loco. O estranho fugitivo é um viajante irredutível e o seu ponto de chegada nunca está lá na frente, mas sempre ali atrás. Trafega na contramão do trânsito ordinário, navega no contrafluxo da correnteza. E quando finalmente chega ao seu destino em busca do antigo, se defronta com o novo.

            A busca é pelas paisagens de ontem, mas elas já foram soterradas pelas de hoje. Onde havia aquela casa de estilo peculiar, emanando imagens de existência pitoresca, agora há um arranha-céu de face espelhada, que reflete apenas a frieza do trivial. Aquele prédio antigo, tão singular, tão cheio de história, foi posto abaixo e no seu lugar irrompeu outro, maior e mais moderno, mas que não é cenário de nenhuma crônica, não instiga nenhum devaneio. Uma torre de concreto e ferro desinteressada no que ficou para trás e indiferente ao que está por vir. Monumento indolente, não representa nada, porque foi erigido para ser apenas mais um entre tantos outros.

               Outdoors decrépitos e rasgados tomam o lugar onde antes havia a sombra aconchegante de árvores frondosas. Fachadas de redes de farmácias se impõe onde antes estava o comércio tradicional, que foi julgado ultrapassado e teve que fechar as portas há muito tempo. Muros altos e pichados, cercas elétricas e intimidadoras escondem a lembrança de onde existiam gramados verdejantes para crianças brincarem e varandas aconchegantes para casais se sentarem ao final da tarde. Cores – que eram vivas porque tinham vida – foram encobertas por tons monocromáticos e melancólicos.

            O estranho fugitivo descobre que sua fuga nunca será um sucesso, pois seu refúgio é uma utopia. Anseia por aquilo que não existe mais. Procura o que não pode mais ser encontrado. Anda em círculos, mas nunca chega onde deseja, pois, tal qual um ouroboros, está sempre mordendo a própria cauda.

            Ainda há frestas por onde ele consegue vislumbrar resquícios do que era, focos de resistência que se impõe ante o avanço implacável do porvir. Uma banca de jornal de onde vieram os gibis que embalaram fantasias, um restaurante que sediou refeições memoráveis, uma praça que aconchegou momentos singelos, mas marcantes. Sobrevivem, porém, diferentes. A catarse só pode ser parcial, porque se nem as fotos resistem ao desgaste inflexível do tempo, as paisagens muito menos.

            E os habitantes desse refúgio idealizado? A maioria partiu para sempre e só vai existir em memórias tênues enquanto alguém ainda se lembrar deles. Alguns ainda estão lá, mas mudaram, porque quiseram, porque precisaram ou simplesmente porque foram arrastados  pelo fluxo impiedoso do tempo, que não poupa nada e nem ninguém, sentenciando todos à ruína e ao esquecimento, mais cedo ou mais tarde. É claro que ainda há um ou outro outsider que reluta bravamente em entregar os pontos e ceder à maré metamorfoseante de contemporaneidade, mas estes heróis de outras épocas hoje estão reduzidos a observadores nostálgicos de impérios que já ruíram. O poder está nas mãos de outros e o único status que lhes restou foi o de “fora da lei”. Não aceitam o papel de prisioneiros, mas também estão condenados, pois o tempo é um adversário contra o qual não adianta querer lutar e do qual não há como escapar. Para não ser esmagado por ele, só o que resta é seguir o fluxo.

            Essa é a grande lição que o estranho fugitivo aprende em sua jornada. Ele é obrigado a seguir em frente, mas pode escolher onde, como e com quem quer fazer isso. Sempre haverá uma porta aberta, sempre haverá um meio de continuar, sempre haverá alguém com quem compartilhar o percurso. A estrada está lá, basta decidir como percorrê-la. A busca é o desafio e o prêmio não está no fim, mas no trajeto. Tentando fugir, ele descobriu que é livre.

23 de jun. de 2023

SUL ASSOMBRADO - A ESTRADA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            O seu nome oficial é um tabu. Não deve ser mencionado. Não deve ser apontado nos mapas. Como sílabas blasfemas, causa mal-estar em quem ouve, estigmatiza quem pronuncia. Um filho bastardo cuja existência constrange o núcleo familiar. Uma promessa grandiosa nunca cumprida, que envergonha a honra do falastrão. Está no topo da lista dos assuntos sobre os quais é melhor não comentar. Daqueles que é melhor fingir que não existem.

            Contudo, ela existe. Ela está lá. Como uma cicatriz antiga e profunda, corta o território de leste a oeste, acelerando ódio em cada reta, envergando angústias em cada curva.         

            Tal como na fluidez de suas formas, o medo não trabalha com números exatos, mas a imaginação simbólica sim. 666 km de asfalto, poeira, sangue e lágrimas. “Estrada da Morte”, “Rota do Inferno”, apelidos clichês para um mal que também nada possui de original. São décadas atropelando sonhos, estilhaçando esperanças e esmagando futuros. Ano após ano, ceifando vidas.

            Crateras na pista que espelham os buracos deixados no interior de quem viu seus entes queridos embarcarem para a última viagem, da qual nunca mais voltaram.

            Placas pichadas, amassadas e quebradas indicam – em ruínas – os destinos para os quais alguns partiram, mas nunca chegaram.

            Vegetação insidiosa que invade o acostamento e sorrateiramente oculta cruzes improvisadas e tristes flores mortas deixadas como réquiem para alguém que não está mais lá. Não está mais aqui. Não está mais em lugar nenhum.

            Reformas fictícias adicionam camadas de ilusão sobre o sangue ressecado. Monumentos fúnebres onde não há ninguém enterrado. Piras funerárias com cheiro de piche e dinheiro queimado. Obras póstumas de expectativas jamais concretizadas.

           Circular por ela de dia é uma tarefa hercúlea. De noite é vivenciar um pesadelo de olhos abertos. Fantasmas que assombram trechos desertos. Aparições que irrompem de pontos mal-afamados. Espectros oriundos de tragédias. Assombrações originadas de desgraças.

            Em locais onde muita gente de cá costuma passar para o lado de lá, às vezes a porta acaba ficando aberta. Quem é mais sensível consegue enxergar através da fresta. Vê a sobreposição do aquém e do além. Vislumbra a encruzilhada dimensional por onde transitam os vivos e também os mortos.

            Estranhas ilusões, tão perturbadoras quanto a loucura. Tão reais quanto a morte.